Marta Paço é ainda uma adolescente. Mas carrega consigo um dom especial para um desporto, que, apenas aos 17 anos, já é uma referência mundial: o para-surf A trajetória da atleta natural de Viana do Castelo é meteórica. Em 2018, no ano da sua estreia, conquistou a primeira medalha de bronze em Mundiais. No ano seguinte, sagrou-se campeã europeia e agora repetiu pelo segundo ano consecutivo o título de campeã mundial na sua classe, na categoria VI 1 (cegos) do Mundial de Para-Surfing da ISA, que decorreu na Califórnia.
Na final, a surfista do Surf Clube de Viana e da Seleção Nacional superou a francesa Valentine Moskoteoc e a norte-americana Barbie Pacheco. Em Pismo Beach, a portuguesa terminou a bateria final com 15 pontos (6,00 e 9,00 nas melhores ondas), à frente de Valentine Moskoteoc (9,2) e de Barbie Pacheco (3,6).
Ao lado do treinador Tiago Pietro, também selecionador nacional de para-surf da Federação Portuguesa de Surf, voltou dos Estados Unidos com mais uma conquista expressiva para o desporto português.
De referir, que a equipa lusa foi composta por também por Camilo Abdula, do Sines Surf Clube, que também conquistou o Mundial (na categoria Stand 1) e Tomás Freitas, também do Surf Clube de Viana.
Ao todo, estima-se atualmente que Portugal tenha entre 15 e 20 para-surfistas regulares. “Já temos alguns atletas a surgir. Eu diria que no lazer já há muita malta que pratica o para-surf de uma forma esporádica”, observou Pietro.
No surf para pessoas com deficiência existem seis classes desportivas divididas em subclasses. “Para que os atletas sejam elegíveis terão de ter algum comprometimento ao nível da potência muscular, da amplitude articular, hipertonia, atetose, ataxia, amputação nos membros inferiores ou deficiência visual”, conforme refere o manual da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência (FPDD).
Especificamente na categoria da Marta Paço, a VI1, para atletas com deficiência visual total, há apenas ela própria a competir em Portugal. “Mas há uma miúda e um rapaz no Porto, mas que estão a dar os primeiros passos”, disse o selecionador. Sobre a sua categoria, Marta Paço pontuou que a sua visão é considerada zero. “Por isso eles dividem em VI1, que são surfistas totalmente cegos, e o VI2, que são surfistas que têm alguma visão. Para ser completamente justos, eles acabam por dividir desta forma”, explicou.
Sem enxergar com os olhos, Marta aprendeu a reconhecer o mar com o olfato, o tato, a audição. Sensações que fazem da surfista portuguesa única, capaz de por duas vezes ser a melhor do mundo. Após regressar dos Estados Unidos, a dupla Marta Paço e o selecionador Tiago Prieto conversou com a SportMagazine sobre o para-surf, as habilidades desenvolvidas pela atleta, o desejo de ver a modalidade elevada ao patamar paralímpico e os próximos objetivos.
SportMagazine (SM) – Marta, para começar, como é que imagina o mar? O que vem à mente quando pensa no ambiente em que és bicampeã do mundo?
Marta Paço – Quando eu penso no mar, na minha cabeça o que vem não é a cor, obviamente, mas o som. Quando eu penso no mar, me vem automaticamente o som, o barulho das ondas e também a sensação de estar no mar, sentir o balanço, sentir a espuma. É mais por aí, pelo som, pelo cheio e pelos outros sentidos.
SM – E a percepção de quando a onda está a chegar, como tem a sensibilidade?
MP – Depende da onda. Se for uma espuma, eu consigo ouvir. Mas se for uma onda por quebrar, é o Tiago [Pietro] que tem que me dizer.
SM – Qual a importância do surf para o teu desenvolvimento como pessoa? Em que sentido esse desporto foi essencial para si?
MP – O surf trouxe muita coisa. Primeiro, trouxe muitas habilidades a nível social. Eu conheci muitas pessoas, muitos países, aprendi a lidar com pessoas diferentes e formas diferentes de pensar. E também me trouxe mais calma, ajudou-me a lidar com a ansiedade, ajudou-me também a aprender novas habilidades físicas. Desde o social ao psicológico, a tudo.
SM – Como foi toda a preparação para este campeonato Mundial?
Tiago Pietro (TP) – Nós treinámos, nesta última fase de preparação para o Campeonato, cerca de cinco a seis dias por semana. Todas as tardes, com treinos de água, treinos físicos, treinos complementares de skate e aulas de yoga. Portanto, fizemos toda uma preparação mais intensiva agora nesses últimos dois meses que antecederam ao campeonato mundial. Este resultado também é o resultado não desses últimos dois meses, que foram de afinação, mas é algo que vem do trabalho que temos vindo a fazer nesses últimos anos.
