Uma das principais autoridades do atletismo nacional, pode-se dizer que Paulo Reis vive atualmente o auge de uma carreira de mais de 30 anos. Técnico nacional de lançamento da Federação Portuguesa de Atletismo, é o treinador da atleta olímpica Auriol Dongmo, há poucos dias campeã mundial no lançamento do peso em pista coberta, em Belgrado.
Em entrevista à SportMagazine, Paulo Reis, 49 anos, falou sobre o percurso de décadas até se tornar um profissional de referência, quais os métodos a utilizar para se manter atualizado, pontuou sobre questões técnicas do lançamento e fez ponderações sobre o desenvolvimento do atletismo nacional.
Especificamente sobre a atleta de maior destaque, a Auriol Dongmo, Paulo Reis projetou a lançadora do peso como uma das favoritas ao título do Campeonato do Mundo e do Europeu, a serem disputados, respetivamente, em julho e agosto deste ano. Entretanto, admitiu que o maior dos objetivos está ainda distante: os Jogos Olímpicos de Paris 2024.
SportMagazine (SM) – É muito comum que se fale da preparação dos atletas para as competições. Mas o Paulo Reis está há três décadas a trabalhar no alto rendimento. De que forma consegue manter-se atualizado ao longo de tanto tempo como referência na profissão?
Paulo Reis (PR) – Não posso considerar que estou há 30 anos no topo. No princípio, como em todas as profissões, estava na fase inicial da minha carreira e, portanto, os resultados ainda eram resultados do nível baixo e eu tinha muito para aprender, como continuo ainda hoje em dia. Posso dizer que a partir do ano de 2000, mais ou menos, neste século, sim, comecei a ter resultados, a ter atletas nos Jogos Olímpicos, em Campeonatos da Europa e Mundiais. Efetivamente, em Portugal, que é um país que não tem muita tradição na área dos lançamentos, fui deixando alguma marca, alguma referência e, claro, agora sobretudo com este título mundial isso fica ainda mais marcado.
Para me atualizar e para poder fazer a cada passo um trabalho de maior qualidade, conto com várias vertentes. Primeiro, a experiência acumulada. Quer como treinador, quer como pessoa, a experiência de vida. É importante na forma como conduzimos pessoas, como lidamos com as pessoas. Estamos num desporto individual e a empatia que criamos com os atletas, a forma como conseguimos motivá-los e incentivá-los para serem melhor todos os dias é muito importante.
Depois, tento fazer regularmente contatos com treinadores de referência, quer portugueses, quer estrangeiros, e digamos que tenho uma rede de contatos e de informações que partilhamos que faz com que eu, pelo menos quando tenho que tomar decisões importantes na carreira do atleta, ou numa alteração da técnica, ou a nível da preparação, eu tente não tomar a decisão apenas pela minha intuição, mas também ouvir alguns outros profissionais. E não só treinadores do lançamento, mas profissionais na área da condição física, fisioterapeutas, massagistas, médicos etc. Felizmente, temos um grupo de trabalho grande, unido, muito profissional a que vamos recorrer. E depois, obviamente, também tento participar em ações de formação, quando existem, e podem acrescentar alguma coisa. E ler algumas coisas que vão surgindo…
Claro, qualquer profissional como eu ou em qualquer área, independentemente de tudo, é muito importante ter uma autocrítica. Se ficamos facilmente satisfeitos com o que fazemos e com o que produzimos e se acharmos que já estamos ao melhor nível e que estamos a olhar para a nossa obra de arte e contemplá-la com satisfação, isso é um dos maiores obstáculos para que continuemos a evoluir. Eu nunca na minha carreira fiquei satisfeito com o que fiz. E não é agora que a Auriol foi campeã do mundo que eu consigo relaxar. Tento sempre procurar mais e mais e melhor e andar na luta. Penso que isso é uma das razões pelas quais já estou há tanto a trabalhar em alto rendimento e sempre com alguns resultados.
SM – Falou da empatia com seus atletas… A Cátia Ferreira, que foi a sua atleta e hoje é treinadora da saltadora Evelise Veiga, afirmou que o tem como uma inspiração profissional. Ao longo de tantos anos de trabalho, qual considera ser o maior legado que já conseguiu deixar aos seus atletas?
