O treinador mais bem-sucedido da história da canoagem portuguesa, ou não treinasse o campioníssimo Fernando Pimenta, descreve uma modalidade resiliente, geradora de medalhas e com grande potencial de desenvolvimento. Porém, não há milagres consistentes e os recursos fazem diferença no topo. Por vezes a diferença mínima no cronómetro para chegar ao ouro. A SportMagazine entrevistou o treinador de canoagem mais vitorioso da nossa história: Hélio Lucas.
SportMagazine (SM) – A canoagem portuguesa tem sido, talvez a par do judo, uma das modalidades mais consistente em termos de medalhas em grandes competições internacionais. Como é que atingimos esta regularidade de excelência?
Hélio Lucas (HL) – A canoagem tem estado em crescimento ao longo dos anos. No início desenvolveu-se com técnicos estrangeiros que vieram acrescentar qualidade e conhecimento. Na altura começaram a aparecer os primeiros resultados. Recordo o José Garcia, que ficou em sexto lugar nos Jogos Olímpicos de Barcelona, em 92, o que para a época foi excecional. Entretanto, foi construído um centro de estágio em Montemor-o-Velho onde os atletas começaram a estagiar de forma mais regular e rigorosa. Isso também se traduziu em melhores resultados desportivos, nomeadamente as primeiras medalhas em distâncias não olímpicas. Quando entrei como técnico nacional, em 2014, estivemos envolvidos no projeto para o Rio de Janeiro e esse ciclo olímpico conquistámos a primeira medalha da canoagem portuguesa num campeonato do Mundo, numa distância olímpica, em K4. Em 2015 o Fernando conquista a primeira medalha individual em K1 e depois, em 2016, ganha duas medalhas de ouro no Campeonato da Europa. Aí eu já estava a treinar o Fernando, comecei tinha ele 12 anos. Ou seja, foram três recordes sucessivos. Em 2017 passo da equipa de homens só para treinar o Fernando e, nesse ano, ele é campeão do Mundo. Em 2018 assumo também as senhoras, que ganham o campeonato da Europa. Foi um crescendo de trabalho e de resultados. Estou há 20 anos nisto e a modalidade tem crescido sempre.
SM – Este desenvolvimento desportivo no terreno tem sido acompanhado por uma dinâmica semelhante na formação?
HL – Na verdade, eu aprendi mais com os técnicos estrangeiros. Estar perto de treinadores de qualidade é uma vantagem. Cada país tem um modelo de trabalho. Conhecendo o essencial de cada um, conseguimos encontrar o melhor rumo ajustado às nossas características. No início havia pouca formação mas de há algum tempo para cá tem-se conseguido que os melhores treinadores estejam disponíveis para dar formação, palestras e cursos técnicos. A Federação de Canoagem tem investido bastante nesta formação no contexto da modalidade. Em termos universitários, recordo-me de a Universidade de Coimbra fazer anualmente uma acção de formação ligada à canoagem. A Faculdade de Motricidade Humana também tem feito alguma coisa e a Escola Superior de Desporto de Rio Maior também.
SM – Faz falta alguma extensão específica para a canoagem?
Essa questão é pertinente. Eu tive muita dificuldade, batalhei muito para escolher uma opção, no último ano de licenciatura, e não consegui a canoagem. Essa oferta não estava disponível na universidade. Sei que em Coimbra há uma cadeira específica, já tive alunos de Coimbra a acompanharem os meus treinos. Não conheço mais nenhum caso. A canoagem tem-se desenvolvido muito, e não é só o Fernando. Começam a aparecer outros atletas. Ainda agora, no Mundial de sub-23, conseguiram duas medalhas, um miúdo de Amora e uma miúda de Ponte de Lima. E, na maior parte do tempo, o trabalho nestes escalões mais jovens está a ser feito nos clubes já com treinadores licenciados.
SM – Já li, dito por si, que “nós portugueses, na canoagem, fazemos muito como pouco”. Quer explicar?
