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Opinião

Bruno Avelar Rosa:
Problemáticas, desafios e reflexões para uma efetiva promoção da carreira dual em atletas de alto rendimento

Bruno Avelar Rosa. Foto: DR

Por Bruno Avelar Rosa*

São diversas as problemáticas associadas à relação entre a prática desportiva de alto rendimento e outras dimensões da vida dos atletas, nomeadamente no que diz respeito ao seu processo de formação académica – naqueles que estudam em simultâneo, ao seu desempenho profissional – naqueles que trabalham em simultâneo, e da sua empregabilidade futura – naqueles que, estando agora focados na performance desportiva, acabarão por encontrar dificuldades na futura transição profissional.

Apesar destas problemáticas não serem novidade, tal como não é novidade a existência de legislação ou programas políticas de desenvolvimento em diferentes países, é em 2012, com a publicação das Orientações da União Europeia para a Carreira Dual de Atletas por parte da Comissão Europeia, que esta matéria se tornou mais evidente, premente e explícita quer ao nível das políticas europeias e nacionais quer ao nível das diferentes organizações que, mais de perto e a partir de diferentes prismas, acompanham a carreira e o pós-carreira dos atletas de alto rendimento.

Com efeito, estas orientações aumentaram a amplitude de intervenção nos diferentes contextos de carreira dual, nomeadamente através da estimulação da relação entre os sistemas desportivo – clubes, centros de alto rendimento, treinadores, outros agentes, serviços de suporte –, educativo – escolas, formação profissional, ensino a distância e instituições de ensino superior –, laboral – diálogo social, combinação desporto-trabalho e empregabilidade pós-carreira –, sanitário – apoio psicológico e médico, prevenção e promoção sanitária – e financeiro – bolsas académicas, segurança social, planos de pensão, proteção laboral e sanitária.

Atualmente, a matriz das diferentes políticas nacionais e institucionais no âmbito da carreira dual assenta nesta relação intersectorial e multidimensional, a qual não está isenta de desafios. E é sobre alguns desses desafios que refletimos de seguida.

Tornar uma meia-carreira profissional numa carreira inteira

Quando se pergunta a uma criança o que quer ser quando for adulto, é frequente ela responder quero ser atleta. Embora interessante, esta resposta está incompleta porque ser atleta representa, em termos de dedicação temporal, menos de metade da vida profissional, pelo que fica por esclarecer o que a criança pretende fazer na outra metade da vida quando for adulta. Efetivamente, com a idade da reforma a rondar os 66 anos em Portugal, um antigo atleta que abandone a alta competição aos 30 anos tem ainda pela frente mais de 30 anos para exercer outra profissão. Neste seguimento, é altamente relevante que toda a estrutura de apoio aos atletas esteja consciente e vocacionada para integrar a preparação do pós-carreira ainda dentro da carreira desportiva. E também que o comum cidadão reconheça que a carreira desportiva é de curta duração, e que tal implica enfrentar certos riscos que lhe são inerentes.

Diferentes perspetivas de abordagem à carreira dual

Os atletas exercem a sua atividade em relação com diferentes instituições, as quais podem contribuir para a sua carreira dual de diferentes formas de acordo com aquela que é a sua missão institucional. Por exemplo, para efeitos de apoio à carreira dual, um mesmo atleta pode recorrer ao clube ao qual está vinculado, à sua federação, ao comité olímpico nacional no caso de estar no programa olímpico, à sua associação de classe ou ter inclusivamente um agente que assuma também esse papel orientador. Contudo, o apoio concedido por cada um destes atores não se assemelha em forma, nem em orientação, assim como também não se deve sobrepor. É essencial a existência de uma rede institucional que, de forma articulada, forneça o apoio devido na garantia de, simultaneamente, responder às necessidades individuais de cada atleta, mas também o apoio indiferenciado e intencional aos diferentes atletas como um todo. Tal implica a necessidade de colocar a pessoa que constitui o atleta no centro de todos os processos desportivos e decisórios.

Do acesso à formação académica à conclusão da mesma Em primeira instância, é fundamental garantir que os atletas de alto rendimento tenham acesso à formação académica e que os mesmos se adaptem à especificidade da sua atividade de forma que essa formação possa ser concluída. Neste particular, parece-nos essencial a existência da figura de tutor na instituição de ensino que, estando devidamente capacitado, faça a ponte com as organizações desportivas ao qual o atleta tem vínculo, a possibilidade de agendamento das datas de exames, o desenho de horários de acordo com o seu plano de treinos e competições ou o usufruto de formação a distância, tal como tem vindo a ser feito com excelência em Portugal através das Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola.

