É cliché dizer que há vidas que davam um filme. A de Jorge Dias materializa esse chavão com a mesma intensidade que dá veracidade ao feliz The End. Foi tenista, treinador, mas na arbitragem levou Portugal mais alto do que a cadeira em que se sentou no court central de Wimbledon a 9 de julho de 2001 para mediar a final masculina na catedral da relva. Tornou-se aí no primeiro não britânico a fazê-lo. Ao fim de quase duas décadas deixou essa alta roda, emigrou para a Bélgica, foi operário fabril no Luxemburgo. Deixou o ténis, mas foi nele que se reencontrou na direção técnica da Academia dos Champs, projeto de integração social para crianças e jovens dos cinco aos 18 anos que pretende incutir os benefícios do desporto como filosofia de vida.
Jorge Dias conversou com a SportMagazine sobre o seu percurso. A entrevista abaixo fez parte da edição n. 3 da Revista SportMagazine.
SportMagazine (SM) – Vivia na Bélgica. Como surgiu esta colaboração com a Academia dos Champs que o fez voltar para Portugal?
Jorge Dias (JD) – Na verdade, eu residia na Bélgica, mas não estava bem na vida profissional e mentalmente estava debilitado. Aliás, a 1 de maio de 2019, vim para Portugal para me despedir do meu pai que falecera, após longa batalha contra o cancro. Éramos muito próximos, conversávamos muito e já falara com ele sobre a necessidade de mudar a minha vida, para estar mais confortável e mais feliz. Disse à minha mulher Fabiana, que ia ficar cá uma temporada. Comecei a aparecer nos torneios de ténis. Estava ainda a tratar de burocracias das certidões de óbito, quando recebi um telefonema do Pedro Carvalho [diretor geral], a falar-me do projeto da Academia dos Champs. Disse-me que precisava de alguém com as minhas características para trabalhar com eles e que queria marcar uma reunião comigo e com o António Champalimaud [fundador do projeto]. Marcámos uma reunião no CIF, no Restelo. Preparei-me, fiz as minhas pesquisas sobre a academia e as pessoas com quem ia encontrar-me e lá fui.
SM – E como correu essa reunião? Como se sentia com a perspetiva de poder voltar ao ténis?
JD – Apareceu o Pedro Carvalho e o António Champalimaud. Dado o sobrenome, não estava à espera de encontrar pessoas de t-shirt e calças de ganga, ambos muito descontraídos. Era mesmo isso que estava a precisar. Fizeram-me uma proposta. Procuravam um coordenador técnico para coordenar os treinadores e os diferentes núcleos da academia. Nessa altura, eu já não estava na fábrica do Luxemburgo, que entrara em falência, mas estava a trabalhar na Bélgica. Estava muito em baixo, não tenho vergonha de dizer que estava com depressão. Não estava no trabalho que gostava, estava longe do meu país, o meu pai falecera há pouco, a minha mãe estava hospitalizada, os meus dois filhos mais velhos longe. Perante este cenário e o que me propuseram, aceitei. Acordei com eles que começaria em setembro, pois tinha de mudar de vida, basicamente da Bélgica para Portugal e o meu filho mais novo ainda estava na escola. E assim foi.
SM – Em termos práticos qual é o seu trabalho na Academia dos Champs?
JD – Tenho de coordenar os treinadores e as aulas de ténis de acordo com os calendários, gerir os grupos, falar com treinadores, tentar de alguma maneira uniformizar os diferentes núcleos e os diferentes treinadores, porque nós temos oito núcleos espalhados por Portugal e todos eles são diferentes. E claro lidar com as crianças e com os nossos parceiros sociais. Sou o elo de ligação entre instituições e as crianças. O meu trabalho passa muito por andar de um lado para o outro para uniformizar e equilibrar a forma como se trabalha diretamente com as crianças. Só estou desde 2019, e até agora apanhei dois confinamentos, não é assim tanto tempo. Ainda não consigo ver o impacto que tenho na vida das crianças.
SM – Falou na pandemia. O trabalho da Academia dos Champs também se ressentiu com isso?
JD – Trabalhamos com perto de 300 miúdos e, sim, tivemos uma quebra por causa da pandemia. Não por causa dos miúdos, mas porque a inscrição é através dos parceiros sociais e houve muitas instituições que passaram dificuldades e que tiveram que fechar, o que é muito triste.
SM – Já o vi em ação com alguns destes jovens em torneios. Imagino que seja muito gratificante…
JD – Tenho muito contacto com eles, até porque ando nos núcleos. Muitas vezes aparecem nos torneios para fazer de apanha-bolas, e temos os nossos torneios internos. Tento sempre ajudá-los para ver como reagem fora da bolha deles. O que é gratificante é ver a sinceridade deles, a gratidão pelo que fazemos por eles. Têm essa noção. Sinto-o através do carinho que me dão quando chego a um núcleo. Os mais pequeninos, que são mais espontâneos, abraçam me, agarram-se às minhas pernas. É isso que nos leva a continuar o nosso caminho. Porque nem tudo é mar de rosas. Temos miúdos que desistem, que mudam de residência. Um dos objetivos que tenho na academia é aproximar-me mais dos pais, porque isto não é uma academia normal, onde conhecemos todos os pais. Ao fim de três anos, sinto estar a fazer alguma diferença vida das crianças.
SM – A frustração também faz parte do dia a dia?
JD – Nada aqui é garantido, nem fácil porque nos apegamos às crianças. Não são alunos de ténis comuns, porque na academia temos a preocupação que estudem, ajudamos se tiverem más notas, damos explicações, estamos atentos à saúde deles. São miúdos carentes e não é fácil lidar com a separação de algumas dessas crianças por motivos que nos são alheios. Às vezes também temos de admitir que esforço não foi suficiente, não fazemos milagres.
