Rio de Janeiro, Lagoa Rodrigo de Freitas, 16 de Agosto de 2016. Na linha de meta da final de K1-1000mts, a distância rainha da canoagem olímpica de velocidade, Fernando Pimenta sente chegado o momento de uma vida, preparou-se para ser campeão olímpico, passou horas acordado a sonhar com algo que sabe ser possível, sente que chega lá. O pódio olímpico não lhe é estranho, pois quatro anos antes, em Londres, trouxera prata na final de K2-1000mts, com o seu companheiro de embarcação, Emanuel Silva. O Rio é o momento para a consagração individual.
A amplitude e a força são uma repetição de milhares de horas de treino. Pimenta pagaia tudo o que tem, mas não é suficiente quando algas e folhas caducas na pista produzem na quilha e no leme do caiaque uma força resistente que contraria a velocidade, ilude a técnica, compromete a Física. O cronómetro não perdoa e o pódio fica distante. Todos os favoritos ficam para trás. É um dia mau para quem perdeu, uma glória improvável para quem ganhou.
O processo de gestão emocional pós-Rio foi duro. Fernando Pimenta teve que gerir a frustração, quase perdeu a vontade de treinar, foi alvo de críticas e comentários depreciativos em Portugal, num ápice passou de ‘serial winner’ a saco de pancada das redes sociais. Porém, mágoas duradouras não são alimento a que os campeões estejam habituados e, quatro anos volvidos, Pimenta voltaria aos Jogos Olímpicos, desta vez em Tóquio, onde finalmente cumpriu o sonho de uma medalha individual. Não foi campeão, mas uma medalha olímpica, a segunda da sua carreira desportiva, já é em si um triunfo.
O canoísta de Ponte de Lima recebeu a distinção com justa alegria, partilhou-a com sorrisos e prometeu mais para o futuro. Certo é que um mês depois de Tóquio, em Setembro, nos Mundiais de Copenhaga, encontrou os 67 centésimos de segundo que lhe faltaram na capital japonesa e ‘vingou-se’ do campeão olímpico, ganhando-lhe a final de K1-1000mts. Nada de novo na sua vida. Já tinha sido campeão do Mundo em 2018.
Fernando Pimenta é um homem tranquilo, afável no trato, consegue ser espirituoso por detrás da máscara de segurança que a luta contra a pandemia ainda aconselha. Figura esguia, a musculatura desenhada por incontáveis braçadas nas pistas fluviais de todo o mundo, afinada no treino e no equilíbrio de uma vida responsavelmente regrada. Porém, esta tranquilidade no verbo oferece um engano acerca da ambição que vive escondida naquela modéstia genuína. Não é uma máscara, algo que esconda por cálculo, mas antes uma inquietação interior que lhe tem motorizado a carreira. Quando o ouvimos falar do que não lhe correu de feição, da persistência com que tem perseguido os bons resultados para esquecer os menos bons, percebemos melhor que estamos perante alguém para quem ganhar não é suficiente. Ou talvez seja, desde que volte a ganhar.
O canoísta limarense começou cedo para a modalidade, na terra onde nasceu, Ponte de Lima. Aos 4 anos já fingia que era campeão, mas foi em 2001 que começou a dar nas vistas, no decorrer de um programa de férias desportivas. Destacava-se dos demais mas, ainda hoje, diz modestamente que nunca “se achou melhor do que os outros”. Certo é que, em 2004, chegaria o primeiro título de cadetes, nessa altura ainda em K2, uma embarcação para dois atletas. No ano seguinte, a primeira medalha de ouro em K4-500mts, no Festival Olímpico da Juventude Europeia, em Itália. O primeiro título internacional individual, ainda como júnior, acontece em 2007, já numa altura em que o atleta começou a apostar no K1 como prioridade da sua carreira desportiva. Foi campeão europeu. Repete a proeza em 2009. Nos anos seguintes, os resultados vão produzindo medalhas, com destaque para a prata nos Jogos Olímpicos, em 2012, a única que Portugal obteve em Londres e também a primeira da história da modalidade.
Depois de Londres foi duplo campeão em K1-1000mts e K1-500mts, nas Universíadas de Cazan, em 2013, na Rússia. Em 2015 ganhou a Taça do Mundo, em 2016 o Campeonato da Europa nas duas categorias, em 2017 o Campeonato do Mundo em K1-5000mts, o Campeonato da Europa em K1-1000mts e a Taça do Mundo em K1-1000mts. Mais três medalhas de ouro em 2018, nos Campeonatos do Mundo e da Europa, uma razia na concorrência na Taça do Mundo em 2019, ouro nos Mundiais de 2020, já este ano bronze nos Jogos Olímpicos e ouro nos Mundiais de Copenhaga.