PR – Eu tento criar uma relação próxima com os atletas e tento passar-lhes alguns valores que penso que são importantes não só como atletas, mas como pessoas. E tento que, ao longo da vida, o atletismo também os prepare para a vida lá fora. Para nós, o atletismo é muito importante, mas a vida é muito mais que o desporto e o atletismo. Tento ser uma pessoa, simultaneamente exigente, mas bem-disposta e divertida; uma pessoa honesta, trabalhadora, responsável, respeitadora e isso também é importante no atletismo e na vida; tento ser uma pessoa dedicada e empenhada naquilo que faço.
Portanto, esta é a minha forma de estar e o exemplo que eu tento partilhar com os meus atletas. Tento que eles sejam ambiciosos, mas que trabalhem para os objetivos que o definem. Tento que eles sejam honestos no trabalho, que não tentem usar atalhos, ou caminhos proibidos e pouco recomendados, e, portanto, tento fazer isso como treinador e tento passar esse exemplo.
A vida também é uma competição e se nós estivermos preparados para definir objetivos ambiciosos, trabalhar em prol desses objetivos, não desistir às primeiras adversidades e continuar a nossa luta com determinação e resiliência, penso que estamos a preparar desportivas, mas também a preparar pessoas para as dificuldades que a vida nos impõe. Falando em legado, é isso que eu posso deixar, tentar que eles sejam melhores pessoas, melhores profissionais e que o atletismo os prepare para a vida.
SM – Na carreira do Paulo já passaram inúmeros atletas de relevo. Destacaria algum ou alguns deles?
PR – Posso dizer que felizmente todos os atletas que eu treinei me deram prazer em treinar. Na vida, eu tive muitos atletas que de uma maneira ou de outra me marcaram. Em termos de resultados, vou referir a Auriol que é a única campeã do [Campeonato do] Mundo e da Europa que eu treinei, portanto é que a se destaca mais. Em termos pessoais, tive vários atletas que me marcaram muito e para não correr o risco de referir alguns e me esquecer de outros prefiro agradecer-lhes a todos porque nós também vamos crescendo com os atletas. Às vezes na dificuldade deles e na solução para os problemas deles é que vamos crescendo como treinadores. E tive muitos que me ajudaram muito e algumas vezes pela forma menos convencional.
Mas salientaria também enquanto atletas, em termos de resultados, a Vânia Silva, que foi a minha primeira atleta olímpica, atleta que eu passei por muitas dificuldades e conseguimos superar quase todas. Ela, ainda aos 42 anos, continua a lançar e a ser, neste momento, a melhor atleta do ranking nacional na disciplina dela. E tive também uma atleta, a Irina Rodrigues, que em termos de resultados desportivos, foi uma atleta olímpica e diria que está entre os atletas que mais me marcaram também.
SM – O que define a especialidade de um atleta do lançamento? Existem o peso, o disco, o dardo, o martelo… Como se avalia que uma dada modalidade é a melhor para um determinado atleta?
PR – Há aspetos daquilo que é o perfil do atleta, mas depois acima de tudo também há na prática, no terreno, aquilo que é o jeito, o talento, a sensibilidade que o atleta tem para cada uma das disciplinas. Podemos dividir esses quatro lançamentos: o peso, o disco, o dardo e o martelo em vários grupos.
O lançamento do dardo é mais leve. O atleta para ser um bom praticamente tem que ser rápido, flexível, muito elástico, coordenado e tem que ser quase um atleta do decatlo, muito completo. Depois, temos os lançadores do peso, que é a partida de todos. Tem que ser os mais altos, os mais fortes, os mais pesados, mas têm que ser rápidos, coordenados. Mas se por acaso aparece um indivíduo que pesa 110 kg e mede 1,90m, à partida não tem um perfil do dardista e à partida encaixa-se num lançamento mais pesado como o do peso.
Depois temos o disco, que é uma disciplina onde as características dos atletas se assemelham muito ao peso. Embora exista também a envergadura, ou seja, o cumprimento dos braços é determinante. Se for um atleta alto com os braços bem cumprimentos, pode não ser tão forte, pode ser mais longilíneo, à partida poderá encaixar-se mais no disco. E o martelo é um misto, quase qualquer tipo de fisionomia pode dar jeito à disciplina, mas depende muito da questão coordenativa e rítmica da pessoa.
