O treinador de Lenine Cunha, o atleta com deficiência mais medalhado de sempre, vai retirar-se do treino activo após 46 anos de serviço. José Costa Pereira começou como treinador de atletismo regular mas cedo se deixou conquistar por atletas com vontade de ferro, sempre dispostos a enganar os limites impostos pela deficiência cognitiva ou intelectual. Conquistou tudo o que havia para conquistar, incluindo duas medalhas paralímpicas. Apesar de deixar o treino, vai manter-se na retaguarda.
SportMagazine (SM) – Treinou atletas de perfil olímpico e há alguns anos que está nos Paralímpicos. Como foi essa transição?
José Costa Pereira (JCP) – Eu comecei no atletismo regular. Após a revolução de 74, estava eu no primeiro ano de engenharia, o então Diretor-geral dos Desportos, o professor Melo de Carvalho lançou o projeto “atletismo à porta de casa”, que gerou pequenos núcleos da modalidade por todo o lado. Um ano depois estava o meu pai a criar um desses núcleos em Araújo, Leça do Balio, o Núcleo de Amigos do Atletismo de Araújo, clube esse que um dia chegou à Primeira Divisão a competir com Benfica e Sporting, e que foi um alfobre de atletas. Posso citar uma atleta minha, a Fernanda Marques, que depois saiu para o Porto e em 92 representou Portugal nos Jogos Olímpicos de Barcelona 92. Por volta de 77, concluída a licenciatura, resolvi concorrer ao ensino e fui colocado em Sernancelhe, distrito de Viseu. Em 79 estou a ser chamado para o Centro de Educação Especial, na Senhora da Hora, que era precisamente ao lado do Araújo, para ir dar aulas de Trabalhos Manuais. Entretanto, na escola apaixonei-me pela mulher com quem a casei e também pelo ensino especial, e ai fiquei vários anos, depois já em Vila Nova de Gaia. Continuava a dar os meus treinos de atletismo regular e a determinada altura apercebi-me que os miúdos saíam aos 16 anos do centro educacional de ensino especial e senti necessidade de ocupar aqueles jovens e então criei em Joane um clube, exportando o modelo do “atletismo à porta de casa” para o desporto adaptado, que foi um projeto pioneiro na altura. Entretanto cria-se uma secção de desporto adaptado no F.C.Porto, por volta de 1988, e em 90 constituímos uma associação nacional que ainda hoje existe e de que sou presidente da Direção, que é a ANDDI (Associação Nacional do Desporto para Desenvolvimento Intelectual).
SM – Quais as diferenças que encontra em termos de abordagem social e treino técnico numa e na outra categoria?
JCP – Trabalho essencialmente na área da deficiência intelectual, mas já treinei atletas com paralisia cerebral e com bons resultados. Tenho duas medalhas paralímpicas nessa área, uma em Sidney 2000, com uma atleta com paralisia cerebral, e outra em Londres 2012, com o Lenine Cunha, ambas de bronze. No que diz respeito à deficiência intelectual, onde a elegibilidade para competição obriga a que o atleta tenha um QI inferior a 65 – e não pode ter adquirido essa de deficiência após os 18 anos -, em que não há adaptações físicas ou funcionais, o treino é praticamente idêntico a um atleta sem problemas, embora equiparado às camadas jovens da formação. Onde é que está a grande diferença? Está ao nível da comunicação. Eu não lhe posso ditar o treino. Ele não percebe! Tenho que lhe controlar a sequência, a cadência, o tempo, os intervalos, o local de partida e da chegada, simplificando tudo ao máximo, com instruções presenciais curtas e precisas. Não é possível de outra forma.
“Neste último ciclo olímpico, uma medalha paralímpica teve o mesmo valor pecuniário do que uma medalha olímpica e isso é uma conquista assinalável, resultado de uma melhoria progressiva.”
SM – Como é que estão as estruturas de apoio técnico e social aos atletas com deficiência em Portugal, tendo em atenção que muitos praticam em pequenos clubes?