Atualmente a representar o Benfica, Fernando Pimenta entrou para o restrito grupo de atletas portugueses que bisaram medalhas olímpicas. Acompanha Rosa Mota, Fernanda Ribeiro e Carlos Lopes. Do agora grupo de quatro, só Fernando ainda não é campeão olímpico. A seu tempo…
Fernando Pimenta: “Ainda quero ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris”
“Acredito muito na sorte, mas quanto mais trabalho, mais sorte pareço ter”, deixou escrito o filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882). De facto, não há sorte sem trabalho. Fernando Pimenta aceita o trabalho árduo que custa ser o melhor, mas por cada medalha há uma face de sacrifício e resiliência para contar. E muito treino.
Com 142 medalhas conquistadas – mais de metade são de ouro -, em competições internacionais e nacionais, o canoísta Fernando Pimenta destaca-se pela invulgar série de resultados consistentes no topo da modalidade. Nenhum livro de história do desporto em Portugal se esquecerá dele pelo que já conseguiu, mas ainda quer ser campeão olímpico em Paris 2024.
SportMagazine (SM) – Em Setembro ganhou ouro e prata no Mundial de Copenhaga. Já são 142 medalhas, duas delas olímpicas. No entanto, no Rio, em 2016, quando falhou o pódio disse que “tinha perdido a vontade de treinar”?
Fernando Pimenta (FP) – Para lhe falar disso até posso começar um pouco antes, em 2015, que foi um ano em que me reencontrei, tive possibilidade de fazer um plano e um trabalho só com o meu treinador. Já tinha tido essa possibilidade em 2014, mas foi o nosso primeiro ano juntos a tempo inteiro, com o apoio da Federação. Em 2015 começámos a cair nas medalhas com uma grande regularidade. No Mundial desse ano fizemos história na canoagem com uma primeira medalha (bronze) na distância olímpica de K1-1000mts. Mesmo assim, na primeira edição dos Jogos Europeus consegui duas medalhas de prata, no K1 1000mts e no K1-5000mts. Por isso tinha sido um ano fantástico de evolução e em 2016 continuámos esse trabalho, com o foco de poder lutar pelo pódio. A primeira competição nesse ano, a Taça do Mundo, em Duisburg, não nos correu bem, pois ficámos em sétimo lugar em K1-1000mts. Estava com alguns problemas de saúde e não correu da melhor forma. Aí, as pessoas já começaram a olhar um pouco de lado para nós, como se fôssemos uma carta fora do baralho para os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro.
SM – Está a referir-se a que pessoas? O público em geral?
FP – Mesmo pessoas da equipa… Infelizmente, notámos muito isso, até da forma como nos abordavam. Passado mês e meio fui bicampeão da Europa em K1-1000mts e K1-5000mts. Em K1-1000mts ganhei com grande vantagem. Nessa altura, percebemos que as pessoas já voltaram a acreditar, a pensar que, afinal, já era possível lutar pelo título olímpico. Na verdade, voltámos com a mesma ambição que nos levou até ao Europeu. Fiz ainda mais sacrifícios pessoais, endureci a dieta, foi tudo mais intenso em termos de trabalho e de foco, afastei-me quase totalmente da família para poder estar o máximo tempo possível em estágio e focado no objetivo. Até investi algum dinheiro dos patrocinadores, que deveria ser para mim, na minha preparação. Ou seja, fizemos tudo para chegarmos ao Rio na máxima força. E chegar lá e ser derrubado por uma coisa que não controlávamos foi muito duro…
SM – É a já famosa história das algas…
FP – Sim, senti sempre que podia ser campeão olímpico em 2016. Preparei-me para isso. A motivação, o peso, a potência, o descanso, a alimentação, tudo isso nós controlámos, mas não as algas na pista. Provavelmente, hoje estaríamos a falar de um Fernando Pimenta com três medalhas olímpicas. Claro que fiquei muito desiludido, mas tive que levantar a cabeça pois ainda tinha uma competição a seguir à prova de K1-1000mts, que era o K4/1000mts. Mas depois dos Jogos perdi a vontade de treinar, não queria saber se ia voltar a remar. Fiquei muito abalado. Tive umas férias mais longas para tentar digerir a desilusão.
SM – O que é que o seu treinador lhe disse nessa altura?
