25 de Novembro 2024 13:36
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Didática da ética desportiva: desenvolvimento de valores através da praxis desportiva

Bruno Avelar Rosa. Foto: DR

*por Bruno Avelar Rosa: Professor Auxiliar convidado na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra

O potencial do desporto enquanto ferramenta para o desenvolvimento de valores promotores de ética e cidadania, além de espaço com valores particulares que lhe são próprios, é hoje uma evidência científica e também um lugar comum entre as mais diversas organizações desportivas às mais diferentes escalas. Organizações como a UNODC (Organização das Nações Unidas foca- da na prevenção do uso de drogas e da criminalidade) ou a UNCC (Organização das Nações Unidas focada na luta contra as mudanças climáticas), além da mais recor- rente UNESCO (Organização das Nações Unidas focada na educação, ciência e cultura), desenvolvem programas próprios através dos quais suportam, recorrem ou pro- movem os valores do e no desporto.

No contexto desporto específico, também organizações como o Comité Olímpico Internacional, a TAFISA-Associação Internacional de Desporto para Todos ou o Comi- té Internacional para o Fair-Play, têm reforçado a explicitação dos valores que sustentam a atividade desportiva nas suas mais diferentes tipologias.

Em Portugal, ganha destaque o Plano Nacional de Ética no Desporto, desenvolvido pelo Instituto Português do Desporto e Juventude, que tem desenvolvido com grande periodicidade atividade e recursos diversos com vista ao reforço dos valores do e no desporto. Porém, o reconhecimento do desporto como ambiente com potencial para a promoção de valores não é suficiente para que estes, efetivamente, se desenvolvam. A sua pro- moção dependerá sim, em primeira instância da ação intencional dos agentes desportivos que mais perto se encontram da praxis desportiva e dos atletas propriamente ditos e que são, inequivocamente, os treinadores.

É, assim, necessário que os treinadores reconheçam a ética desportiva e os valores que a constituem como um conteúdo e objeto de treino tão importantes e exigentes de conhecimento e metodologia como qualquer outro de ordem física, técnica ou tática. Com efeito, é a instru- mentalização didática dos valores do e no desporto por parte dos treinadores, ao torná-los parte integrante do processo de treino desportivo, que permitirá ultrapas- sar a retórica que lhes está associada.

Para que a operacionalização dos valores em contex- to de treino e competição possa suceder com a devida intencionalidade, consideramos essencial o desenvolvi- mento complementar das seguintes ações didáticas por parte dos treinadores:

  1. Incidir o  foco  em   valores   instrumentais: Segundo Rokeach (1979)1, os valores podem ser dividi- dos nas suas tipologias instrumentais e Os valores terminais consistem em alvos ou metas a alcançar pelo indivíduo, enquanto os valores instrumentais consistem nos comportamentos desenvolvidos e levados a cabo que os anteriores sejam alcançados. Dadas as características da prática desportiva, consideram-se os valores instrumentais como aqueles que melhor podem ser  exercitados no próprio treino desportivo. Neste sentido, valores como a autonomia, cooperação, liderança, disciplina, compromisso ou resiliência podem ser integrados enquanto componentes das diferentes tarefas implementadas ao longo do processo de treino desportivo.
  2. Instrumentalizar os valores no âmbito dos  fatores psicológico  e  social  do  treino  desportivo: Embora reconhecida a sua importância, a dimensão psicossocial do treino e suas respetivas condicionantes afetivo-emocionais e socioculturais não têm recebido da parte dos treinadores a mesma atenção que os fatores físico, técnico ou tático no que à sua instrumentalização na prática do treino diz respeito, embora também estas sejam passíveis de instrumentalização internamente ao processo de treino desportivo. Contudo, tal não implica a criação de novas tarefas focadas nesses objetivos de ordem psicossocial (criando novas tarefas e isolando-as das restantes tarefas de treino), mas sim a integração destes fatores enquanto componente crítica ou critério de êxito das tarefas que regularmente são implementadas. Desta forma, o desenvolvimento de valores já mencionados como a autonomia, cooperação, liderança, disciplina, compromisso ou resiliência podem assim ser integrados no planeamento, prescrição e avaliação da tarefa enquanto como objetivos associados ao fator psicológico ou social do treino desportivo, sem que tal faça descurar qualquer outro fator de desenvolvimento constante do processo.
  3. Associar os valores visados a cada etapa de desenvolvimento: Os valores não são imutáveis e, como tal, manifestam-se de diferentes maneiras nos diversos momentos do desenvolvimento desportivo. Como tal, importa que o modelo de treino adotado seja esclarecedor dos va- lores que se pretende desenvolver e, sobretudo, da sua adequabilidade à etapa em questão. A definição de indicadores de manifestação para cada um dos valores considerados essenciais no processo de treino em questão e em função de cada etapa de desenvolvimento também permite ao treinador monitorizar o seu desenvolvimento nos atletas ao longo das diferentes etapas. Esta abordagem, metodologicamente vinculada ao modelo canadiano de desenvolvimento de atletas de longo prazo, encontra paralelo na proposta da também canadiana True Sport que se foca no desenvolvimento de sete princípios de ética desportiva que evoluem ao longo das etapas de desenvolvimento dos atletas.

Notas finais

A ética no desporto e os valores que a constituem não são um conteúdo de cariz retórico que se encontra longe da prática desportiva real. Pelo contrário. As características particulares da prática desportiva potenciam o desenvolvimento desses mesmos valores na sua própria praxis. Contudo, estes não se manifestam por geração espontânea, sendo por isso  necessária uma ação intencional por parte do treinador para que os mesmos, sendo parte integrante e concreta do pro- cesso de treino desportivo, possam contribuir para o desenvolvimento desportivo integral dos atletas – e por integral entende-se a consideração do atleta como cidadão pleno.

Com este texto, procurou-se apresentar algumas propostas que visam a inclusão dos valores como instrumento de treino desportivo, permitindo assim aproximar o discurso comum relativo à importância dos valores à sua didática na prática propriamente dita. Não sendo exaustiva nem intensiva, espera-se que possa, pelo menos, estimular a curiosidade dos treinadores acerca da possibilidade de inclusão da ética desportiva enquanto elemento próprio, e não alheio, do processo de treino desportivo.

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