Sobre o significado da formação académica: do produto ao processo A necessidade de garantir a qualificação dos atletas de maneira que estes possam estar munidos de um diploma no final da sua carreira desportiva tem levado à disseminação da mensagem de que o atleta deve fazer o esforço de estudar, sendo a qualificação entendida como um produto a obter. Contudo, revela-se necessária a consideração da qualificação também como um processo que deve não apenas garantir o devido diploma, mas também contribuir para o desenvolvimento da própria carreira dos atletas através da inclusão de áreas como a aprendizagem de línguas, direito laboral, relações internacionais e protocolo, liderança e dinâmicas de grupos, gestão financeira ou psicologia do desporto. Estas são áreas que devem ser parte integrante dos diferentes curricula em que haja atletas a participar, até porque também os capacitam para a vida pós-carreira desportiva.

Estamos a falar de responsabilidade social?

O Código do Trabalho português faz referência, na subsecção II (artigo 130.º, ponto 2), que o trabalhador tem direito, em cada ano, a um número mínimo de 40 horas de formação contínua. No caso dos atletas profissionais, esta poderia ser uma possibilidade a considerar tendo em vista a aquisição de competências que possam contribuir para o seu pós-carreira desportiva. Contudo, subentende-se que esta formação se restringe às áreas de intervenção do próprio empregado, ou seja, a performance desportiva que é o objetivo do seu contrato, pelo que a contribuição dos clubes onde os atletas exerçam atividade em matéria de formação para o pós-carreira fica circunscrita ao âmbito da responsabilidade social. Torna-se assim necessário que os empregadores de atletas possam ser responsáveis pela oferta de formação que permita preparar os atletas para o pós-carreira. A título de exemplo, o Sindicato dos Jogadores Profissionais da Noruega assinou, em 2018, um acordo com os clubes daquele país garantindo a responsabilidade destes na orientação profissional futura dos atletas sob contrato.

Modelos de Desenvolvimento de Atletas a (realmente) Longo Prazo

São comuns os modelos de desenvolvimento de atletas a longo prazo, particularmente nos contextos anglosaxónicos. Estes modelos organizam o desenvolvimento desportivo por fases que incluem diferentes áreas da performance desportiva (nomeadamente a nível físico, técnico-tático e psicossocial) através das quais os atletas progridem. Contudo, ao focar-se particularmente na performance desportiva, estes modelos acabam por não integrar outras dimensões da carreira dos atletas que vão além do seu próprio desempenho (mas que também o alavancam). Neste sentido, é fundamental que, em cada uma das etapas de desenvolvimento destes modelos, possam ser integradas outras áreas de competência mais associadas à performance para a vida, valorizando assim a promoção da saúde física e mental, da formação académica, da orientação vocacional e profissional, da gestão financeira ou da gestão de imagem. A este respeito, o Elite Player Performance Plan desenvolvido pela Premier League inglesa de futebol é um bom exemplo, uma vez que associa ao seu modelo de desenvolvimento de atletas à necessidade de os mesmos, em cada etapa, terem de concluir um determinado ciclo de estudos bem como de adquirirem certificação enquanto treinadores da modalidade.

Competência financeira para evitar a bancarrota

A bancarrota é um destino comum de antigos atletas profissionais, independentemente da dimensão económica alcançada durante a carreira desportiva e da modalidade de prática. Para que tal não ocorra, é essencial que os atletas desenvolvam competências no âmbito da gestão financeira, mas também que existam mecanismos que permitam aos atletas criar um fundo de pensão para onde descontam durante a carreira e ao qual possam ter acesso logo que esta finda, já que do ponto de vista contributivo tal acesso apenas será possível aquando da reforma. Porém, esta realidade, garantida pelo Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol em Portugal, depende da vontade dos atletas em ativarem o tal fundo durante a carreira, pelo que nos questionamos se esta solução não deveria estar obrigatoriamente integrada nos seus contratos de trabalho.

Da psicologia para a performance à saúde mental

A psicologia do desporto desenvolveu-se tendo por foco a otimização da performance dos atletas. Contudo, a cada vez maior mediatização de casos de doença mental em atletas de alto rendimento tem sublinhando a necessidade de um maior apoio nesta matéria. Neste sentido, deverá ser garantido aos atletas o fácil acesso e acompanhamento por parte de psicólogos especializados no contexto desportivo bem como a sua sensibilização e capacitação relativamente aos sinais a que se deve dar maior atenção bem como a normalização dos comportamentos a adotar em termos de prevenção (e tratamento) de um quadro de doença mental. Complementarmente, são diversos os casos de depressão e ansiedade durante o processo de transição no pós-carreira desportiva. Ao terem a sua identidade ancorada à imagem que têm de si próprios enquanto atletas – e muitas vezes, nada mais do que atletas – faz com que o processo de transição se refira não apenas a uma mudança de atividade profissional ou de rotinas diárias mas, principalmente, num processo de reconstrução identitária que se desenrola normalmente de forma extremamente penosa para a pessoa. Como tal, é essencial que o processo de transição, que é inevitável, seja preparado e acompanhado com o devido cuidado para que possa acontecer da forma mais suave e controlada possível.

Que agentes?

