Por Luís Castro*
Não se deve confundir pacificidade (e aqui deixo claro que me refiro a ser uma pessoa pacífica e não passiva) com a falta ambição e ‘ganas’ por vitórias. Nem se deve confundir a sensibilidade com falta de absoluto comando do balneário – afinal, sim, é possível ser uma pessoa sensível e dura. Nem tampouco deve-se misturar a abertura ao diálogo franco com uma carta em branco para a ausência de respeito, regras e limites.
A dificuldade em encontrar o equilíbrio na linha ténue que orbita entre a liderança de um treinador transparente e criterioso e a de um profissional rigoroso e honesto com os seus valores pessoais, técnicos e morais é um dos elementos que julgo fundamentais como passaporte para o sucesso. Ou seja, é preciso saber comunicar, seja com jogadores, administração do clube, equipa técnica ou adeptos.
Quando falamos em formar um treinador, um dos fatores que penso ser impossível de ser ensinado é a de liderar. A liderança é um processo complexo que implica sensibilidade, multidisciplinaridade e, sobretudo, alguns fundamentos que não estão à venda na prateleira: tempo e prática – são parceiros, para se desenvolverem um ao outro.
Cada treinador tem um conjunto de características associadas a si. Penso que sou um treinador compreensível, mas acima de tudo sou frontal e claro com os meus jogadores. Aquilo que eu tenho que lhes dizer, digo com educação e com o respeito que eu exijo que eles tenham por mim. Isso tem sido, e nos últimos anos tem se acentuado mais, a minha forma de liderar que não será a mesma de há muitos anos. Não tenho hoje no Botafogo a mesma forma de liderar que tive no Qatar, na Ucrânia ou em Portugal.
Embora esteja alicerçada nos mesmos valores. Quando nos encontramos em culturas diferentes temos que adotar estratégias diferentes de abordagem aos diferentes temas e situações que se nos deparam. Há coisas que são transversais, isso é verdade: o respeito que eu tenho em Portugal, na Ucrânia, no Qatar ou no Brasil é o mesmo; a minha exigência pode ser maior aqui ou ali, isso pode variar devido à cultura de cada uma das equipas e jogadores que a constituem. Mas, acima de tudo, há uma coisa que é uniforme na minha liderança: a clareza, o ‘não mentir’ ao meu plantel, ao meu coração, ser verdadeiro na análise. Destaco alguns fatores que julgo serem relevantes para a formação de um treinador de sucesso:
• Ter uma capacidade de liderança que lhe permita dominar todas as situações que apareçam a nível da comunicação, da relação com a imprensa, a administração,
os adeptos, os jogadores, com todos os departamentos (neste caso, do futebol);
• Tercompetências reconhecidas pelos jogadores que comanda no dia a dia; • Dominar por completo tudo aquilo que esteja diretamente
ligado à semana de treino;
• Em termos metodológicos, o domínio completo da sua ideia de jogo, que deve ser coerente e sustentada
por conhecimento, e que não deixe nenhuma dúvida na sua tomada de decisão;
• Ter uma capacidade de comunicação para o interior e para o exterior clara e que defenda sempre dessa forma a sua instituição e a sua imagem;
• Conter um conjunto de valores que o acompanhem durante toda a sua carreira e que o vão defender e caracterizar em todo e qualquer momento mais complexo dessa carreira;
• Haver uma capacidade de relacionamento com a sua administração e os seus jogadores, que é fundamental para o desenrolar do seu trabalho. Toda essa cadeia de formação vai dar sustentação para que o treinador possa tomar as melhores decisões – e com mais segurança para si e a melhor fórmula a ser assimilada pelos atletas.
Assim, com a confiança de um grupo a partir de méritos apresentados, a rotina torna-se mais fácil: se um jogador corre mais do que o outro, se trabalha mais que o outro, se tecnicamente é melhor que o outro, se erra menos passes que o outro, é aquele que joga. Os atletas sabem-no através daquilo que lhes comunico com exatidão e clareza.
Eu não vendo ilusões. Nos últimos anos trabalhei em equipas que eram candidatas a ganhar títulos. Felizmente, na Ucrânia ganhámos no Shakhtar Donetsk; no Qatar, ganhámos no Al Duhail e antes de chegar a esses países tivemos presentes em títulos que são importantes para mim, mesmo que posssam não ser para mais ninguém. O título da equipa B do FC Porto é importante para mim porque só eu e a minha equipa técnica e os meus jogadores souberam aquilo que foi preciso percorrer para se chegar a um título com jogadores de 18, 19 anos numa Segunda Liga. Conquistámos também o título da Terceira Divisão, que não tem expressão para quase ninguém, mas tem expressão para mim e para todos os que viveram o momento. Mas não vendemos ilusões, somos claros, como agora somos no Botafogo: já dissemos claramente que a luta é pela permanência na Série A e que estamos a construir uma estrutura para um dia poder ganhar.