É uma realidade. Com menos recursos, conseguimos melhores resultados. Quando o Fernando começou a fazer mais prova individual, em K1, cheguei a ver-me na iminência de encontrar soluções de treino com companheiros de treino. No nível dele, se não tiver alguém ao lado naqueles dias em que está saturado ou cansado, ou em baixo, que precise de algum estímulo que faça a diferença, torna-se muito complicado. Há uma série de equipas que nos procuram para treinar connosco e procuramos coordenar as coisas e percebemos quais as condições em que todos trabalham. Os orçamentos são muito superiores. A Federação entrega-nos um determinado valor e desse valor temos que ir aos campeonatos da Europa e do Mundo, retirar uma verba para pagar ao fisioterapeuta, ao médico, ao psicólogo. Houve um ano que somei todas as despesas e ficava zero para estágios. Lá encontrámos uma solução, mas quando me confrontava com as outras equipas em prova, nós tínhamos que recorrer a um fisioterapeuta uma vez por semana, que o dinheiro não chegava, e eles tinham fisioterapeuta a tempo inteiro. Queríamos fazer um trabalho em altitude, mas não podíamos, mas eles podiam e faziam. Eu queria um colega de treino para o Fernando, mas isso era mais despesa. O atleta húngaro que foi campeão olímpico em Tóquio, o Kopasz. perdia sempre para o Fernando, que é um atleta muito rápido. Então, a Federação e o Comité olímpico húngaro arranjaram um atleta rápido e colocaram-no a treinar com o Kopasz. Aliás, fizeram o mesmo com outros atletas da equipa. Deu resultado porque o mesmo atleta que não ganhava ao Fernando começou a ser mais rápido em virtude desse treino específico acompanhado. Não podemos achar que os atletas chegam a resultados excelentes porque se desenrascam e se vão safando, temos é que pensar estratégias para que o nível seja sempre elevado.
“Espero que se retirem algumas conclusões úteis para o ciclo olímpico de Paris 2024, que se perceba que este atleta [Fernando Pimenta] melhor fará quanto mais o ajudarmos a fazer melhor, ou seja, a superar-se como atleta. E é nesse ponto que está o ouro.”
SM – Há conhecimento científico a ser transferido para o treino na canoagem?
HL – Algum, mas há muito a fazer. É muito importante que as Universidades tragam conhecimento científico para a modalidade. Quando me chamaram há quatro anos para fazer a avaliação do projeto Rio de Janeiro, defendi que as Faculdades se deveriam envolver na preparação dos atletas e na resolução de problemas. Para as Universidades há interesse, porque é validar conhecimento científico, para nós também é uma forma de poder rentabilizar o treino e a performance do atleta. A verdade é que o Comité Olímpico já envolveu as Faculdades mas ainda temos que aprofundar essa ligação. O alto rendimento tem que ser bem preparado. Temos que ser capazes de responder à pergunta: o que é que podemos fazer a um atleta para o desafiar a ser ainda melhor? A diferençazinha que separa um atleta da medalha de ouro não é a regularidade, mas a superação, e ele só vai melhorar se tiver uma pessoa que o ajude a vencer as suas próprias dificuldades. Mil metros no K1 é uma distância longa e muito exigente. O Fernando é uma atleta explosivo, até porque durante muito tempo treinou em embarcações de equipa, mas treinar sozinho nesta distância não ajuda em nada. Não tenho dúvidas que o Fernando podia ir buscar esse ‘boost’ que em algumas ocasiões lhe tem negado o ouro. Não me canso de repetir o exemplo húngaro.
E há estratégia para Paris?
Espero que haja aprendizagem para melhorar. Não estou a queixar-me. Neste ciclo olímpico que agora termina estivemos sempre nos pódios, campeonatos da Europa, do Mundo e Jogos Olímpicos. É único. No entanto, quando sentimos que não fizemos tudo, que havia estratégias mais finas que deveríamos ter acautelado, que muitos alertas deveriam ter sido tomados em conta, pensamos que podia ter sido ainda melhor. Espero que se retirem algumas conclusões úteis para o ciclo olímpico de Paris 2024, se perceba que este atleta melhor fará quanto mais o ajudarmos a fazer melhor, ou seja, a superar-se como atleta. E é nesse ponto que está o ouro.
