Por Carlos Resende* (treinador de andebol do F.C.Gaia)
A motivação vem com o nosso código genético e pode ser exponenciada com o nosso contexto de vida.
Sempre que falamos sobre motivação e a dividimos em intrínseca e extrínseca, todos atribuímos maior relevo à primeira para a percussão de bons resultados, pois não está menos dependente do contexto. No entanto, quero sublinhar a importância da motivação extrínseca na criação de um ambiente competitivo saudável, um ambiente que permita o desenvolvimento individual e coletivo, um ambiente que “motive” os atletas voltarem para o treino.
Os treinos devem dar resposta às necessidades do atleta (devem permitir o desenvolvimento individual), mas, sobretudo, às necessidades da equipa (os atletas têm perfeita noção da forma e da substância que a equipa possui e necessita para ter sucesso, pelo menos os mais experientes); a competição tem de estar permanentemente presente em cada exercício (adaptada à fase competitiva, ao escalão etário e ao domínio técnico/tático de cada atleta); os treinos devem gerar um bom ambiente interpessoal; as condições de treino e o material adequado são, também, muito importantes para a motivação; a forma como lidamos (a nossa relação) também é essencial. E também quero destacar a exigência, a competência percebida e a justiça sentida.
Motivação e superação
Uma questão se coloca: Motiva-se mais o atleta numa perspetiva de superação de si próprio ou mais com caminho para uma meta, que será o sucesso (independentemente de se chegar lá)? Julgo que serão dois caminhos para dois perfis de pessoas distintos. Com certeza que existem atletas aos quais é suficiente falar na sua superação individual e outros que preferirão vislumbrar o caminho que terão de percorrer para alcançar o sucesso!
Os ambientes extremos, caso da alta competição, são os mais desafiantes em termos de liderança e motivação. Digo sempre aos meus atletas que devemos festejar, mas nunca demasiado, pois há sempre algo mais para vencer; e, em sentido contrário, também não devemos estar demasiado refém das derrotas, devemos aproveitá-las ao máximo para aprender. Todos sabemos que as derrotas nos ensinam mais que as vitórias, pelo que, para o atleta, é muito importante saber porque falhou ou porque falhou a equipa, como evitá-lo no futuro e o que devemos fazer diferente para vencer.
Os adversários não são todos iguais. Se um atleta tem a perceção que o adversário é muito superior, então, pode acontecer uma de duas coisas: ou desiste de treinar com qualidade para este objetivo e centra-se num outro, ou entra para a competição sem qualquer tipo de pressão e a coisa até pode correr bem…
No entanto, é um sentimento que não é desejável no alto rendimento. Podemos, também, se tal for exequível, baixar o nível do objetivo, por forma a centrar o atleta no mesmo.
Treinadores ‘psicólogos’
A motivação é uma competência psicológica, mas pode ser trabalhada numa direção e com uma intensidade muito particular. Infelizmente, as equipas técnicas com psicólogos, por um lado, são escassas, e, por outro, ainda são relativamente recentes. Este facto empurra para os treinadores, nuns casos, e, para dirigentes, noutros casos, mais uma competência: a preparação mental dos seus atletas.
No andebol, que é o ecossistema competitivo que conheço melhor, já assisti a tudo, isto é, desde um enfoque muito grande na motivação extrínseca (através da atribuição de prémios), até à preocupação individual com o bem-estar do atleta e da sua família mais próxima. De todo o modo, em ambas situações venci e perdi.
O ideal é integrar um psicólogo do desporto na nossa equipa técnica, por forma e colaborar com o treinador no seu planeamento macro e micro. A abordagem que prefiro é ter um psicólogo a trabalhar com a equipa técnica (assim ser-nos-ía possível ter alguém a “treinar-nos”) e, se possível, um outro com os atletas.
Julgo que, ao separarmos todos os conteúdos que o treino deve conter, podemos cair num engodo de grandes dimensões e apresentar uma falta de tempo gritante para trabalhar todos os aspectos, assim como perdermos a noção do todo.
Um treinador deve treinar os conteúdos da sua modalidade, no caso do andebol: técnica e tática individuais, tática grupal (Meios Táticos de Grupo), sistemas de jogo e questões estratégicas; a isto tudo temos de juntar a velocidade, a resistência, a força e a flexibilidade; a observação de vídeos da nossa equipa e dos adversários, a motivação, a auto-confiança, etc… pelo que defendo que o treino deve integrar todos os componentes possíveis e, ocasionalmente, se houver tempo para tal, trabalhar alguns dos aspetos colaterais à parte.