JCP – Isto mudou muito. O panorama mudou e embora, por exemplo, o F.C.Porto esteja nisto desde o início, começaram a aparecer outros clubes de dimensão. Muitos até começaram a abrir secções porque lhes dava a contrapartida de abrirem os Bingos. Tudo foi passando das IPSS a casas do Povo, e hoje em dia há muitos clubes regulares, o Porto, o Salgueiros, o Santa Clara, que também fazem parte da estrutura federada do desporto adaptado. Chamam-lhe adaptado mas quanto a mim faz mais sentido chamarem-lhe desporto para pessoas com deficiência, que é como se designa nossa federação de cúpula. As provas que o Lenine faz não têm adaptações acentuadas. A não ser nos 110 metros barreiras, em que a altura das barreiras é menor, ou ao nível das provas combinadas, porque eles não fazem decatlo, pois não saltam com vara. Por essa razão só podem competir no heptatlo ou no pentatlo. E o Lenine é recordista mundial do heptatlo, apesar de ter competido nos saltos horizontais, comprimento e triplo, 400 e 1500 metros e lançamento de peso. A primeira medalha de ouro que ele conquista nos Mundiais de pista coberta em 2000 é precisamente no triplo salto. Sempre lhe incuti uma formação de base diversificada no sentido de fazer mais do que apenas o triplo salto e é assim que ele chega ao pentatlo em pista coberta e o heptatlo ao ar livre. Já esteve em três Jogos Paralímpicos e falhou Tóquio por 5 centímetros.
SM – Vê muitas diferenças em relação ao que se faz lá fora, sabendo nós que os apoios sociais para a deficiência e mesmo a cultura de inclusão em Portugal enfrenta obstáculos?
JCP – Hoje em dia, no que diz respeito ao apoio financeiro para o desporto paralímpico não há razão de queixa. Foi uma luta de muitos anos. Neste último ciclo, uma medalha paralímpica teve o mesmo valor pecuniário do que uma medalha olímpica e isso é uma conquista assinalável. Foi uma melhoria progressiva. Também é uma razão que explica que haja cada vez mais treinadores do atletismo regular a migrarem para o atletismo de pessoas com deficiência. Já se ganha dinheiro nesta área.
“Pela primeira vez, os atletas olímpicos trouxeram mais medalhas do que os paralímpicos, e isto com igualdade de apoios. O paradigma mudou. Muitos países estão a apostar seriamente nesta área do desporto adaptado e, particularmente, no desporto paralímpico.”
SM – Como está a formação de treinadores nesta área?
JCP – Eu posso dizer que em termos de treino para atletas com deficiência fui um autodidacta, aprendi com os meus erros. Nos cursos de treinadores de atletismo já vai havendo alguma formação específica integrada, embora reduzida. Eu tenho o meu título de treinador renovado até 2026 e vou continuar a trabalhar na retaguarda enquanto entenderem que o meu conhecimento e experiência são válidos. Naturalmente, à medida que começamos a cruzar-nos com talentos em determinada modalidade é o próprio treinador que tem necessidade de ir a uma federação convencional fazer um curso de treinador dessa modalidade. A formação dos treinadores não termina na Universidade, é preciso experimentar o campo, ganhar experiência no terreno. E no desporto adaptado começa a acontecer o que acontecia no desporto regular, que é os principais clubes virem buscar os craques, embora não tanto nos atletas com deficiência intelectual, pois aqui há sempre uma relação muito forte entre o adepto e o treinador. Estes atletas precisam de alguém que puxe por eles. O Lenine, que treinei 22 anos, antes de se cruzar comigo todos os anos trocava de clube e de treinador, porque era um miúdo com problemas comportamentais e era difícil de aturar. Um treinador do atletismo regular quase que me pediu por favor para o treinar. E o miúdo saiu-me o paralímpico que mais medalhas ganhou em todas as competições.
SM – O nosso historial de medalhas em competições internacionais reflete uma óbvia qualidade do treino e ferramentas eficazes na motivação dos atletas. O que é eu faz a diferença?
JCP – A situação inverteu-se, pois Portugal era um dos pioneiros das participações paralímpicas. Começámos em 1962 com uma equipa de basquetebol em cadeira de rodas, quando o mundo ainda estava muito atrasado. Hoje em dia, até naquela modalidade onde eramos os mais fortes, o Boccia, pela primeira vez na nossa história paralímpica não se conseguiu nenhuma medalha na modalidade, que foi uma das mais afetadas pela pandemia. Pela primeira vez, os olímpicos trouxeram mais medalhas do que os paralímpicos, com igualdade de apoios. O paradigma mudou. Muitos países estão a apostar seriamente nesta área do desporto adaptado e particularmente no desporto paralímpico. O alto rendimento está neste último. Ainda há muito por fazer em termos de cultura desportiva em Portugal. Os miúdos que têm agora 11 ou 12 anos são os atletas que vão competir nessa altura e já deviam estar a ser encaminhados.
SM – A segmentação funcional dos atletas com deficiência é complexa e o sistema só foi verdadeiramente modernizado a partir de Barcelona, em 92, com a diminuição número de classes de competição. Qual a sua avaliação dos modelos que o movimento olímpico usa atualmente para tornar a prática desportiva competitiva e justa?