Portanto um treinador que trabalha em lançamentos como eu, quando recebe o atleta que ainda não está especializado, normalmente fazemos com que ele experimente cada um dos lançamentos, embora logo à partida já percebemos que é capaz de se encaminhar mais para uns do que para outros. Mas, após alguma experimentação, quer em treino quer em prova, vamos perceber para que disciplina que ele apresenta mais aptidões e vamos encaminhar para essa disciplina. É um processo que às vezes leva tempo, às vezes é um pouquinho mais rápido, porque há atletas que são bons em mais do que uma disciplina e é difícil escolher.
SM – Em outras entrevistas, o Paulo Reis já afirmou que a Auriol é uma atleta que “gosta da grande competição e tem uma grande capacidade de superação nos momentos mais importantes”. Neste sentido, é atualmente muito debatido a vertente psicológica dos atletas de alto rendimento. Como é que essa questão é trabalhada com esta atleta que aparentemente está sempre num alto grau de concentração?
PR – A esse nível não há nenhuma receita que possamos aconselhar para todos. Cada atleta é um atleta diferente. Quando estamos numa competição importante, podemos ter dois atletas. E se nós dermos um berro, gritamos a exigir de um atleta, para um aquilo pode ser o gatilho que faz disparar para uma grande prestação e para outro pode ser intimidatório e deixá-lo completamente bloqueado por ter o treinador a gritar com ele. Portanto, este é apenas um exemplo para dizer que cada atleta é um atleta, tem características diferentes e nós como treinadores temos que conhecê-lo, perceber a que tipo de estímulos ele reage melhor e depois, na parte prática, quando estamos perante estas competições, aplicarmos aquilo que achamos que faz mais resultado.
No caso da Auriol, ela é naturalmente muito competitiva. E trabalhamos essa competitividade dela nos treinos. Temos um treino que tem muitos desafios que ela tem que superar, seja a distância, carga ou determinado tempo que tem que cumprir. Portanto, fomentamos muito a competitividade no treino para ela também se preparar para esses momentos. Depois, ela é uma atleta muito positiva. Isso é algo que nós também tentamos criar no ambiente do treino, um espírito positivo de conquista.
Quando no processo de preparação temos essa capacidade de superação aos desafios constantes no treino, esse espírito positivo perante o processo de treinos e adversidades que vêm dele, o atleta está mais bem preparado para chegar à competição. No caso da Auriol, acontece isso mesmo. Quando chega a competição, o meu objetivo é tentar não falar muito. Quando digo alguma coisa, busco dizer as palavras certas, normalmente pelo lado positivo, mas já tive provas que tive que usar estratégias diferentes. Mas tento sempre passar uma energia positiva e alegria durante o processo competitivo para não tornar algo que já é muito pesado, são provas importantes e para as quais se perde muitas horas a preparar, numa coisa menos pesada.
SM – Este ano, ainda temos o Campeonato do Mundo em Oregon e os Europeus em Munique, em julho e agosto. É difícil não esperar um novo pódio, não é verdade?
PR – São duas provas exigentes, mas obviamente o Mundial é bem mais exigente. Neste momento, no contexto do lançamento do peso feminino, a Europa é muito forte, mas além dela há no continente americano sobretudo Canadá, Estados Unidos e Jamais, atletas fortes. E depois ainda há as chinesas que agora tiveram ausentes desse Campeonato do Mundo de Pista Coberta. Não podemos esquecer que a campeã olímpica é uma atleta chinesa.
Penso que o Mundial vai ser uma prova muito exigente, com cinco ou seis atletas candidatas às medalhas e claro a Auriol também vai ser uma delas. Significa que a este nível o equilíbrio é muito grande e a diferença entre o primeiro e o sexto lugar se calhar vai estar uma diferente de 50 ou 60 centímetros. Neste intervalo, vai haver alguém que vai chegar um bocadinho mais acima na classificação e outras um pouquinho mais abaixo.
No Europeu, após o Mundial, não havendo as atletas orientais nem as americanas, à partida o nível espera-se que seja um pouco mais acessível, mas não deixa de ser na mesma difícil nem de haver na mesma outras adversárias fortes que lhe irão dar luta. De qualquer forma, nós vamos trabalhar sempre para ganhar medalhas, quer numa quer na outra, e quando digo ganhar medalhas significa que se poderemos ser segundos não vamos querer ser terceiros e se poderemos ser primeiros não vamos querer ser segundos.