Essa clareza na comunicação é uma mais-valia, não nos enganarmos nem a nós próprios nem a ninguém que nos contrate. Sermos claros nisto: quando alguém nos contrata para títulos, se sabemos que não temos condições para atingirmos, não aceitamos o trabalho. É isso que trazemos, não podemos aceitar desafios com os quais achamos que não temos elementos para atingirmos esse objetivo.
Trabalho na formação
Para além do processo de treinadores nos escalões sénior, defendo em virtude da experiência que tive nos dez anos ligados à formação no FC Porto, que para trabalhar na formação de jovens atletas, ao mais alto nível, deveria exigir uma formação muito específica e muito cuidadosa desses treinadores. Acredito que é algo que a formação de treinadores deve estar muito atenta porque trabalhar com os jovens não é a mesma coisa, e não o pode ser, que trabalhar com séniores.
O desenvolvimento do atleta, a descoberta do talento, a proposta de jogo, esses fatores têm que ser trabalhados no dia a dia para perceber que sistema tático e que dinâmicas de jogo promovem mais o desenvolvimento dos jogadores nas diferentes etapas de formação. Nas equipas A, de maneira geral, o rendimento tem que aparecer no imediato. Enquanto na formação construímos jogadores durante dez anos, na equipa A temos que provar o trabalho que fazemos semana a semana através dos jogos realizados.
Assim, quem trabalha com séniores tem que ter determinadas competências diferentes de quem trabalha com a formação. Não estou a dizer que o treinador de formação não possa atingir a equipa A, ou que o treinador da equipa A não possa trabalhar na formação. O que estou a dizer é que é preciso haver uma consciência que a formação não é igual à equipa A e que tem caminhos e reflexões diferentes sobre o desporto e cada uma das modalidades.
Atualização contínua
Ainda na mesma linha de pensamento que remete à atualização na preparação para treinadores dos escalões de formação, observo que um bom profissional deve estar disposto a sofrer mutações positivas na carreira. Ao longo das minhas décadas de trajetória no futebol foi possível observar que o desporto é também feito de tendências: nas suas dinâmicas de sistema, naquilo que é a preparação do jogo a nível técnico, físico, psicológico e tático. E isso é algo a que devemos estar muito atentos.
Toda a equipa técnica é uma observadora daquilo que se passa no fenómeno desportivo, neste caso concreto, no futebol. A tendência daquilo que são as dinámicas, se o jogo passou de um 4-4-2 ou 4-3-3, que eram mais dominantes, para agora muitas vezes as equipas apresentarem, 3-4-3, 3-5-2. A forma como variam os sistemas ao longo do jogo, obriga-nos a pensar e a montar estratégias para combater e para aproveitar também algumas das lacunas que os sistemas têm.
Não há sistemas perfeitos. Algo que também foi importante para mim e para a minha equipa técnica é que ao longo dos últimos anos passámos por desafios de complexidade elevada e percebemos que ou estaríamos ao mais alto nível, ou então fracassaríamos na abordagem desses desafios. Jogar a Champions League contra o Manchester City, o Real Madrid, o Atalanta, o Inter de Milão, jogar contra essas equipas, são desafios gigantescos e temos que estar ao mais alto nível no que ao entendimento do jogo diz respeito.
Sentimos essa necessidade não só pelos desafios que os outros nos põem, mas também pelos desafios que colocamos a nós mesmos. Essa atualização é feita não só através de artigos de especialidade, como também pela leitura dos jogos e as suas dinâmicas táticas, pela interação com colegas nossos e com as atualizações dos cursos de formação de treinadores. Portanto, é por aqui que nós andamos, sem esquecer a condição fundamental da reflexão de tudo aquilo que se passa a nossa volta, do porquê de tudo acontecer e debatermos entre nós algumas das muitas coisas que vão acontecendo, no meu caso no futebol.
*Luís Castro, Treinador UEFA PRO com uma década de serviços prestados ao Futebol Clube do Porto e atualmente à frente da equipa do Botafogo, no Brasil, Luís Castro, 60 anos, acumula na carreira passagens vitoriosas no Shakhtar Donetsk (conquistou um campeonato ucraniano) e no Al Duhail (vitória na Taça do Emir do Qatar). Em Portugal, o treinador já passou por Águeda, Mealhada, Estarreja, Sanjoanense e Penafiel, depois o FC Porto (onde chegou a assumir a equipa principal em 2013/14), acabando mais tarde por comandar o Rio Ave, o Desportivo de Chaves e o Vitória de Guimarães.