Ao contrário do que se pensa, muitas horas estacionado em frente ao computador não faz a diferença nos desportos eletrónicos. A diferença está na agilidade cognitiva, no foco e na capacidade de incorporar ferramentas sociais externas ao jogo. Raul Faria, coordenador de futebol virtual da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) explica à SportMagazine como o eFootball tem desenvolvido um ecossistema.
SportMagazine (SM) – Passar 40 horas por semana frente ao computador garante vantagens competitivas a um jogador de efootball?
Raúl Faria (RF) – Nenhuma vantagem. Isso é uma perceção errada. As pessoas têm tendência a presumir que se o jogador A joga 40 horas por semana e o jogador B joga 20 horas, o A é melhor do que o B. Não é verdade. Os resultados das nossas competições provam que a média de horas de jogo não influencia o desempenho na competição. Por vezes até prejudica. Em 2018, quando organizámos o campeonato nacional de ‘um para um’ no Altice Arena, em Lisboa, o evento foi longo, causou muito desgaste aos jogadores e, em certa medida, afetou o seu rendimento competitivo. A partir daí concluímos que era necessário reduzir a carga competitiva em eventos.
SM – Que panorama se apresenta Portugal nesta área?
RF – Tem havido um crescimento orgânico, em particular no futebol, que nos últimos anos tem beneficiado do crescente interesse de entidades como a Federação Portuguesa de Futebol (, a UEFA e a FIFA, ao desenvolverem competições e criarem iniciativas à volta do futebol virtual, acabando por contagiar todos os agentes da modalidade, nomeadamente os clubes tradicionais. A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) desenvolve desde 2017 um ecossistema na modalidade, sustentado com a criação de uma plataforma para os atletas e para os clubes, (efootball.fpf.pt) onde qualquer jogador ou fã da modalidade pode inscrever-se e receber um registo identificativo, quase como se fosse um atleta federado. E também foram desenvolvidas competições e eventos que vão ao encontro do universo gaming, mas também do efootball. A FPF acaba por ligar os dois mundos, organizando eventos em palcos como o Jamor, o Estádio Municipal de Aveiro ou o Estádio do Algarve, fazendo-os até coincidir com as competições futebolísticas, como a final Taça de Portugal ou no fim-de-semana da Supertaça. Desta forma tem e dessa forma criar ali uma ligação equilibrada e muito orgânica entre os dois universos. Mais recentemente, a UEFA e a FIFA também organizaram grandes competições internacionais, a FIFA organizou o Mundial, que já é disputado por mais de 20 federações de todo o Mundo, e a UEFA ainda este ano organizou o Europeu 2021 de futebol virtual, que contou com as 55 federações numa fase de qualificação. Será uma competição anual. É um incentivo importante para que as federações possam desenvolver os seus ecossistemas e cheguem ao patamar de excelência que é a seleção nacional, onde recebemos os melhores atletas da comunidade.
SM – Há federações de outras modalidades a desenvolverem os desportos eletrónicos?
RF – Sim. A federação de basquetebol também tem criado competições de basquete virtual. E haverá mais federações. As competições nos desportos eletrónicos têm um impacto indireto, tal como o futebol. No Euro deste ano, por exemplo, ficou muito evidente esta questão. Basta lembrar o episódio das garrafas, por exemplo, passando pelas músicas, promoção, publicidade. Nós também conseguimos atrair uma série de dimensões associadas ao mundo dos jogos eletrónicos. Conseguimos usar a plataforma do gaming para servir a vertente competitiva, mas podemos servir-nos da tecnologia para iniciativas de solidariedade. Os jogos eletrónicos são um fator de inclusão social, quebram fronteiras culturais e eliminam distâncias. Você pode jogar com alguém que está do outro lado do Mundo, ou pode jogar em competições só para famílias, e por aí adiante. Tudo isso pode servir às federações desportivas, não só para desenvolver a atividade desportiva em si, mas também para terem presença e intervenção em áreas e causas socialmente relevantes.
CS – Com é que está organizada esta área dos eSports na FPF?
RF – Há uma divisão integrada no departamento de marketing desde 2017, mas é uma divisão que tem exatamente as mesmas condições, responsabilidades e ambições de qualquer outra unidade competitiva dentro da Federação, que está a seguir uma estratégia de desenvolvimento comparável com o que fez com o futebol, o futsal ou o futebol de praia.
SM – Que perfil de jogador que recrutam?