A nossa ambição não tem limites e nós vamos entrar nas provas para lutar pelas vitórias. Podemos ganhar não ganhar, podemos ir ao pódio ou não ir, mas vamos fazer tudo por tudo para nos prepararmos o melhor possível e para chegarmos lá no melhor nível que consigamos. Se não conseguirmos os nossos objetivos pelo menos queremos sair das competições com consciência tranquila que demos o nosso máximo.
SM – Ainda sobre a Auriol, Paris 2024 é o grande objetivo da carreira da atleta? Em que condições acredita que ela estará até lá?
PR – Paris é mesmo o nosso objetivo de carreira. Lá, ela vai ter 34 anos. Significa que nos Jogos seguintes já vai ter 38, à partida é uma idade em que em condições normais ela vai estar numa fase descendente da carreira. A biologia não perdoa. Portanto, temos a ambição de tentar em Paris fazer melhor do que em Tóquio, o que significa que melhor tem que ser ir ao pódio. Se em Tóquio foi a quarta classificada, para fazer melhor que isso temos que sair de Paris com uma medalha.
Mas pelo meio obviamente há muitos outros objetivos intermédios que continuam a ser objetivos que têm peso, como são os Campeonatos da Europa e do Mundo como já falámos. Não são provas de segunda linha, são provas muito importantes e queremos até lá andar na luta pelas medalhas para também chegarmos a Paris com a Auriol como uma das atletas favoritas à disputa das medalhas.
SM – Por fim, Portugal tem sido um país a apresentar grande evolução no atletismo nos últimos anos, com atletas de destaque mundial. Em que posição coloca o atletismo português em relação a outros países e o que acha que podemos melhorar ainda?
PR – O atletismo em geral tem evoluído, sim. Embora o atletismo português já tenha uma longa história e não nos podemos esquecer que, sobretudo no movimento olímpico, o atletismo português é a única modalidade que nos deu campeões olímpicos. Já tivemos a Rosa Mota, a Fernanda Ribeiro, o Carlos Lopes, o Nelson Évora e agora o Pedro Pichardo. Portanto, já tivemos cinco campeões olímpicos, no desporto português, todos do atletismo.
Isso deve-se ao trabalho de captação e de treino dos clubes e dos treinadores portugueses, que vão conseguindo captar talento e vão conseguindo criar cada vez melhores condições de treino. Em termos profissionais, vão sendo também cada vez melhores treinadores. Depois, isto vai se contagiando porque a partir do momento em que começa a haver atletas que ganham medalhas, treinadores que os conseguem levar ao pódio, os outros começam também a acreditar que isso também é possível. Começa a haver um legado de confiança, de acreditar que é possível fazer uma carreira de sucesso e isso passa de geração em geração. Portanto, é esse o legado que está a ser passado também nas disciplinas técnicas.
Em termos daquilo que é o posicionamento português à escala mundial, nós temos sempre que ter aqui uma abordagem proporcional àquilo que é a nossa população. Temos 11 milhões de habitantes e é difícil compararmos com países de 70, 80 milhões ou mais. Portanto, poderei dizer que à nossa escala, um pequeno país, acho que estamos bastante bem em termos de atletismo. Claro, podemos fazer muito mais. Estamos num país em que a concorrência pelo talento é muito grande e sobretudo o futebol é um adversário feroz quando queremos buscar atletas. No início era mais no setor masculino, mas agora já se nota isso nas meninas, que já muitas querem também jogar futebol. Na luta pela captação de talento é o adversário forte. Portanto, para melhorarmos, temos que tentar ser mais competitivos, mais competentes e como não vamos ter muitos talentos nas nossas mãos porque o talento é escasso e há muita competição por ele, temos que ser muito profissionais quando treinamos os nossos atletas. Se não aproveitamos o pouco talento que nos vai surgindo a probabilidade de termos sucesso é reduzida.
Em termos políticos, quem tem esse poder, olhe para nós com outros olhos e invista um pouco mais na modalidade. Quer no apoio aos atletas, quer nas instalações e infraestrutura. Em termos culturais, que a pouco a pouco a população vá valorizando mais as modalidades amadoras, que lhe vá dando mais destaque e que os jovens comecem a ter mais vontade de praticar outros desportos. Desporto que às vezes chamamos de modalidades amadoras, ou numa segunda linha em termos hierárquicos, mas na realidade o atletismo que se viu em Belgrado nada tem de amadora.