Por Aldo Matos da Costa 1,2,3
1 Professor Associado com Agregação na Universidade da Beira Interior (UBI)
2 Presidente da Associação Portuguesa de Técnicos de Natação (APTN)
3 Vice-presidente da Confederação de Treinadores de Portugal (CPAT)
No mês passado, a Treinadores de Portugal, no âmbito do seu 9º congresso, promoveu uma mesa redonda sobre a temática “propostas legislativas – treinadores”. Não sendo um problema recente também não é um problema resolvido, e por isso importa densificar a discussão.
Ora, no dicionário da Porto Editora, uma profissão representa o “exercício habitual de uma atividade económica como meio de vida; ofício; mister; emprego; ocupação”. Mas uma coisa é o seu significado, outra será o seu reconhecimento. De facto, a literatura parece ser abundante em conceitos e em critérios, embora seja bastante consensual considerar que a natureza de uma profissão tende a assentar num conjunto particular de conhecimentos, de competências e de valores.
Ainda que o conceito de ocupação e de profissão sejam usados de forma abusivamente arbitrária, são bastante evidentes os padrões que nos ajudam a diferenciar o segundo do primeiro (veja-se, por exemplo, o trabalho de Witter-Merithew, 1990): (i) a existência de requisitos de competência e de comportamento sobre os quais os membros aceitam cumprir; (ii) a existência de um campo de especialização, assente num quadro de conhecimentos e de competências desenvolvidas pela instrução académica; (iii) a existência de mecanismos que permitem testar e determinar a qualificação de base dos seus membros, assegurando a responsabilidade por monitorizar a prática baseada na evidência e em padrões de conduta; (iv) a existência de mecanismos de auto-monitorização, de liberdade de opinião, e no qual se verifica uma evolução da teoria e da prática, favorecendo a partilha do conhecimento acumulado.
Em termos mais práticos, julgo que podemos afirmar que os treinadores portugueses já acumulam um sólido corpo de conhecimento cientifico, uma missão social plenamente definida, um código deontológico, um regime de qualificações de acesso, uma associação profissional (até várias, por colégios de especialidade), um programa de formação contínua, um sistema de monitorização e, atrevo-me a dizer, um sentido de comunidade. Porém, teremos também que reconhecer que a “ocupação” do treinador tem facetas muito próprias, com enorme variabilidade internacional, o que é per si uma força de inércia. Por isso, todo o exercício intelectual que possamos acumular para enquadrar a atividade do treinador enquanto profissão será bem vindo. Aliás, até seria salutar poder partilhar com outras profissões o percurso histórico que estas já calcorrearam. Isto foi sugerido, inclusive, na mesa redonda que atrás referi.
Acima de tudo parece-me importante ter a noção que a designada Lei dos treinadores (Lei 109/2019, de 6 de setembro, que procede à primeira alteração à Lei 40/2012, de 28 de agosto) apenas estabelece o regime de acesso e exercício da atividade. Claro, e muito bem, que se objetiva “contribuir para o reconhecimento público da importância social do exercício da atividade e da profissão de treinador de desporto” (alínea f, do artigo 2). Isto não é uma questão menor, até porque a noção comum de um dado contrato social entre uma profissão e a sociedade será determinante para esta lhe conceder privilégios no uso do seu conhecimento especifico e, por isso, é, ou deveria ser, concedida a respetiva autonomia e auto-regulação (ver, por exemplo, o trabalho de Cruess et al., 2004).
Vejamos também que para os efeitos da referida lei, a atividade do treinador pode ser exercida como “profissão exclusiva ou principal, auferindo por via dela uma remuneração” ou “de forma habitual, sazonal ou ocasional, independentemente de auferir uma remuneração” (alínea a e b, do artigo 3, respetivamente). Se juntarmos a esta matriz da atividade as diferentes possibilidades de acesso ao título profissional (via académica, via profissional ou reconhecimento de competências), torna-se complexo prever o enquadramento da profissão no quadro nacional de qualificações (Portaria n.º 782/2009, de 23 de julho), mesmo atendendo que apenas 12% dos títulos de treinador tenham origem no reconhecimento da sua formação académica (dados publicados pelo IPDJ em 2022).
Isto não seria um problema se os nossos treinadores, na sua maioria entre os 30 e os 50 anos, pretendesse exercer a sua “ocupação” sem a clara expectativa de auferir uma remuneração, entenda-se em cabal e inequívoco regime de voluntariado. Certamente que existem, mas tenho dúvidas que sejam a regra. Não obstante, e partindo do pressuposto que não cederíamos na importância das qualificações de acesso e da formação contínua, assistimos a um complexo espectro de atividade que inclui o treinador voluntário, o treinador profissional do desporto amador (a tempo parcial ou total), e o treinador profissional do desporto profissional que, geralmente, exerce a ocupação a tempo inteiro. Como os contornos da formação de base são muito semelhantes com outras “profissões do desporto”, talvez fosse ainda útil permitir um olhar transversal a todos esses perfis e ao respetivo enquadramento laboral que também não está devidamente regulado – refiro-me particularmente ao técnico de exercício físico (na sua maioria licenciados em educação física e deporto) e ao diretor técnico.
Estou certo que todos partilhamos a forte convicção de que ser treinador é uma profissão científica, mesmo que desempenhada de forma voluntária. Caso contrário, colocar-se-ia em causa a razão de ser das vias de acesso e de revalidação periódica da cédula profissional. Já o disse por diversas vezes que os nossos treinadores são bem preparados, são inclusivos, assumem riscos e respondem pelos seus resultados. Mas se não distinguirmos o que se espera de um treinador voluntário relativamente a um profissional, a noção de dignidade laboral deste último torna-se complexa de definir, e por isso assistimos todos os dias a práticas remuneratórias mercantilistas e sem qualquer proteção social.
Este problema só se coloca na ausência de um regime jurídico-laboral, pelo que a regulamentação existente parece ter sido criada numa ordem pouco inteligível. Aliás, a análise de jurisprudência não é de todo consensual na medida que nem o Código do Trabalho nem o Regime Jurídico dos Contratos de Trabalho dos Praticantes Desportivos parecem ser suficientes para dar resposta às diversas situações jurídicas que se têm vindo a colocar sobre os contratos de trabalho / prestação de serviços entre treinadores e demais entidades empregadoras.
O ecossistema do futebol profissional resolveu parcialmente esta lacuna regulamentar através da aplicação, e desde há vários anos, de um contrato coletivo de trabalho entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e a Associação Nacional dos Treinadores de Futebol. Por falta de legitimidade jurídica de representação das partes, tal possibilidade não parece ser admissível no desporto amador.
Obviamente que se poderia dizer que a sustentabilidade dos (alguns) clubes não permite outro cenário perante a atual conjuntura política e económica. Como todos sabemos, o sistema desportivo português grita por uma séria e profunda revisão. Quando isso acontecer, espero que a departamentalização dos desafios não exclua da discussão a importância do regime jurídico-laboral do treinador, que a assumir uma regulamentação completa, teria que contemplar as especificidades das diferentes modalidades, escalões, âmbitos de prática e, necessariamente, a natureza voluntária ou profissional da atividade. Esse caminho, que ainda está por fazer, permitirá regulamentar matérias como a retribuição e demais contornos da relação laboral em articulação com a progressão de carreira do treinador, a duração e o horário de trabalho, o regime de férias, faltas e licenças, as condições de saúde, higiene e segurança e até as condições de recrutamento e seleção – ou seja, um completo estatuto da carreira do treinador português. Oxalá!