FP – Convém dizer que muita gente na altura pensou que eu estava a desculpar-me da fraca performance. Certo é que, quatro dos oito atletas que competiram na final foram prejudicados e eu fui um deles. No final ainda foi apresentado um protesto mas já não foi aceite com a alegação de que fora apresentado fora de tempo. Depois deste choque, eu e o treinador falámos abertamente sobre o rumo a tomar. Tivemos que nos reinventar e estabelecer novos objetivos. E foi graças a essa primeira reunião que tivemos em Ponte de Lima, que voltámos com objetivos bem claros: conquistar mais medalhas, mostrar aos que nos criticaram que estavam enganados e mostrar aos que acreditaram em nós que podiam continuar a acreditar.
SM – Foi a primeira vez que lhe aconteceu ser confrontado com uma adversidade que é externa, condiciona a sua performance mas tem que ser ultrapassada?
FP – Já apanhei lixo e ervas em outras provas. Em 2011 quando fiz o K2/2000mts com o meu colega João Ribeiro, em Poznan, também tínhamos feito uma saída bastante forte e a meio da prova engachámos ervas na frente da embarcação e acabámos em sétimos. São coisas que podem acontecer, esperamos sempre que os organizadores das provas tenham os canais limpos mas isso nem sempre acontece. Montemor-o-Velho, por exemplo, que é o local que temos de treino de alta competição e onde é o nosso centro de alto rendimento, infelizmente está infestado de algas e prejudica o nosso treino.
SM – Mas isso tem solução, ou não?
FP – O problema é que as soluções apresentadas envolvem depois diversas entidades públicas e o processo torna-se muito complexo e nem sempre compatível com o tempo de vida desportiva de um atleta, que, como sabemos, é curto. O Rio Lima, por exemplo, também está a passar por uma fase difícil nesse aspeto. Todas as nossas albufeiras e rios estão sujeitos a esta fase de alterações do clima que, obviamente, se reflete nas condições para a prática e treino da modalidade. Os caudais dos rios têm estado muito baixos, as algas desenvolvem-se mais rapidamente. Em Ponte de Lima, por exemplo, penso que a canoagem vai deixar de existir em poucos meses.
SM – Ou mudar de sítio…
Isso acho impraticável devido à estrutura do clube de canoagem de Ponte de Lima, o maior do país. Mas se nada for feito, a canoagem ali acaba. O rio está impraticável.
SM – O Fernando está há muitos anos no topo da modalidade. Sente que as pessoas, o seu treinador, os seus patrocinadores, já olham para si com a obrigação de ganhar?
FP – De certa forma sim. Há olhares que dizem coisas. Nós sentimos essa responsabilidade. Trazemos medalhas e resultados, mas isso acarreta dificuldade, pois há sempre novos atletas a surgir que também querem medalhas. Temos que fazer o que está ao nosso alcance e continuar a escrever a história da canoagem. E isso é um processo com todas as consequências inerentes em termos de trabalho e sacrifícios.
SM – Sente que esses sacrifícios são um custo necessário para o nível em que compete?
FP – Sim, tenho essa noção. Se treinasse todo o ano em Ponte de Lima não ia conseguir o rendimento que tenho. Precisamos de sair das zonas de conforto, afastarmo-nos de casa, conseguir estímulos diferentes. Infelizmente, durante a maior parte do tempo tenho que treinar sozinho, sem parceiro de treino. Em Tóquio, na final olímpica, eu era o único atleta que não tinha parceiro de treino e isso faz muita diferença no treino diário. Nunca consegui ter esse apoio, apesar de insistir desde 2017. O húngaro que venceu a prova de K1/1000mts em Tóquio teve durante esta época um parceiro de treino mais rápido do que ele para conseguir evoluir na parte da velocidade. Cá não tivemos possibilidade, podíamos até recrutar atletas mais novos que estivessem disponíveis para isso.
SM – Tem a convicção de que se tivesse um parceiro de treino podia obter ainda melhores resultados? Em Setembro, em Copenhaga, reconquistou o título de Campeão do Mundo em K1/1000mts, vencendo precisamente o Balint Kopasz, o húngaro que lhe ganhou em Tóquio e que costumava ser mais lento do que o Fernando.
FP – É verdade. Tenho a certeza de que tendo um parceiro de treino, podia evoluir na velocidade. Entre os atletas da final em Tóquio, eu venci a categoria do semiprofissional. Para ser profissional teria que ter as mesmas condições do que os outros. E não tenho. Desde ter massagista ou fisioterapeuta praticamente a tempo inteiro, apoio mais próximo em termos de análises e exames médicos, parceiro de treino, a parte da recuperação, tudo isso pesa quando estamos numa final olímpica. Mas posso sentir-me orgulhoso porque saquei este resultado a ferros. E, em Setembro, no Mundial, provei que Tóquio foi só um dia mau.
SM – A sua relação com o treinador já é longa. Estão sempre de acordo?
