Um dos grandes estudiosos da formação de treinadores, António Vasconcelos Raposo reflete sobre o Programa Nacional de Formação de Treinadores (PNFT) revisto em 2020. Em entrevista publicada na edição n.º 2 da revista SportMagazine, o antigo treinador olímpico defende a formação contínua, mas alega que o caminho da excelência tem de passar por matérias específicas ainda em falta no modelo vigente. Deixa ainda o lamento que em Portugal a profissão de treinador não seja vista com o respeito merecido
SportMagazine – Como descreve um treinador deste modelo do Programa Nacional de Formação de Treinadores?
Vasconcelos Raposo – É complexo, porque o atual modelo está em funcionamento há pouco tempo. Neste momento, tratou-se de rever o que havia anteriormente, o que é natural para as coisas progredirem, e é um modelo que tem uma tendência internacional relativamente aos quatro níveis de formação dos treinadores. É isso que tem sido adotado em todos os países. Há países e federações internacionais que têm o quinto nível, que mais cedo ou mais tarde, será exigido em Portugal. No acumular de saberes e propostos de referenciais de formação, falta a formação de um treinador para ir aos Jogos Olímpicos, com matérias altamente específicas do que é treinar no alto rendimento. Este modelo forma um treinador, mas não tem cargas suficientes, nem matérias, nem conteúdos que nos permita que esse indivíduo dizer está qualificado para exercer a sua função no alto rendimento. Aceito o modelo, tem alguns aspectos que não merecem comentários, mas toda e qualquer proposta tem pessoas que gostam e outras nem tanto. Nem ao nível mundial a formação dos treinadores é consensual.
SM – Apesar dessa consensualidade de que fala, crê ainda que se denota disparidade entre a imagem do treinador em Portugal e no resto do Mundo?
VR – Quando estudamos a formação feita quer na Europa, quer no Mundo, apercebemo-nos que há grandes contradições. A primeira passa pela maneira como cada cultura e cada país olha para o que é o treinador. Nos Estados Unidos, vemos que o coach é uma figura importantíssima no sistema desportivo, nas instituições e no desporto universitário. Quando uma pessoa é o coach, a comunidade respeita. Em Portugal, estamos longe desse conceito. Até há pouco tempo, o treinador era menosprezado por todo o sistema político. A formação dos treinadores foi subestimada pela generalidade dos políticos até há 10 ou 15 anos. Mas temos que ser realistas. Essa preocupação com a formação dos treinadores também, do ponto de vista histórico, é recente a nível da Europa.
SM – No seu entender, qual é o caminho a seguir para um modelo ideal de formação de treinadores?
VR – Perguntei há algum tempo ao responsável da União Europeia o que pensava fazer sobre a formação dos treinadores. Há legislação que o enquadra, mas sem resultados práticos. Respondeu-me abertamente que, neste momento, é impossível haver na União Europeia consenso relativamente à formação dos treinadores. Isto porque há países, nomeadamente todos os que são oriundos do Leste, a defender a formação dos treinadores pela via universitária, há outros que defendem a via profissional ou e outros a via mista. A partir daqui, como uns não abdicam da sua via, porque não querem retroceder, não há consenso. Então cada país vai encontrando o seu modelo. Depois há organizações de lobby, com nomes pomposos, que vão propondo as propostas de modelos, mas diferenciam muito. São referências para se pensar, para se refletir. Todos têm aspectos positivos, como o nosso tem. Para mim, a formação de treinadores é um processo dinâmico que tem de estar sempre em evolução, porque a própria função do treinador é igualmente dinâmica, complexa e sempre em transformação.
SM – Qual a transformação que vê como mais necessária em Portugal?
VR – O reconhecimento da profissão do treinador! É preciso diferenciar entre a ocupação de treinador e a profissão de treinador. Com exceção do futebol, que mesmo antes do 25 de abril era reconhecida como profissão, tinha sindicato, contratos coletivos de trabalho e, hoje em dia, continua a beneficiar dessa legislação, em todas as outras modalidades não há esse reconhecimento. São mais de 40 mil treinadores, se daqui retirarmos os 13 mil ligados ao futebol, e destes só uma minoria é profissional, todos os outros não o são. A generalidade dos treinadores deste País não estão em dedicação exclusiva, mesmo os de alto rendimento, o que cria uma situação de urgência de repensar como se pode preparar um treinador para lutar pelas finais nos Jogos Olímpicos, quando não está focado só e apenas no processo de preparação desse atleta.
