No final de 2021, a SportMagazine – Revista de Treino Desportivo nasceu, tendo a edição número 0 (zero) sido lançada oficialmente a 19 de novembro, durante o 13º. Congresso Mundial de Treinadores ICCE (International Council for Coaching Excellence), que se realizou em Lisboa. Na capa, surgia Jorge Braz, selecionador de Futsal, cuja entrevista abria com destaque o dossier temático desse número, sobre “O Sucesso dos Treinadores Portugueses”.
Numa altura em que a Seleção Nacional de Futsal defende o título mundial no Uzbequistão, conquistado depois dessa entrevista de 2021 pela equipa liderada pelo mesmo Jorge Braz, aproveitamos a celebração do Dia do Treinador deste ano para iniciar a publicação dos melhores artigos e entrevistas com os Treinadores que têm composto todos os números editados pela SportMagazine. Começamos com essa entrevista inicial, que se tornou paradigmática quanto aos objetivos deste projeto: dar voz aos Treinadores e mostrar a excelência do seu trabalho.
“Só teremos praticantes de qualidade se tivermos treinadores qualificados”
Jorge Braz
O treinador campeão do Mundo de Futsal tem a modéstia de quem sabe que o sucesso só produz mais sucesso quando é alimentado, “Não podemos agarrar-nos ao passado”, diz-nos Jorge Braz, admitindo que há ainda muito trabalho a fazer no desenvolvimento sustentado do Futsal.
Sport Magazine (SM) – Esta vitória de Portugal no Campeonato do Mundo de Futsal é resultado de um percurso, de um trabalho de anos. Como é que se construiu este sucesso?
Jorge Braz (JB) – O sucesso nestas últimas épocas desportivas, ao contrário do que acontece por vezes no nosso desporto, deveu-se às bases que se criaram e à forma como se foi trabalhando para isso acontecer. Foram criadas condições mais sustentadas para que fosse mais fácil e mais possível atingir resultados e títulos. Muito graças à visão estratégica da Federação e à aposta do presidente no desenvolvimento de um plano estratégico que foi elaborado para ter um rumo, primeiro definindo objetivos e metas ambiciosas, e depois criando todos os eixos estratégicos e todos os programas necessários para atingir esses objetivos. Acho que foi muito por aí. O trabalho tem vindo a ser desenvolvido e há uma série de indicadores que basta olhar e comparar o número de competições nacionais que existe neste momento, o número de seleções nacionais que existe, a qualificação do jogador português, uma série de programas de valorização e qualificação dos nossos jovens. Muita coisa foi feita. Como lhe disse, tentou desenvolver-se aqui uma linha de rumo e, sobretudo, sustentar as bases do futsal para que estivéssemos mais perto do sucesso, o que de facto aconteceu.
SM – Que valor têm neste sucesso os processos de treino e como tem evoluído no futsal?
JB – É fundamental a formação e a qualificação dos nossos treinadores. Todo o processo de formação de treinadores, como a bolsa de treinadores, que frequentemente se vai aumentando. Vamos fazendo essa formação, tentando ter uma visão clara no que devemos apostar e o que deve ser prioritário, de acordo com a realidade do Futsal. Sempre foi nossa preocupação dizer que a melhor forma de treinar é escolher opções que estejam de acordo com a nossa realidade, de acordo com as nossas estruturas e de acordo com o que acontece nos nossos escalões jovens, na nossa prática feminina. E essas prioridades têm estado presentes ao longo dos anos na formação de treinadores, na formação contínua, na produção de documentação e organização desse processo, o que também foi sempre uma grande preocupação da Federação e da estrutura técnica nacional. Não vamos ter praticantes de qualidade se não tivermos treinadores adequadamente formados, a saber estabelecer prioridades, a saber o que é fundamental para termos meninos e meninas a jogarem melhor futsal mas, acima de tudo, a serem melhores desportistas e melhores pessoas, para assim poderem atingir os seus objetivos pessoais e as suas metas. Essa foi uma linha muito importante traçada desde 2000, quando se iniciou o processo de formação de treinadores no Futsal. E é nesse rumo que temos vindo a apostar muito, a reformular e a refletir constantemente sobre o que há alterar e a melhorar. Já reformulámos os referenciais de formação de treinadores várias vezes mas sempre com uma partilha e uma participação grande de todos os treinadores. Repito: ter treinadores qualificados é fundamental.
SM – Tem elogiado o trabalho do psicólogo da seleção junto do jogadores. Nestes processos que conduzem ao triunfo desportivo, como é que se equilibra a liderança – que cabe ao treinador – com a necessária força mental?