Com particular influência do futebol tem-se verificado a proliferação da figura do agente desportivo, quem vem assumindo a responsabilidade na gestão da carreira desportiva dos atletas. Contudo, à imagem da análise que fizemos em relação aos Modelos de Desenvolvimento dos Atletas a (realmente) Longo Prazo, temos observado que a ação destes agentes se tem circunscrito à valorização do atleta como ativo e à garantia de melhores condições contratuais para estes. E numa perspetiva de carreira dual esta intervenção é eminentemente limitada. Recentemente, tem vindo a ser desenvolvido o perfil de Player Development Manager quem assume a responsabilidade não apenas de gerir o atleta como ativo, mas, principalmente, de o apoiar nas diferentes dimensões da sua vida, nomeadamente contribuindo em matéria de orientação vocacional, preparação do pós-carreira, tomada de decisão em investimentos ou criação e desenvolvimento da marca do atleta enquanto figura pública. Este perfil que vem sendo defendido pela UNI Athletes (a Confederação das diferentes Federações Mundiais de Atletas das diferentes modalidades) aproxima-se da figura de agente no contexto do desporto norte-americano, quem desenvolve uma ação de tutoria junto dos atletas que agencia (sendo que estes agentes também têm na sua carteira outros profissionais de outros fenómenos particulares, como sejam a música e as artes).

Competências explícitas para criar empregabilidade
O reforço das políticas de promoção da carreira dual dos atletas de alto rendimento tem colocado o foco na capacitação dos atletas durante a sua carreira desportiva de forma a melhor preparar o pós-carreira bem como nas adaptações que são necessárias nas instituições envolvidas para que melhor possam acolher e ajudar os atletas neste processo de desenvolvimento. Contudo, e tal como o trabalho da Sports Embassy – cooperativa dedicada à transição e à promoção da empregabilidade dos atletas no pós-carreira – tem tornado evidente, é necessário maior foco naqueles que poderão ser os grandes beneficiários de uma carreira dual adequadamente desenvolvida: as empresas e a generalidade dos empregadores. Ao longo da sua carreira desportiva, os atletas desenvolvem competências muito interessantes do ponto de vista laboral, nomeadamente as hoje muito valorizadas soft-skills. Com efeito, e muitas vezes de forma inconsciente, os atletas são altamente competentes a trabalhar em equipa, são disciplinados e responsáveis, sabem definir objetivos com clareza, desenhar as estratégias necessárias para os alcançarem e são resilientes na adversidade. E esta realidade deverá ser explicitada junto das entidades empregadoras, as quais terão muito a ganhar ao contar com atletas nos seus quadros e ao contribuírem para a sua integração laboral. Contudo, para que tal seja possível, é necessário que estas competências próprias dos atletas sejam publicamente reconhecidas porque não o são, e que as próprias empresas e outros empregadores possam também usufruir de condições fiscais que estimulem a contratação e enquadramento profissional de atletas já retirados ou em processo de transição.

O papel dos treinadores

Não são raros os casos de atletas que, num determinado momento da sua carreira desportiva, referem ter sido influenciados pelo próprio treinador para que colocassem o foco na sua performance desportiva e adiassem outras dimensões da sua vida para o pós-carreira, nomeadamente a sua formação académica. A díade treinador-atleta é única e muito forte, mas também é hierárquica, pelo que os atletas tendem a aceitar tudo aquilo que é proposto pelo seu treinador, em que têm a máxima confiança e de quem esperam decisões que abonem em seu favor. Como tal, hoje exige-se que um treinador tenha a capacidade de entender a pessoa além do atleta, estimulando-o, também, a que estabeleça um horizonte pessoal para si próprio que esteja para lá da sua performance. Para tal, é fundamental que as diferentes organizações que se encontram na órbita dos treinadores (associação de classe, clubes, federações, formação de treinadores, …) incluam esta temática nos seus âmbitos de reflexão e intervenção. Da mesma forma que se sugere que os atletas incluam outras áreas nas suas etapas de desenvolvimento, estamos em crer que também os treinadores devem olhar para o rendimento dos atletas tendo em consideração a multidimensionalidade e real amplitude da pessoa que constitui cada atleta.

Naturalmente, esta lista não é exaustiva, pelo que os desafios existentes não se esgotam neste texto. Porém, estamos em crer que as problemáticas e reflexões aqui discutidas são representativas das principais prioridades e desafios a ter em linha de conta, de forma mais premente, para o desenvolvimento e evolução das políticas de promoção da carreira dual em atletas de alto rendimento. Que as mesmas possam contribuir para a melhoria de uma realidade que já vem estando em franca evolução é o nosso desejo.

*Bruno Avelar Rosa é Partner na Qantara Sports e professor auxiliar convidado na Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra.  Este texto foi resultante de comunicação efetuada no âmbito da 15.ª Conferência Anual da European Athlete-Student (EAS) Dual Career Network, organizada pela Universidade de Coimbra em setembro de 2018.

Este artigo é parte da edição n.º 1 da nossa revista, que contém Dossier “A Preparação do Atleta a Longo Prazo”. O material completo está disponível para os assinantes. Se ainda não é, saiba como fazer para integrar o nosso grupo de leitores e colaborar com o nosso projeto.

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