SM – E essa impossibilidade de uma dedicação exclusiva deve-se a questões financeiras?
VR – A remuneração da generalidade dos treinadores em Portugal é muitíssimo baixa. Há a ideia enganosa, porque como só se fala dos treinadores de futebol que ganham milhões, e são meia dúzia deles. Mas o que a maior parte ganha varia entre os 300 e os 800 euros! Mesmo os que trabalham em clubes de futebol. E há muitos treinadores que pagam para trabalhar, pois utilizam a sua viatura para transportar atletas e não tem direito a nenhuma compensação. Isto resulta de um vício que vem do século XIX. Quando foram retomados os Jogos Olímpicos em 1896, Pierre de Coubertain defendeu a sua filosofia de que só os amadores podiam participar, desde atletas a treinadores. Essa ideia de amador permaneceu até 1992, quando se realizaram os Jogos Olímpicos de Barcelona. Juan Samaranch [presidente do Comité Olímpico Internacional à data] acabou com essa hipocrisia, quando apareceu o Dream Team do basquetebol norte-americano. Só a partir de 2002, a Europa aceitou o profissionalismo do treinador, enquanto nos Estados Unidos, com uma sociedade desportivamente muito desenvolvida, sempre o aceitaram como um profissional. Nós ainda estamos na fase de aceitar que uma pessoa pode ser treinador a ‘dar um jeitinho’.
SM – Perante a conjuntura atual, como vê o treinador no futuro? Ou como gostaria que o treinador fosse visto?
VR – É um formador. Tem de ser uma pessoa com formação eclética que permita intervir, compreender, interpretar as matérias. O treinador é o responsável pela preparação desportiva do atleta, quando contempla uma dimensão pluridisciplinar. Exige também do treinador o conhecimento para poder liderar equipas ou colaboradores. Um treinador tem de saber o que é precisa do médico, do psicólogo, do fisiologista, do nutricionista. A formação tem de contemplar essas áreas. Não quer dizer que seja nos cursos, mas sim na formação contínua, o treinador tem esse dever ético, porque aquele que não estuda, não aprende vai estagnar. O treinador do futuro, em dez ou15 anos, tem de ser um indivíduo com formação superior. Porque o nível de exigência para preparar um atleta de alto rendimento, nos dias de hoje, é de tal modo elevado, que a formação não se pode resumir apenas à formação profissional. Tem de ter suporte científico para poder orientar a preparação do atleta. Tem de saber usar a tecnologia colocada à sua disposição, mesmo tendo na equipa auxiliares com competência para isso, mas tem de liderar o processo e ter competências de gestão. São raros, entre nós, os que as têm.
SM – Isso pressupõe que a formação profissional, no terreno, tende a desaparecer ou a perder importância?
VR – Não. As exigências do alto rendimento apontam que, no futuro, a generalidade dos treinadores deverá ter uma formação superior. Isso não quer dizer que desapareça a formação profissional, que fique claro. O que quero dizer é que para o alto rendimento, para orientar equipas com ambição de participação de Jogos Olímpicos e aí ir às finais e lutar por medalhas, os treinadores precisam ter uma formação altamente qualificada que só se pode adquirir através da academia, local privilegiado da produção de saber.
SM – A solução ideal passa, portanto, pelo ‘casamento’ entre o conhecimento teórico e o prático…
VR – Temos uma investigação científica feita por investigadores portugueses de alto nível subvalorizada. A natação, no ranking mundial dos 50 melhores investigadores do mundo. Temos seis investigadores portugueses nos dez primeiros. Somos o país mais forte em termos de produção científica na Faculdade do Porto, na Universidade da Beira Interior, na Faculdade de Motricidade Humana e outros institutos politécnicos. O meu último trabalho que redigi, chamada Ciência, Ensino e Treino. Dediquei-o inteiramente ao estudo que fiz ao conjunto alargado do contributo desses cientistas de grande valor, de grande aplicação prática, porque há a ideia de afastamento entre a academia e a prática. Não há teoria sem prática, nem vice-versa. A produção do conhecimento é da investigação científica que é feita na universidade. Por isso, a formação dos treinadores tem de estar baseada na investigação científica que tem de ser estimulada.
