Capitã da Seleção Nacional com mais de uma centena de internacionalizações, a pivô Bebiana Sabino conhece como poucas a realidade do andebol nacional. Com seus expressivos 25 títulos nacionais, a atleta de 35 anos, natural do Porto, conversou com a SportMagazine sobre o momento vivido pelo andebol feminino em Portugal. “Arrisco-me a dizer que aproximadamente 80% das mulheres que competem na Primeira Divisão nacional não auferem qualquer rendimento por jogarem andebol”, alertou a andebolista do Colégio de Gaia.
A entrevista com Bebiana Sabino, que além de atleta também é professora do ensino superior – é docente na área de Ciências do Desporto, na Escola Superior de Educação de Beja -, é parte de uma reportagem maior sobre o andebol feminino português realizada pela SM, a ser publicada na edição n.º 2 da nossa revista, na última semana deste mês de junho. O material completo estará disponível para os assinantes. Se ainda não é, saiba como fazer para integrar o nosso grupo de leitores e colaborar com o nosso projeto.
SportMagazine (SM) – A Joana Resende queixou-se há poucos dias de mais visibilidade ao andebol feminino, a Patrícia Lima falou em melhores condições de treino e o selecionador José António falou em “problemas de estrutura”. A Bebiana, como capitã da equipa nacional e com muitos anos de experiência no desporto, poderia apontar o que Portugal precisa melhorar em termos estruturais para desenvolver-se melhor na modalidade?
Bebiana Sabino (BS) – Na minha opinião são diferentes fatores que temos que alterar para então conseguirmos desenvolver a modalidade, ou ambicionamos o desenvolvimento da mobilidade. Fatores que não são de fácil execução no imediato. Não são de alteração imediata, mas que são essenciais na sua estrutura para então ambicionarmos esse desenvolvimento. Por um lado, apostar na formação com mais e melhores atletas. É o segredo de qualquer modalidade no mundo, independentemente de ser o andebol. Portanto, ter mais atletas, uma grande base de recrutamento para depois podermos chegar ao topo com as melhores. E nesta base termos melhores atletas, mas para isso, por outro lado, precisamos formar treinadores e dirigentes com uma maior qualidade. E também, para esses treinadores e dirigentes, proporcionar dentro do desporto feminino uma evolução do ponto de vista da carreira. Portanto, criar oportunidades para o desenvolvimento da carreira.
O que se passa atualmente é que os treinadores que estão no andebol feminino estão de passagem, digamos assim, porque ambicionam ir para o desporto masculino porque somente no desporto masculino é que podem ambicionar ter uma carreira dentro da modalidade e também uma progressão na própria carreira. Mas isso tudo, obviamente, está aninhado de algo ainda mais amplo, que é a alteração da cultura desportiva em Portugal. Enquanto nós não percebemos que a mulher também pode praticar o desporto, também tem o direito de o praticar, temos que criar as condições para que ela possa praticar. Para que o pai ou mãe permita a filha a praticar o desporto, não só do ponto de vista do lazer e do bem-estar, porque o desporto também tem que caber nesta parte, mas também que permita que a sua filha pratique o desporto porque pretende praticá-lo para além do hobby do dia a dia, mas também em busca de uma carreira no desporto.
Essa alteração cultural, tal como concebemos o desporto e o desporto feminino, também aqui é efetivamente o fator mais abrangente que depois vai permitir alterar também todos os outros fatores. Nos últimos anos, o deporto, independentemente da modalidade, tem evoluído muito porque temos conseguido canalizar todo o conhecimento científico do desenvolvimento para evoluirmos e melhorarmos a sua qualidade. São diversos fatores que têm que ser alterados para as mulheres terem a possibilidade de desenvolverem uma carreira dentro da própria modalidade.
SM – Em termos de investimento, historicamente os homens recebem maiores salários que as mulheres em todos os setores da economia – inclusive no desporto. Acha que essa desigualdade de género, no caso de Portugal, também se repete no desporto? Se sim, isso acaba por ser refletido nos resultados e na qualidade das competições nacionais?
BS – Obviamente que o desporto não é exceção no que diz respeito à desigualdade salarial entre homens e mulheres. É o espelho das diferentes áreas da sociedade. Se calhar, em outras áreas, já demos um passo em frente para esta igualdade. Portanto, quem desempenha a mesma tarefa, independentemente de ser homem ou mulher, vai auferir pela sua competência e não em função do género. E no desporto temos alguns casos mais mediáticos em que percebemos que há uma procura de aproximação do ponto de vista dos salários, mas no desporto vejo isso de uma forma distinta. Não é um ponto fulcral.