Com os meus jogadores procuro ilustrar as necessidades que cada um tem para melhorar a sua performance, e, em consequência a performance da equipa. Nos desportos coletivos dependemos muito uns dos outros, pelo que nas sessões de vídeo premeio sempre boas condutas de treino e jogo, procurando que todos sigam esses exemplos. Aliás, o mesmo acontece durante o treino (embora reconheça a dificuldade em sublinhar todas as ocorrências.
O ser humano é, por um lado, muito simples de ler e, por outro, uma criatura muito complexa… De uma forma geral, todos funcionamos muito bem ao ver claramente o nosso desenvolvimento; disso são exemplo os relógios de atividade, procurando, através de feedbacks, motivarmos para as tarefas diárias que a Organização Mundial de Saúde recomenda. Nesse sentido, procuro ilustrar a evolução que cada atleta revela, assim como o que necessita de melhorar.
Alto rendimento não é para todos
Contudo, é importante referir que nem todos os atletas têm perfil para o alto-rendimento. Para entrar nesse grupo restrito é fundamental ter uma resiliência elevada, humildade para querer aprender sempre mais, boa capacidade de trabalho sob stresse, boa capacidade de organização e gostar muito do que se faz.
Apesar de ser apenas uma opinião empírica, julgo que os atletas ficam mais motivados com a modalidade quando vislumbram bons resultado desportivos e quando têm a perceção de poder efetuar carreira.
Desde logo, para a nossa modalidade é crucial ilustrar aos jovens que é possível construir uma carreira no andebol, com alguma solidez financeira. Caso contrário será muito difícil cativar os jovens para o treino de alto-rendimento.
Por outro lado, em alguns casos, as adversidades também podem funcionar como motor para a motivação.
Recordo que há uns anos atrás vivemos uma “guerra” estúpida entre a Federação e a então recém-criada Liga de Andebol, disso resultaram inúmeros problemas, dos quais destaco as dificuldades para organizar o campeonato da Liga e, por consequência, as imensas dificuldades no financiamento dos clubes. Nessa altura houve enormes atrasos no pagamento dos salários dos atletas e treinadores. Recordo que antes dos treinos procurava ver bons jogos de andebol, normalmente, da Liga dos Campeões, com o objetivo de me auto motivar para o treino. Hoje, passados esses tempos problemáticos, com uma realidade institucional estabilizada, posso referir que me ajudaram imenso a centrar-me nos meus objetivos.
Na verdade, em termos de motivação, cada atleta pode ter uma motivação diferente, ou ir busca-la a um contexto específico na sua vida ou na sua profissão. No planeamento da época, da semana e do treino, procuro dar resposta a essas várias necessidades. Aliás, devo confessar que a construção do plantel teve em conta essas diferenças, procurando ter um equilíbrio entre os vários objetivos individuais, por forma a ser possível atingir o objetivo coletivo.
O treino deve desenvolver a motivação para o sucesso. Em primeiro lugar, temos de conversar com os atletas procurando “vender” a nossa forma de de jogar (o tal modelo de jogo), assim como a nossa forma de treinar. É sempre mais fácil liderar alguém quando ele está sintonizado nas nossas decisões, o compromisso é fundamental para extrair o máximo desempenho individual.
Atenção que é impossível, no alto-rendimento, o treino ser sempre variado e agradável. Por vezes, treinar é repetir e repetir com a consciência dos erros, assim como consciência do que se está a fazer bem. Aliás, só assim podemos dizer que aprendemos, repetir e aprimorar o nosso desempenho, quer seja individual, quer seja grupal ou coletivo.
Nesse sentido, cada atleta deve criar mecanismos de automotivação que lhe permita ter elevados índices de resiliência. Sem isso poderá ser um bom atleta, mas nunca um atleta excepcional.
*CARLOS RESENDE, 50 anos, natural de Lisboa, é considerado por muitos o melhor andebolista português de sempre. Como jogador representou o F.C.Porto e o ABC de Braga, que também treinou. Professor na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP), já lecionou no Instituto Universitário da Maia (ISMAI), é atualmente treinador do F.C.Gaia (já treinou o SL Benfica, o ABC e o FC Porto).
Embaixador do Plano Nacional de Ética através do Desporto, foi Vice-presidente da Associação Portuguesa de Gestão do Desporto (APOGESD).
Licenciado em 15 de Julho de 2008 pelo Instituto Superior da Maia, obtendo a distinção de melhor aluno do ano, frequentou o Mestrado de Gestão Desportiva na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, obtendo a distinção de melhor aluno do ano, está a frequentar o doutoramento em Ciências do Desporto na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.