SM – Pela sua experiência no terreno e investigação, que conselho pode ser deixado aos treinadores formados ao abrigo do modelo vigente?
VR – A formação dos treinadores em Portugal e este modelo não pode estar fechado em si mesmo. Temos de olhar para ele como uma referência, quer concordemos ou não com ele. Pessoalmente, tenho muita discordância relativamente ao que lá está, já o disse a quem de direito, limito-me a executar e, quando me chamam, baseio as minhas intervenções no que lá está. Mas não pode morrer em si próprio. Está condicionado nas cargas horárias, por ser um modelo sequencial, em diferentes níveis, tem de ter uma formação assertiva, direta, não pode questionar, seria um desvio ao que é a formação pela via profissional de que é afirmativa, positiva e não é direcionada para lançar a confusão nas pessoas que lá vão. Este modelo tem de ser acompanhado na formação contínua, que é defendida na legislação e com a qual estou completamente de acordo. Vejo o atual sistema como um processo dinâmico em constante transformação para caminharmos rumo a um modelo que sirva cada vez melhor os interesses da intervenção dos treinadores.
SM – Gostaria de deixar alguma mensagem aos treinadores?
VR – Que não fiquem numa posição de conforto à espera, que procurem ganhar mais conhecimento, troquem experiências. Caso contrário, não vão crescer, desenvolverem-se e tornarem-se melhores treinadores. Sem isso, não vão ter melhores resultados, que dependem da sensibilidade, visão e paixão que todos temos por essa coisa do treino e de ser treinador. É uma profissão encantadora, que merece que nós próprios sejamos amigos de nós próprios, que nos formemos para progredir na nossa carreira.
“Partilhei sempre o conhecimento com os outros treinadores”
Vasconcelos Raposo cedo começou a busca fora de portas pelo conhecimento ao nível da formação de treinadores. Em 1975, integrou a equipa da Direção Geral dos Desportos e visitou França e Bélgica para conhecer o que era praticado nesses países. “Na Bélgica, a formação já existia, mas não era muito consistente, em França era mais organizada e bebemos do que lá havia”, começa por contar, numa viagem pelo tempo e que, na década de 1980, o levou até ao continente americano e aos antípodas. ”
“Estive com o professor Sacadura na America’s Swim Coach Association, fomos a um congresso, visitar a sede e trouxemos documentação do que era feito, já tinham diferentes níveis da formação em 1982. Dois anos depois, estive no Canadá que estava mais adiantado. Os australianos avançavam, mas numa perspetiva mais anglo-saxónica, porque a Inglaterra começou muito tarde na sua ideia da formação de treinadores. Mantive sempre muito diálogo com os outros treinadores, quando estava nas provas internacionais com a Seleção. É um tema que me acompanha desde 1970, quando tive o primeiro contacto em Madrid, numa formação de treinadores”, recorda Vasconcelos Raposo que integrou o grupo de treinadores que gizou um programa para os treinadores lusos.
“Todos os países caminhavam para a formação pela via profissional, organizados entre quatro e cinco níveis, portanto foi isso que me fez propor, desde 1976, a formação dos treinadores de natação em quatro níveis, para a qual estabelecemos os referenciais. Era plano de formação a longo prazo segundo o qual, num período de oito ou nove anos, um treinador podia atingir o seu ponto máximo. Havia um ou dois anos de estágio entre cada nível. Esse projeto foi acarinhado pela então DGD e pelo IDP”, sublinha o técnico que teve de aguardar para ver o programa, elaborado depois de “beber do conhecimento” em encontros internacionais, integrar comissões responsáveis por propostas de formação.