Na preparação, a nível da Federação, como selecionador levámos uma equipa aos EUA… No Mundial, todos os dias tivemos, estrategicamente com a Federação, que conseguiu-nos arranjar uma casa mesmo em frente à praia. Isso nos facilitou para treinarmos diariamente e nos adaptarmos às condições do mar. Isso foi uma estratégia que Federação adotou e que resultou muito bem durante o período que lá estivemos. Conseguimos fazer uma adaptação espetacular às ondas, tivemos tempo para treinar. A nível logístico facilitou-nos imenso e isso refletiu-se também no resultado. Basicamente, foi isto. Conseguiu-se também dentro da própria casa criar um bom espírito de equipa entre todos os elementos da equipa, atletas e staff, o que nos permitiu criarmos um espírito de equipa durante os 12 dias em que lá estivemos.
SM – A Marta chegou a este campeonato com o peso de ser campeã em título. Como lidou com essa novidade?
MP – É mais difícil. Quando chegámos lá, temos toda a gente a achar que vamos voltar a ser campeãs do mundo. Acabámos por ter mais pressão, porque se conseguimos mais uma vez, as pessoas esperam que nós façamos de novo. Mas eu também não conhecia uma das minhas adversárias, não sabia o que esperar. Mas acabei por conseguir ir bastante bem e cumprir o meu objetivo, que obviamente eu queria revalidar o título.
SM- Acha que esta vitória, bem como a do Camilo Abdula, e outras conquistas, podem vir a dar mais visibilidade ao surf e, em especial, à vertente adaptada?
MP – Eu acho que sim. Quanto mais a modalidade for divulgada, mais gente pode querer experimentar. Já existem mais atletas em Portugal que estão agora a começar a treinar. Acho que podemos crescer. Quanto mais visibilidade conseguirmos ter, mais as pessoas conseguem ganhar interesse, não só para novos atletas, mas também para pessoas que realmente acompanham e gostam do desporto.
TP – Eu partilho aqui da mesma opinião da Marta. O “para-surf”, que é agora a nomenclatura que se usa, do antigo surf adaptado, é uma modalidade relativamente recente, tanto cá em Portugal, como no mundo. Já existe há uns anos, mas de forma organizado está agora a dar os primeiros passos. Para termos uma referência, o primeiro Campeonato do Mundo de para-surf surgiu em 2015. Portanto, é ainda um bebé. Em Portugal, tivemos a primeira participação em 2017, quase no início do processo. Estamos em fase de crescimento, portanto, já temos quatro participações [a Marta participa desde 2018]. Esses títulos são importantes para divulgar a nível do nosso país, vai despertar o interesse de outras pessoas que têm as diversas deficiências e vai despertar o interesse na modalidade, para saberem que é possível praticar o surf, é possível construir uma carreira no para-surf. Então são importantíssimos esses títulos para o desenvolvimento do para-surf em Portugal.
SM – O surf estreou-se este no programa dos Jogos Olímpicos, em Tóquio 2020, mas não figura ainda no programa Paralímpico. Acha que falta pouco para esse reconhecimento?
MP – Sim, a candidatura foi feita. Acho que saem os resultados agora em janeiro, mas ainda não temos como saber. Era uma coisa que eu gostava muito de participar, dos Jogos Paralímpicos, que é o maior evento desportivo paralímpico do mundo, mas não temos mesmo como saber. Em 2024 já não entra, mas é possível que entre em 2028.
TP – Apenas para esclarecer, os critérios que o Comité Olímpico Internacional exige é que o Campeonato do Mundo seja promovido por mais que uma nação a organizá-lo. Todas as edições foram feitas nos Estados Unidos até a data. Já há outras nações a querer organizar o campeonato para cumprir essa exigência.
SM – Após este novo título mundial quais os próximos objetivos da Marta?
MP – Em 2023, eu gostava de fazer mais coisas do que fiz em 2022. Gostava de, se calhar, fazer algumas viagens. Experimentar também coisas novas. Obviamente, voltar ao campeonato do mundo é sempre o objetivo principal. É a principal competição do para-surf neste momento. Mas gostava de fazer também outros campeonatos que vão surgindo. O para-surfing está a ser organizar, estão a surgir algumas organizações que estão a tentar criar campeonatos em vários países e era isso que eu gostava de fazer, pelo menos um ou dois desses campeonatos.