FP – (risos) Não! Isto é parecido com um casamento, temos as nossas desavenças mas depois não procuramos ver quem tem razão. Tentamos, sobretudo, encontrar ali um ponto de equilíbrio, de entreajuda, para evoluir sempre.
SM – Como é um dia normal do seu treino?
FP – Costumamos ter duas sessões de treino da parte da manhã, já no caiaque. A primeira sessão pode ser de corrida, bicicleta, ou outra sessão na água. À tarde posso ter mais uma ou duas sessões de treino, dependendo da época. Pode ser canoagem, ginásio ou corrida, ou bicicleta. Basicamente, durante todo o ano, são cerca de 11 meses ininterruptos de treino, 6 horas por dia. Há dois dias da semana que temos a tarde de folga para o corpo regenerar um pouco. O resto do ano é sempre a treinar.
SM – O K1-1000mts é a especialidade que prefere na canoagem?
FP – É a especialidade em que a qualidade do resultado depende exclusivamente do meu esforço, logo, não estou dependente se os meus parceiros estão bem ou não, desmotivados ou não. A embarcação monolugar é onde me desafio a mim próprio. O desafio é solitário.
SM – Começou a praticar canoagem muito cedo? Porque é que escolheu esta modalidade?
FP – Comecei em 2001 numas férias desportivas do Clube Náutico de Ponte de Lima, no Verão. Sempre pratiquei desporto nas férias escolares e nesse ano calhou o remo. Então fui convidado pelo meu atual treinador a ficar na equipa de competição.
“Não podemos perder a vontade de conseguir mais e melhor. Há tempos, um amigo perguntava-me se eu estava contente com a medalha olímpica em Tóquio. E perante a minha expressão pouco convincente ele mesmo respondeu: ´pois, tu, mesmo que ganhasses, não estarias satisfeito…’.
SM – E quando é que começou a sentir que era melhor do que os outros? Sentiu que era melhor porque trabalhava mais e era mais disciplinado? Ou porque tinha outra qualquer aptidão?
FP – Nunca senti que fosse melhor do que os outros. Pelo menos no início. Talvez em 2005, quando comecei a ganhar os primeiros títulos individuais, tenha começado a pensar que podia chegar a algum lado. Nesse ano ganhei também a minha primeira medalha internacional, em K4-500mts, no Festival Olímpico da Juventude Europeia, em Lignano, Itália. Depois, em 2007 fui campeão europeu de juniores. Claro que sabia que a transição para seniores era complexa mas, felizmente, consegui integrar-me muito bem e continuar a ter bons resultados. E foi nessa altura que comecei a lutar pelo apuramento olímpico.
SM – Reconhece que tinha, e tem, uma autodisciplina acima da média?
FP – Isso já faz parte de quem quer ter bons resultados. Não podemos perder a vontade de conseguir mais e melhor. Há tempos, um amigo perguntava-me se eu estava contente com a medalha olímpica em Tóquio. E perante a minha expressão pouco convincente ele mesmo respondeu: ´pois, tu, mesmo que ganhasses, não estarias satisfeito’.
SM – Isso é a medida da sua ambição. E do lado do treino como é que consegue gerir a saturação, todos os dias a fazer o mesmo, com cargas pesadas de treino? Cria-lhe algum problema de saturação ou gosta tanto que…venha mais carga?
FP – Satura, sem dúvida. Essa questão da carga pesada…temos que ver que já são muitos anos no alto rendimento e isso provoca um grande desgaste a nível físico e psicológico, pois é uma rotina bastante dura. Levamos o corpo ao limite, à plena exaustão. Muitas vezes, no treino, penso que vou rebentar a qualquer momento, a sensação é mesmo de dor física. As recomendações médicas gerais dizem-nos que no caso sentirmos dores, dores de cabeça, calafrios, etc…estamos doentes…Eu penso que devo estar doente desde o princípio da época (risos). São raros os dias em que isso não me aconteça. Temos que trabalhar na máxima força, mas em termos motivacionais nem sempre é fácil. O trabalho solitário agrava mais.
“Temos que fazer o que está ao nosso alcance e continuar a escrever a história da canoagem. E isso é um processo com todas as consequências inerentes em termos de trabalho e sacrifícios.”
SM – Vai ser treinador quando terminar a sua carreira de atleta?
É uma pergunta que ainda não sei responder. Tenciono voltar aos estudos para completar a minha formação e depois logo se verá. Claro que gostaria de continuar ligado ao desporto.
SM – O que é que ainda quer conquistar como atleta?
FP – Sou campeão do Mundo. Gostava de conquistar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, em Paris, e outra nos Jogos Europeus, que é o que me falta. Sei a dificuldade que é atingir este objetivo, mas também sei que pode acontecer o momento e tenho que estar preparado para isso.
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