No desporto, o salário é função, repercussão, daquilo que é o investimento e essencialmente daquilo que é a visibilidade que é dada, quer ao desporto masculino ou feminino. Se a visibilidade do ponto de vista da comunicação social é muito maior no desporto masculino, isso vai trazer um maior número de patrocínios, um maior investimento, que há uma maior fonte de receita que também poderá reverter a favor de maiores salários, o que não acontece no desporto feminino. Nem acho que há uma falta de visibilidade, há uma falta de atração por parte de patrocinadores e parcerias que depois também vão ser o reflexo dos baixos salários.
Acho que em concreto, no andebol feminino, essa discussão ainda está um nível abaixo. Falamos de atletas que não auferem qualquer salário para outros que efetivamente recebem os seus salários porque são profissionais. Nas mulheres, arrisco-me a dizer que aproximadamente 80% das mulheres que competem na Primeira Divisão nacional não auferem qualquer rendimento por jogar andebol. Contrariamente, na Primeira Divisão masculina, diria que praticamente todos os atletas têm os seus salários. Essa discussão aqui, do ponto de vista do andebol nacional e a comparação de género, está mais, não para a desigualdade de salário do que a presença e a ausência de salários.
E tudo isso reverte-se para o início da minha resposta, que é a falta de investimento que gera esta grande diferença. E claro, isso depois reflete-se na qualidade das competições nacionais e por si só também, consequentemente, na qualidade da Seleção Nacional. Portanto, se houvesse um maior investimento no andebol feminino, também haveria a possibilidade de criar outras condições para as atletas dedicarem-se com uma maior exclusividade ao treino e por si só aumentaria a carga e volume de treino semanal que teria uma repercussão do ponto de vista da qualidade da competição nacional.
SM – O José António Silva afirmou que recentemente deixou de convocar jogadoras porque algumas atletas precisavam trabalhar e não podiam ausentar-se dos respetivos empregos. Sobre essas questões: a carreira dual (trabalho + desporto) é comum no andebol feminino português? E como isso acaba por prejudicar a rotina de treinos e competições? E o que acredita que pode ser feito para que as nossas jogadoras possam se dedicar apenas ao desporto?
BS – Efetivamente, esta questão da conciliação do trabalho com o desporto tem sido um problema recorrente, não é de agora. O professor António Silva retratou isso recentemente, mas tem sido algo com que as minhas colegas e eu própria temos reparado ao longo dos últimos anos, nomeadamente no que diz respeito à Seleção. As atletas que necessitam de dispensas mais alargadas do trabalho, nem sempre são facilmente compreendidas pelas entidades patronais.
Mas o problema não é a carreira dual, o problema é como é que nós entendemos a carreira dual no contexto nacional. Isto vem da cultura desportiva que temos no nosso país. Se nós olharmos para o lado, para outros países de Europa, ao nível do andebol feminino, as atletas também têm elevado alto nível e também não deixam de ter uma carreira dual. Mas as entidades patronais estão educadas e formatadas de uma outra forma. Aliás, valorizam o facto de ter um funcionário que é um atleta de alto rendimento porque percebem outros tipos de competências neste outro funcionário. E nós em Portugal ainda não estamos neste nível. As entidades patronais não conseguem compreender o benefício. Muitas vezes em vez disso ser um benefício para a atleta, é algo que a prejudica. Portanto, a carreira dual em Portugal é algo muito distinto daquilo que é lá fora. Aqui, obviamente, conciliar o trabalho com o desporto acaba por prejudicar a qualidade do treino e também da competição.
Dou o meu caso: por exemplo, num dia que vou dar aulas às 9h00. Tenho que ir às 7h00 ao ginásio e depois tenho o dia normal de trabalho de oito horas e ao fim do dia tenho que treinar. Portanto, vou mais cedo ao ginásio, outro tipo de treino complementar necessário, ao longo do dia desempenho a minha atividade profissional, e ao fim do dia vou treinar. Conseguimos compreender facilmente que a qualidade física e mental para estar a elevado nível no treino é completamente diferente. Enquanto lá fora a carreira dual é concebida de outra forma. A entidade patronal consegue organizar-se com o atleta para que ele possa estar no máximo desempenho não só a nível da sua profissão, mas também na outra profissão que é o desporto. Aqui é algo distinto.