JCP – O sistema tem vindo a ser refinado. Primeiro, houve que separar por áreas de deficiência. Há quatro grandes áreas de segmentação desportiva: a deficiência intelectual, os invisuais, a paralisia cerebral e a deficiência motora. Depois, dentro de cada um destes grupos há um sistema de classificação funcional que os agrupa por classe de deficiência. Por exemplo, nos invisuais, há três grupos: o total, o de baixa visão e o amblíope, embora haja modalidades em que todos têm que assumir a cegueira total, como no futebol de cinco para cegos, em que todos têm que estar vendados.
Os surdos estão um pouco à parte, pois foram os primeiros a criarem um movimento desportivo internacional e hoje têm os seus próprios jogos, as Surdolimpíadas. Até há casos em que estas atletas participam nas competições regulares. O Hugo Passos, por exemplo, que representou Portugal na luta greco-romana nos Jogos Olímpicos de Atenas 2004 e no ano seguinte ganhou uma medalha de ouro nas Olimpíadas para surdos. E hoje já é treinador.
SM – Muitos atletas e treinadores queixam-se que o desporto adaptado tem pouca presença mediática, que está alinhado com as Paralimpíadas e, fora do evento, existe pouco. Ou seja, os atletas e treinadores não se consideram valorizados. Qual a sua opinião?
JCP – Em Tóquio, houve boa cobertura das modalidades onde entraram os portugueses, mas não em ‘primetime’ e isso reflete a falta de patrocínios e a pouca capacidade para os captar. Houve também fortes restrições publicitárias, mesmo nos jogos regulares. Em bora o comité paralímpico esteja agora muito encostado ao COI, e os contratos com as cidades sede dos jogos tenham que organizar os Jogos Paralímpicos.
SM – O nosso atleta com deficiência mais medalhado de sempre, mesmo a nível mundial, Lenine Cunha, treinado por si, ficou de fora dos Jogos de Tóquio. Como é que viveu esta desilusão e como é que ele recuperou?
JCP – Ele foi vendo o tempo de qualificação a aproximar-se do fim. Fomos de propósito a uma competição em Cáceres, Espanha, e foi mesmo uma questão de milímetros na tábua. Hoje já não sou o treinador, mas porque este marco na minha vida já estava planeado. É o fim do meu ciclo enquanto treinador de atletismo. Tudo foi tratado atempadamente e amigavelmente. Estou agora mais virado agora para o dirigismo.
SM – E a linha entre deficiência e normalidade? O Oscar Pistorius, nas Olimpíadas de Londres, em 2012, por exemplo, ‘queimou’ essa linha competindo com duas próteses mostrando que um atleta com handicap pode competir com os que não têm essa dificuldade. Porque é que não há mais casos?
JCP – Eu não concordo com a utilização de acessórios. O Pistorius ganhou um processo no tribunal arbitral mas era por demais evidente que ele tinha vantagem relativamente aos competidores. Claro que a vantagem não dava para ser campeão olímpico mas chegou às meias-finais dos 400 metros e à final da estafeta 4×100. E também foi campeão Paralímpico. Mas há casos como o alemão Markus Rehn, amputado de uma perna, que usa uma prótese no salto em comprimento. Em 2005 saltou 8,40m, uma marca que dava para ser campeão olímpico regular em 2012 e em 2016. E há outros casos de atletas paralímpicos que fazem marcas muito próximas dos atletas sem deficiência.
SM – O Professor vai retirar-se este ano. O que é que lhe faltou fazer no treino desportivo?
JCP – Faltou-me ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Paralímpicos. Consegui duas de bronze, das quais me orgulho enquanto treinador. O Lenine ganhou 226 medalhas e orgulho-me de ter assistido a todas elas.
SM – E o momento mais recompensador que viveu como treinador de desporto adaptado?
JCP – Foram muitos, mas talvez o que me tenha marcado mais foi o nosso primeiro título mundial coletivo com a equipa feminina no campeonato do Mundo de 99, em Sevilha. Pela primeira vez na minha carreira fui campeão do mundo. E as medalhas Paralímpicas de bronze, quer a do Lenine em Londres, em 2012, no salto em comprimento, quer a da Graça Fernandes, 12 anos antes, em Sidney 2000, nos 400 metros da classe T38 para atletas com paralisia cerebral.
*JOSÉ COSTA PEREIRA, 64 anos, nasceu em Ramalde, Porto. Licenciou-se em engenharia eletrotécnica e é treinador de atletismo adaptado há mais de quatro décadas. Presidente da direção da ANDDI (Associação Nacional do Desporto para o Desenvolvimento Intelectual), é também Diretor Técnico da Comissão de Atletismo da Virtus, a Federação Internacional de Desporto para pessoas com deficiência intelectual.