Por Aldo Matos da Costa*
O desafio que tem vindo a ser colocado sobre a desigualdade no desporto é um exemplo do estímulo social à consciência ética dos agentes desportivos, em particular dos treinadores e dirigentes. Embora o tema tenha vindo a ser discutido no plano ético, a sua natureza é de origem biológica, e os seus efeitos sentidos no plano sociológico, nomeadamente nas sociedades democráticas liberais. Isto torna os temas da ética complexos, profundos, e de cobertura por diferentes “ologias” do saber. Porque a desigualdade dos atributos e das capacidades é um fenómeno natural – o que vulgarmente se designa por talento – é importante reconhecer que o caminho para a igualdade é uma conquista histórica. Aliás, essa é uma das principais razões para a existência de princípios de ordenamento desportivo internacional – repare-se que o princípio da não discriminação (ou da igualdade desportiva) procura assegurar que não haja qualquer discriminação racial, política, económica e ideológica, de forma a assegurar a unidade do sistema desportivo, e de que todos somos iguais perante a lei.
Existem obviamente outras formas de isonomia social que não são reguladas, e por isso surgem pela força dos contornos morais que a sociedade vai desenhando. Aqui haverá que realçar o inequívoco valor social do desporto e da educação física – ambos hábeis e eficazes instrumentos de educação cívica que devem ser usados em idade própria, i.e. quando se formam os estereótipos sociais. Com efeito, a educação de base igualitária, do trato do outro como igual, e necessariamente difundido junto dos espectadores de desporto, é um importante determinante para acabar com a desigualdade social. Isso é um enorme legado que o desporto deixa no plano individual (e mais imediato), a cada praticante, mas também no plano sociológico.
Mas no desporto, para além da igualdade, temos de olhar também para a equidade da prática, o que envolve ajuizar a justiça de uma situação particular independentemente das leis e regras em vigor, simplesmente porque, como já referimos, reconhecemos as características únicas de cada sujeito. No essencial, o conceito prende-se com a procura honesta pela demolição de barreiras sociais, culturais, económicas e políticas que impliquem quaisquer forma de exclusão ou desigualdade; no desporto, o caminho para a equidade social, passa também por reconhecer o direito de cada um e o recurso à “equivalência” para facilitar a inclusão social. Nesse respeito pela individualidade, o desporto adaptado, os movimento feministas e os grupos de estudo sobre as mulheres e, mais recentemente, sobre o género, têm conseguido eco e compromisso social pela equidade nas duas últimas décadas. Sente-se, como referem vários autores, uma procura entre a “ética da justiça” e a ética do cuidado”.
Todavia, espera-se que as organizações desportivas de cúpula, mantendo em perspetiva a necessária aplicação dos princípios da ética, da igualdade e da inclusão, não percam a aura da Verdade, sob pena de descredibilizarem o desporto irremediavelmente. Antes de tudo é necessário antecipar que todos os atletas em situação de competição, e independentemente das razões pela qual praticam desporto, celebram um confronto, recorrendo à sua competência num esforço genuíno para a vitória. Na ausência desse valor (Olímpico), a essência do desporto de competição não existe, pelo que o compromisso para o confronto com o desejo genuíno para ganhar é um dos princípios éticos mais relevantes da participação no desporto. Em modalidades desportivas individuais e de expressão cíclica, assentes num elevado grau de determinismo[1], a equidade desportiva é uma exigência manifesta.
Assistimos em 2009 a um exemplo cabal dessa preocupação na comunidade da natação quando a FINA baniu o uso de fatos hidrodinâmicos, que estavam na altura a ameaçar tornar a modalidade mais numa competição entre fabricantes de fatos tecnológicos do que entre nadadores. Colocou-se na altura a questão da equidade de participação, porque os fatos alteravam significativamente a performance e o acesso aos fatos requeria um investimento financeiro que nem todos poderiam fazer. Contudo, o mais interessante nessa discussão foi a sua profundidade, assente na reflexão metafísica sobre o desporto, combinando princípios deontológicos éticos que continham um peso moral muito importante – levantou-se a questão da designada ineficiência humana que, em essência, é o coração das regras da modalidade. Porquê? Porque a natação assenta no pressuposto biológico que o homem não foi feito para nadar mais rápido do que os peixes! Essa ineficiência (não metafórica) está embebida nas regras internacionais da modalidade de uma forma não arbitrária – as regras estão desenhadas para que o desporto seja uma oportunidade de manifestação de competência e de virtude de um atleta face a outros. Portanto, nadar mais rápido não deve ser exclusivamente o objetivo da natação, mas sim nadar mais rápido do que o outro, atendendo às ineficiências da natureza humana (o que inclui a deficiência), ineficiências essas que foram criteriosamente impostas pelas regras, no sentido de preservar os valores intrínsecos da modalidade.
Nos últimos dias assistimos a outra reflexão metafísica sobre a verdade e a equidade desportiva por parte da FINA, aprovando um nova política de integração de género. A natação é o primeiro desporto que estabelece como pressuposto para a participação nas provas femininas que as atletas transgénero tenham completado a sua transição antes dos 12 anos, admitido ainda a “criação de uma categoria aberta”. O debate, que já existia, está agora ao rubro e terá necessariamente eco nos regulamentos nacionais das respetivas federações. Será igualmente interessante assistir aos efeitos desta decisão histórica noutras modalidades, que já admitiram tomar iniciativas semelhantes. Espera-se também o envolvimento sério da comunidade cientifica nesta temática, para que se compreendam as deliberações num cenário de evidência científica. Na verdade e pela verdade, o mais perigoso sobre este tema será ficar a impressão de que as decisões são meros entalhes ideológicos.
[1] Queremos com isto dizer que a ciência já permite, com uma margem de erro não muito grande e desde que para alcances temporais restritos, prever o resultado final do atleta através do conhecimento detalhado dos determinantes da performance.
*ALDO MATOS DA COSTA é professor Associado com Agregação na Universidade da Beira Interior (UBI); Presidente da Associação Portuguesa de Técnicos de Natação (APTN) e Vice-Presidente da Confederação de Treinadores de Portugal (CPAT).