SM – O Professor foi atleta e treinador. Acha que essa circunstância tornou mais compreensivas as suas abordagens de treino?
Eu pratiquei durante cerca de dois anos, no início dos anos 90, embora rapidamente me tenha inclinado para o treino. Haverá poucos casos de treinadores de canoagem que não tenham sido praticantes. Lembro-me do treinador da Lisa Carrington, neozelandesa, que foi a canoísta mais medalhada em Tóquio, com três medalhas de ouro. O treinador não tem grande ligação com a modalidade, às vezes falo com ele em congressos e ele diz: ‘eu aplico os princípios gerais do treino e cheguei lá’. Quando já se foi atleta da modalidade, tem-se um tacto e uma compreensão diferentes. Por outro lado, também não acredito que o facto de não se ter praticado seja impeditivo de se ser treinador. O grau de competência cultiva-se, basta termos a ambição de querer ser melhor e motivar os outros para o mesmo. Um treinador que se conforme não vai longe.
SM – Essa dinâmica de insatisfação também se gera muito na relação que tem com o Fernando, independentemente de, no final do dia, terem ambos o mesmo objetivo?
HL – Quando somos rigorosos e exigentes, temos que ultrapassar dificuldades. Por exemplo, terminados os Jogos Olímpicos, que são o final de um ciclo muito exigente, a fase de regresso ao treino é difícil. É como se fosse um recomeçar de tudo. Se calhar era melhor fazer férias. Mas o Fernando quis prosseguir e o treinador também tem que saber dosear o trabalho, de forma a não comprometer a performance do atleta. Mas há atletas que não suportam um nível de exigência sempre elevado. Não conseguem. Não há forma lúdica de fazer isto. No alto rendimento, ou se treina para ganhar, ou não se ganha. O Fernando é um atleta que conta as medalhas e isso reflete um grau de exigência sempre muito elevado.
“Há atletas que não suportam um nível de exigência sempre elevado. Não conseguem. Não há forma lúdica de fazer isto. No alto rendimento, ou se treina para ganhar, ou não se ganha.”
SM – Que características vê no Fernando que o tornam um atleta de exceção e como é que tem, através do treino, conseguido melhorar essas características’?
HL – Corpo e cabeça. Ele sempre foi um menino que trabalhou bastante, desde cedo. Estamos nisto desde os 18 anos dele. Há atletas que conseguimos conduzir por um caminho até ao topo e mantê-los lá. Há outros que não, que chegam a um nível elevado mas depois dispersam-se e vão para as redes sociais espalhar um pouco da magia… Quando em 2016 o Fernando ganhou a sua primeira medalha olímpica, em Londres, no K2-1000mts, disse-lhe: ‘agora podes viver os próximos tempos à sombra deste sucesso ou trabalhar para melhor’. Ele quis trabalhar. Depois, tem esta invulgar determinação e capacidade de trabalho e de sofrimento. Se não fosse assim, não conseguiria manter este nível continuado de resultados.
SM – O K1 é uma embarcação individual. Há uma estratégia ou a única estratégia é chegar em primeiro?
HL – É logico que o atleta tem que saber dosear a sua prova. Isso é uma estratégia. Antigamente, nos 1000 metros, em regra, o atleta passava aos 500 metros mais rápido e depois fazia a segunda metade mais lenta. Com a nossa chegada passámos a ter uma estratégia diferente. Fazer uma primeira metade muito mais rápida e a segunda mais lenta, embora a melhorar o tempo. E foi assim que o Fernando foi Campeão do Mundo, que conseguimos tirar muitos adversários de prova. Agora, é lógico que neste momento já todos estudaram e conhecem a nossa táctica e o Fernando tem que preparar para Paris um trabalho diferente. Se nós avaliamos os outros países, eles fazem o mesmo, mas depois têm uma abordagem mais ágil para reagirem.
SM – Qual então a nossa vantagem comparativa?