SM – Depois de tudo o que me contou, o que é a Academia dos Champs para si?
JD – É continuidade da minha carreira, porque sempre estive ligado ao ténis. Sinto-me realizado. Gostaria de ter sido um pouco mais em tudo o que fiz, aprendi muito como treinador, como árbitro, mas aqui é uma missão que sempre quis ter. A minha carreira esteve no alto, depois houve uma altura em que trabalhei na construção, fui operário fabril e não tenho vergonha disso. Ajuda-me a lidar com estas crianças e com as pessoas ligadas à academia. Estes dez anos saíram-me muito do corpo, mas foram uma lição de vida, dou mais valor ao que tenho no momento, às pequenas coisas da vida. Fui bom tenista, treinador, durante a carreira na arbitragem viajei pelo mundo, tive o privilégio de conhecer culturas e religiões diferentes, o meio de transporte era o avião em business class. Dormia nos melhores hotéis e comia nos melhores restaurantes, estava com pessoas importantes. Há o perigo de nos tornarmos arrogantes, mas as coisas da vida não têm estatuto social. E nunca perdi essa noção. Agora mais ainda.
SM – É mais difícil arbitrar uma partida de ténis e lidar, por vezes, com os tenistas ou com os jovens da Academia dos Champs?
JD – Muitas vezes perguntam-me como é trabalhar com estes meninos. Respondo que antes lidava com miúdos mimados, que não davam valor àquilo que tinham. Falo dos tenistas profissionais. Aqui tudo o que faço tem importância e influencia a vida das crianças. O ténis é uma ferramenta para nos aproximarmos delas, mas se houver algum com capacidades técnicas para ser um bom jogador tem o nosso apoio. Para a maior parte, é um meio para tentar transmitir valores e ajudar essas crianças nas duas ou três vezes por semana que vão ao núcleo. A base da academia é, através do ténis, ensinar e transmitir valores a crianças que vêm de famílias desestabilizadas. São valores do desporto, como disciplina, rigor, pontualidade, aceitar autoridade, compromisso, amizade, fair-play. São valores, no fundo, valores do desporto.
SM – Sei que em tempos teve um projeto semelhante. Quer falar um pouco sobre isso?
JD – Quando deixei de arbitrar, tentei fazer uma escola de ténis: a Escola de Ténis Jorge Dias, na Marinha Grande. E nessa altura, a minha ideia já passava ‘tirar aos ricos para dar aos pobres’, fazer do ténis um desporto mais abrangente e menos elitista. Trabalhei com uma associação com miúdos de um bairro que havia ao lado do campo de ténis e dei-lhes aulas. Só que era eu sozinho e o trabalho político, de contactos não tem a ver comigo. Sou direto, digo o que penso e não convém nessa área.
SM – Fez parte da elite da arbitragem. Que características lhe granjearam esse estatuto?
JD – Uma das minhas vantagens como árbitro, tal como a que sinto ter agora com os miúdos, é conhecer a realidade das várias áreas da modalidade. Como tenista também tive as minhas discussões com os árbitros, parti umas raquetas, nunca fui mal-educado mas fiz birras [risos]. Como árbitro, o trabalho foi contínuo, aprendi com os erros, evoluí. É muito mais fácil ser árbitro do que lidar com crianças a este nível, porque enquanto árbitro tenho sou o xerife. Há o código de conduta que se o jogador não cumprir incorre em penalização. São profissionais e nós temos mais ferramentas do nosso lado. Sobretudo deve prevalecer o bom senso, o objetivo do árbitro é que ninguém se lembre dele no final da partida. Tenho experiências muito agradáveis e, se hoje em dia as pessoas me respeitam, creio ser por essa faceta.
SM – Que características deve ter um bom árbitro de cadeira?
JD – Era conhecido por ser o árbitro que tratava os jogadores de uma forma muito natural e ser um bom comunicador. Tinha essa perceção pela experiência como jogador. Na mudança de campo, que é quando estamos mais próximos dos tenistas, aproveitava para acalmá-lo, quando percebia que estava prestes a explodir. Não é preciso ser génio ou intelectual para ser árbitro de ténis, tem de ter bom poder de comunicação verbal e visual.
*JORGE DIAS. Ténis é, sem exagero, a palavra que melhor define a vida de Jorge Dias. A dias de completar 60 anos a 24 de novembro, jogou ténis pela primeira vez aos sete, integrou as Seleções Nacionais de sub-16 e sub-18, foi campeão nacional de pares júnior em duas ocasiões, com Sotero Rebelo por parceiro e representou Portugal na Taça Valério. Era nas antigas instalações do CIF, no Campo Grande, que aprimorava a paixão pelas raquetas incentivada pelo pai, José Filipe Dias, ali treinador. Aos 18, foi por essa vertente que enveredou, e passou ensinamentos em Lisboa, Cascais, Algarve, Santarém, Torres Novas e Marinha Grande. Foi, todavia, como árbitro que granjeou respeito no mundo do ténis, tendo sido um dos mais conceituados na profissão. Mediou mais de dois mil encontros, finais de Grand Slam, Taça Davis, Fed Cup, Jogos Olímpicos e dos circuitos ATP e WTA. Foi supervisor, juiz árbitro. Cordial, de sorriso pronto, na Academia dos Champs voltou às origens. O mesmo será dizer que põe em prática o ensino no ténis que sempre quis fazer, dando assim um novo sentido à vida destas crianças através da modalidade que lhe trouxe sempre luz, mesmo nos momentos de sombra. Até porque, como defende, “o ténis é para todos”.