RF – O jogador tem que ser mentalmente muito forte para poder desatacar-se, pois é uma modalidade muito exigente a nível mental, muito rápida, onde a concentração e os reflexos são essenciais para obter bons resultados. É preciso uma boa preparação. O futebol virtual na Federação é para maiores de 18 anos, para que os jogadores já tenham feito nas suas vidas percursos no futebol tradicional, no futsal ou no futebol de praia, para que depois tragam conhecimentos essências para o futebol virtual. A partir daqui é uma modalidade mais inclusiva do que outras, pois é para qualquer tipo de jogador, de qualquer idade ou sexo. 40% dos jogadores de desportos eletrónicos têm entre 18 e 25 anos, 30% estão na faixa dos 25 aos 35 e os restantes são abaixo dos 18 e acima dos 35.
SM – Todos eles têm um histórico de ligação precoce aos jogos? Começaram a jogar muito cedo?
RF – A ligação com o futebol convencional é muito importante para estes jogadores, pois o jogo acaba por ir buscar muito ao futebol. Depois, requere a adaptação técnica. Os desportos eletrónicos têm uma grande dinâmica de craques, muito por via das alterações técnicas e até tecnológicas que vão sendo com frequência incorporadas no jogo. Era como se no futebol estivéssemos sempre a fazer alterações na bola de jogo. No nosso campeonato tivemos sempre campeões diferentes. O campeão de 2018 nem sequer se qualificou para os melhores 32 de 2021. Os ciclos de sucesso são curtos.
SM – Há treinadores nos eSports?
RF – Tem sido uma figura cada vez mais comum nas nossas competições, embora não tenha a figura de um treinador convencional. Não é um elemento activo. O jogo tem decisões muito rápidas, tomadas em milésimos de segundo, é sempre o jogador que decide. O treinador serve para apoiar a parte mental, é como se fosse um observador, um pouco como fazia o Alex Ferguson, no Manchester, quando ia para a bancada assistir ao jogo de um ângulo diferente, com outra calma tranquilidade para analisar o que estava a acontecer. No futebol virtual, o treinador dá essa perspetiva diferente ao jogador, para o ajudar no jogo seguinte a fazer as correções que podem ser decisivas para ganhar. Ainda estamos muito no início para definir o papel do treinador, medir o impacto que poderá ter. Só mais tarde fará sentido falar em formação.
SM – Que tipo de treino fazem estes jogadores?
RF – A alimentação é essencial, a questão da atividade física também. Há também atividade muito específica para análise do adversário, estudar perfis, treino interno com outros jogadores, marcação de jogos amigáveis, etc.
SM – Quantos jogadores ‘profissionais’ existem em Portugal?
RF – A maior parte dos jogadores tem outras atividades profissionais. Em Portugal não serão mais que 5 ou 6, contratados por clubes ou por patrocinadores. Já existem algumas equipas privadas com uma estrutura profissional. Por exemplo, o Diogo Jota tem uma equipa, e o Toto Salvio, que jogou no Benfica, também tem uma equipa. Há mais de 22 mil inscritos na plataforma da FPF.
SM – Há algum ‘Ronaldo’ nas seleções nacionais de futebol virtual?
RF – Nós começámos num patamar muito elevado. Tivemos o campeão do mundo em 2011, depois a modalidade parou um pouco, mas com a entrada da FPF, em 2017, as coisas mudaram. E apesar de não termos uma Ronaldo em particular, temos muitos bons jogadores. É como se fôssemos a nossa seleção de futebol real, mas sem o Ronaldo. No Mundial da FIFA em 2019 ficámos em terceiro lugar entre 20 federações. No ranking estamos em oitavo lugar.
*RAUL FARIA, 31 anos, nasceu em Beja, cresceu em Tavira e viveu durante muitos anos em Hamburgo, Alemanha.
Apaixonado desde sempre por videojogos, foi a partir de 2011 um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento da comunidade nacional de futebol virtual, através da organização de diversos torneios, ligas e eventos. O hobby tornou-se profissão em Hamburgo, Alemanha, onde foi Gestor de Qualidade da Travian Games entre os anos 2014 e 2016.
A sua influência na comunidade permitiu-lhe criar, ainda em 2016, a Liga Portuguesa de FIFA, um ano antes de ter sido convidado para coordenar a divisão de futebol virtual da FPF. No cargo atual, utilizou toda a sua experiência para idealizar o calendário competitivo (80 torneios), liderar a organização a dezenas de eventos, criar a Seleção Nacional de Futebol Virtual (ficou em 3.º lugar na primeira competição com a chancela FIFA) e registar mais de 22000 jogadores e 300 clubes na plataforma efootball.fpf.pt.