HL – Em termos de infraestruturas, em Montemor não são más, embora possam ser melhoradas. Acho que os portugueses têm uma enorme capacidade de trabalho e de ir à luta, e embora com menos recursos e com uma menor base de recrutamento de novos atletas, em muitas situações conseguem fazer melhor do que outros. Temos os melhores caiaques da modalidade sediados em Portugal, os Nelo. Se mantivermos capacidade para diversificar estágios treinando com outras equipas de topo, a modalidade pode continuar a crescer. O nosso sucesso é um misto de trabalho e também de conhecimento.
SM – E quando perde? Ou numa situação como a que se passou no Rio de Janeiro, com as algas? É o ombro amigo ou é mais o treinador racional que avalia o que correu mal e o que é preciso corrigir?
HL – Digo-lhe já que reagi muito mal. Nesse ano, 2016, o Fernando tinha sido campeão da Europa e estava na melhor forma de sempre. Ele deslizava na água. Em cada treino que fazia batia o recorde olímpico, sentia-se muito bem. Tudo estava encaminhado para um grande resultado. O Fernando até saiu bem na prova, mas a certa altura não saía do sítio, o barco não progredia. Os quatro atletas que tinham conseguido melhores resultados no ciclo olímpico foram também os que ficaram nos últimos quatro lugares no Rio de Janeiro. Isto quer dizer que os melhores foram os mais prejudicados. Imagine o Usain Bolt a correr e a pista dele ter um bocadinho de musgo…
SM – Também é treinador da Joana Vasconcelos, uma atleta que tem mais de três dezenas de medalhas em competições internacionais. Como é que vê a evolução da modalidade no sector feminino?
HL – Só estou com a Joana desde 2018. No sector feminino temos duas atletas de referência, a Joana e a Teresa Portela. Têm tido um nível espetacular. Em 2018 foram campeãs da Europa K2-200mts. Individualmente são as melhores portuguesas. A Joana foi campeã do mundo júnior e a partir daí teve um percurso notável, já depois ganhou a taça do Mundo em K1-500mts, embora lhe falte ainda alguma experiência em provas individuais. Ainda agora o Pedro Casinha foi campeão do Mundo júnior. Temos talento, agora falta subirem dois degraus até à excelência.
SM – O Fernando ainda tem muito para ganhar mas não será eterno. E depois do Fernando?
HL – Eu penso que a Federação tem que preparar muito bem este ciclo olímpico, pois há um conjunto de atletas que ainda pode ir a Paris e, eventualmente, fazer mais um ciclo posterior. Há que trabalhar novos talentos para assegurar o futuro. Penso que temos todas as condições para ir renovando a equipa.
SM – O que é que o Professor Hélio Lucas quer ainda fazer na modalidade?
HL – Fui dirigente de clube, presidi uma associação de clubes do Minho, já fui vice-presidente da Federação Portuguesa de Canoagem. coordenador nacional do desporto escolar na modalidade canoagem. Gostei e não digo que não voltarei. Mas o que mais gosto é de ser treinador e é isso que vou continuar a ser.
Hélio Lucas licenciou-se em Educação Física e Desporto pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Fundou o Clube Náutico de Ponte de Lima, o maior do país, onde esteve até 2018, presidiu à Associação de Canoagem do Minho e durante quatro anos foi Vice-Presidente da Federação Portuguesa de Canoagem. Professor de Educação Física e antigo coordenador nacional do desporto escolar na modalidade canoagem, é técnico nacional de canoagem desde 2014.
Antonio
Novembro 25, 2021 at 2:16 pm
Boa tarde só um reparo não é Pedro Cardinas o atleta júnior campeão do mundo de K1 200mts é sim Pedro Casinha
Redação SM
Novembro 26, 2021 at 4:33 pm
Boa tarde, António. Nós agradecemos a observação. Já fizemos a devida correção. Obrigado pela leitura!
Antonio
Novembro 26, 2021 at 6:13 pm
Sempre ás ordens e Obrigado
Nuno ATSIONAC
Novembro 26, 2021 at 10:41 am
PARABÉNS.
Paulo Salvador
Novembro 27, 2021 at 8:15 am
Grande Lucas…Excelente Trabalho…As melhores Felicidades e BOM TRABALHO para Paris 2024…SIGA!
Pingback: Canoagem: Fernando Pimenta termina o ano na liderança do ranking mundial em K1 1000 – SportMagazine