“Quando o diretor do Centro de Estudos e Formação Desportiva foi apresentar ao ministro José Lello, o PS tinha perdido as eleições para o PSD e não foi dado despacho. Com tudo pronto para sair, o modelo não foi publicado e ficou guardado numa prateleira por dez ou 12 anos, até que surgiu este projeto nacional de formação de treinadores”, relatou, de consciência tranquila: “A minha vida toda foi ligada ao estudo permanente da formação dos treinadores em vários países. Tive uma experiência rica, mas partilhei sempre o conhecimento com os outros treinadores, para evoluírem”, rematou.
Pelos bastidores do Bloco de Leste
Em 1977, Vasconcelos Raposo frequentou o curso superior de treinador de natação na Escola Superior de Cultura Física (DHFK) em Leipzig, na antiga República Democrática da Alemanha (ex-RDA) e, dois anos, mais tarde, regressou para um curso de um trimestre sobre Planeamento em Treino Desportivo. Se ficaram para a história como parte uma página negra no desporto, os países do então chamado Bloco de Leste também foram pioneiros da busca da excelência no treino, segundo o técnico olímpico.
“A formação que acompanhei na União Soviética, ex-RDA, Checoslováquia, Polónia, Roménia, etc., era feita pela via universitária, todos tinham formação superior”, salvaguarda, lembrando a “formação elevadíssima, com bases científicas muito profundas” com cinco anos de formação.
“Havia um sistema de acompanhamento do progresso dos atletas muito elevado”, explica, exemplificando que um treinador passava pelo controlo central da federação. “Eram feitas filmagens e dada uma avaliação. Se fossem detetados erros técnicos, de resistência, velocidade ou força ao atleta, o treinador recebia uma ficha com a informação dos mesmos, a fim de corrigi-los. Quatro meses depois, era feita uma nova avaliação e, caso os erros permanecessem, o treinador tinha avaliação negativa e o futuro era posto em causa”, relata, lembrando que os atletas eram acompanhados por equipas de investigação científica.
“Talvez nestas equipas é que havia que recorresse a meios impróprios para facilitar o rendimento dos atletas e que ficaram na página negra desse país.” Com a queda o fim da Guerra Fria e a unificação da Alemanha, os estudos da DHFK tornaram-se alvo de curiosidade. “Havia grandes investigações lá, havia até um setor secreto junto do qual só passávamos à porta. Conheci investigadores de lá, fiz amigos, mas continua-se sem saber o que lá estava, porque aquelas investigações estavam tão avançadas que foram precisos anos de estudo para interpretar o que versavam do ponto de vista do rendimento humano”, salienta o professor universitário.
António Jacinto Branco Vasconcelos Raposo, natural de Ponta Delgada, Açores, a 28 de março de 1950, foi praticante de basquetebol, voleibol e natação na São Miguel natal. Foi na piscina que encontrou aquela que chama a sua “paixão” e alvo de estudo desde que se licenciou em Educação Física. “Iniciei-me como professor de natação em 1966, pela mão do Miguel Silva, que me motivou para vir para esta profissão. Fiz a formação superior de treinador na antiga-RDA, mestrado em treino de alto rendimento, desempenhei funções de treinador no Sport Algés e Dafundo, no Clube TAP e na GesLoures. Fui treinador da Seleção Nacional e treinador treinador olímpico nos Jogos de Atlanta-1996 com a Maria Carlos Santos. É assim que se descreve este estudioso do método de treino, com 23 livros publicados em Portugal e Espanha. Planificación y Organización del Entrenamiento Deportivo foi o primeiro livro publicado por um português no país vizinho, versando o tempo. Prelector da Solidariedade Olímpica em diversas acções e cursos de formação de treinadores no estrangeiro, é ainda autor e obras como: O Ensino da Natação, O Diário do Nadador, A Preparação Directa para as Competições, A Carga no Treino Desportivo, é coautor de Metodologia da Ensino das Técnicas de Nadar, Saltar e Virar, Aprendizagem Motora em Natação, O Manual do Monitor e O Treino de Jovens. Integrou, como quarto oficial, o destacamento de fuzileiros especiais que cumpriu a comissão em Angola e São Tomé e Príncipe no período de 1973 a 1975 na Guerra Colonial. Uma experiência da qual resultou também o livro Até ao Fim – A Última Operação. Pelo seu desempenho profissional, recebeu diversas condecorações, louvores e menções honrosas, em Portugal e no estrangeiro.