Mas volto a referir: para mim, o problema não é a carreira dual, mas sim a forma como a carreira dual é entendida em Portugal. Depois, temos também outra questão: do ponto de vista legal, a questão da dispensa para participar nas seleções está presente na Legislação. Sim, está presente, só que nem sempre é cumprido. Obviamente, uma atleta que não é profissional, não pode pôr em xeque o seu trabalho para se dedicar e, permita dizer, “ok, vou faltar duas semanas, a Lei está aqui e estou salvaguardada”. No entanto, isso pode implicar no futuro.
O que pode ser feito para se dedicarem apenas ao desporto de nível nacional, tem que haver um maior investimento no andebol feminino, possibilitando aos clubes proporcionarem outras condições de trabalho às atletas e obviamente isso depois tem outras repercussões a nível dos salários que permitam a atleta a opção de ser profissional e não necessitar desta capacidade de gestão da prática desportiva também com outro tipo de profissão que tenha em paralelo. Acima de tudo, acho que tem a ver com o planeamento e investimento na modalidade que poderá proporcionar outras condições às atletas para elas serem profissionais dentro do próprio desporto.
SM – O andebol masculino vem de uma sequência de bons resultados e qualificações para Europeus e Mundiais. Na sua opinião, o que diferencia o trabalho que está a desenvolvido no masculino e porque as mulheres não conseguem resultados iguais?
BS – Estamos aqui a falar de realidades completamente distintas. A Seleção Nacional de andebol feminina e a masculina. Para além de serem realidades completamente distintas são seleções que estão em momentos completamente diferentes. O masculino neste momento tem conseguido essa sequência de excelentes resultados ao nível das grandes competições, tem conseguido estar presente nas grandes competições de uma forma frequente. Mas se recuarmos um bocadinho atrás percebemos também que houve aqui um grande “gap” entre a última qualificação e esta nova sequência de qualificações para essas grandes competições.
Aqui neste espaço temporal houve um investimento por parte da Federação [de Andebol de Portugal], houve um investimento por parte dos clubes ao nível do andebol masculino, que a longo prazo deu os frutos que agora estamos a colher nas qualificações. Portanto, temos talentos em Portugal e houve um investimento para que esses talentos se pudessem manter ao nível nacional. Foram criadas condições de trabalho para esses atletas poderem profissionalizar-se na modalidade e também, a longo prazo, que é o que estamos a vivenciar, conseguimos estar presentes nos Europeus, Mundiais e Jogos Olímpicos, mas no feminino estamos num momento diferenciado.
Primeiro, partimos de um pressuposto completamente diferente que é a Seleção Nacional feminina, que somente foi apurada uma vez para um Europeu, em 2008 [terminou como a 16.ª classificada]. Não temos o histórico anterior que existia no masculino. Portanto, a priori já vem da falta de investimento ao desporto feminino ao nível nacional, em concreto aqui ao andebol feminino. já partimos alguns largos passos atrás. No masculino, o que assistimos foi um investimento coletivo, não só da Federação, mas também dos próprios clubes. No feminino, assistimos um bocadinho a algo inverso: estamos num momento em que as jogadoras optaram que, ok, a nível nacional não conseguiriam evoluir e melhorar as performances desportivas, então optaram por jogar no estrangeiro para se valorizarem enquanto atletas e depois essa sua qualidade também poderia beneficiar a sua Seleção.
Aqui estamos em momentos distintos em ambas as seleções, que no feminino ainda temos aproximadamente metade da convocatória nacional são jogadoras que estão a jogar no estrangeiro e a trilhar individualmente o seu caminho para evoluírem e conseguirem uma maior qualidade desportiva, que depois vai ajudar também a Seleção Nacional. No entanto, percebemos logo que as diferenças não ficam somente pela falta de condições iguais de trabalho. Quando nós chegamos ao início do estágio numa Seleção masculina temos todos os jogadores que são profissionais. Portanto, o desenvolvimento do treino diário é completamente distinto de uma Seleção Nacional feminina que temos um misto de jogadoras que são já profissionais e jogadoras que têm a tal carreira dual, mas não é uma carreira dual de outro país europeu, é uma carreira dual de alguém que vive em Portugal e que as condições de trabalho são bem distintas.
Para nós conseguirmos essa sequência de bons resultados temos que voltar a tudo aquilo que já mencionei anteriormente nas outras questões: investir para que criar uma maior possibilidade das atletas se dedicarem ao treino para termos uma maior qualidade. Só assim poderemos ambicionar esses resultados e essas grandes qualificações.