JB – Como lhe dizia anteriormente, é muito importante perceber o que é essencial e quais são as prioridades. Se nós traçamos objetivos muito claros, depois temos é que proporcionar todas as condições aos atletas para treinarem e para competirem de acordo com os objetivos que estabelecemos. É claro que o maior exemplo tenho que ser eu. Se eu não acredito, se estou ali com mentiras, se ando ali com aquelas verdades de ‘La Palice’ para motivar, a dizer que não vamos conseguir ganhar a estes ou àqueles, que a forma como queremos jogar não é a ideal, o resultado não pode ser bom. Nós temos que proporcionar todas as condições aos atletas e aí temos uma equipa técnica grande, multivariada, especialistas no controlo do treino e o psicólogo, que também faz parte da equipa técnica. A todos os fatores de rendimento temos que atribuir a devida importância, planear, executar e depois ajudar os atletas. Eles são sempre os atores principais. A nós cabe-nos proporcionar-lhes condições para que se exibam da forma que é necessária para a equipa, para depois atingir os nossos objetivos. O equilíbrio aqui é este: nós definimos o rumo e o percurso que queremos, na forma com o treinador o entende. Depois é acreditar fielmente no que estamos a fazer. Esse é o ponto de partida. Acreditar, perceber, trabalhar muito e bem e ter uma enorme confiança no grupo que reunimos, na forma como queremos jogar, na forma como queremos abordar cada um dos jogos, abordar os estágios, os treinos e os exercícios. E confiar. No fundo, confiarmos uns nos outros.
SM – O treinador deve ter uma abordagem compreensiva com os atletas, sendo rigoroso e duro quando necessário, mas sempre disponível para ouvir os seus problemas e as suas preocupações em todas as dimensões das suas vidas?
JB – Também neste aspeto devemos procurar o equilíbrio. Ora, se os jogadores são os atores principais, o que os preocupa a eles tem que nos preocupar a nós. Se não estão bem, se estão com problemas, também temos que nos preocupar. Claro que o importante é o bem-estar deles. Para mim é muito claro. Eles estão acima de tudo, eles têm que ser os protagonistas de tudo isto. Eu falo muitas vezes em família. Os jogadores são, no fundo, meus filhos durante os estágios e as competições. E os filhos são as pessoas mais importantes que temos na vida. São os únicos a quem nós damos um puxão de orelhas ou uma palmada. São as únicas pessoas a quem fazemos isso. As únicas pessoas. Com os atletas é a mesma coisa. Muitas vezes têm que levar umas palmadas…Mas isso já é quando somos genuínos e honestos e queremos, essencialmente, o bem-estar deles.
SM – O professor disse que este sucesso na Lituânia foi o resultado de um processo e que esse caminho teve muito a ver com estratégias de formação dos treinadores ao longo dos anos. Estando essa qualidade de formação adquirida, e estando o resultado agora mais visível, a que patamares a modalidade pode aspirar?
JB – Ainda temos muito a fazer. A qualificação nas etapas iniciais é vital. Ainda não temos muitos treinadores devidamente qualificados para intervir nessas etapas iniciais da prática da modalidade. Quando falamos de juvenis e de juniores nos campeonatos nacionais, felizmente temos já bastantes treinadores de excelência. No entanto, nas bases encontramos de facto excelentes projetos, mas é ainda necessário qualificar mais a intervenção nessas etapas iniciais, nas escolinhas, nas academias, nos benjamins. Cada vez que um miúdo chega a um clube e começa a jogar Futsal, essa experiência tem que ser muito positiva e altamente enriquecedora, e isso só acontece com treinadores com o perfil adequado para essas etapas. Lançámos agora um livro sobre os fundamentos do jogo, que ensina as coisas simples do jogo, mas temos ainda muita obra pela frente. Temos que aumentar a prática feminina, ter mais meninas a praticar, seja Futsal, futebol ou outra modalidade. Temos que aumentar o interesse e a adesão das meninas para a prática do desporto em geral. Por isso insisto que há ainda muito por onde evoluir e por sustentar. É verdade que temos aumentado a sustentação do Futsal mas ainda podemos evoluir muito. É refletir, avaliar tudo o que tem sido feito até agora, perceber o que podemos melhorar, reformular e continuar o rumo. Como eu sempre digo, não podemos agarrar-nos ao passado, mas sim olhar para a frente e tentar sempre melhorar e desenvolver cada vez mais o Futsal.
Entrevista publicada no nº 0 da SportMagazine, em novembro de 2021.
Por: Carlos Saraiva
Fotos: FPF