Criado em 2012, o Plano Nacional de Ética no Desporto (PNED) conta com uma década a promover os valores do fair-play, da verdade, do respeito, da responsabilidade, da amizade e da cooperação através do desporto. Tem milhares de Bandeiras de Ética atribuídas a entidades e outros tantos Cartões Brancos apresentados a quem pratica o bem no desporto, esta iniciativa governamental sediada no Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Em conversa com a SportMagazine, José Carlos Lima, coordenador do PNED desde a génese, faz um balanço destes dez anos e levanta o véu sobre o futuro de quem quer formar cidadãos com valores.
SportMagazine (SM) – O PNED comemora este ano dez anos de existência… De que forma se assinalou a data?
José Carlos Lima (JCL) – O plano foi criado em fevereiro de 2012. Fizemos a sinalização desse momento na Física de Torres Vedras, no início de março deste ano, também lançando duas publicações, praticamente todos os anos lançamos publicações, e este ano também sinalizamos este aniversário com a publicação de duas brochuras: linhas orientadoras para clubes e linhas orientadoras para pais. Como é que cada clube deve trabalhar esta dimensão da ética junto dos pais e dos atletas e depois também as linhas orientadoras para os pais, como é que devem abordar esta dimensão valorativa que o desporto tem junto com os seus miúdos.
SM – Muitas vezes o que é notícia nem sempre é o lado bom da ética do desporto. Mas ao longo destes anos o PNED terá efeitos práticos… Quais os aspetos em que a atuação foi mais sentido nesta década?
JCL – Pretendemos obter resultados, como é óbvio. O trabalho da ética e digamos da educação, é sempre um trabalho um bocadinho ignorado no sentido de querermos resultados de forma imediata não é? A nossa perspetiva é sempre a longo prazo geracional. Ao longo destes dez anos já podemos fazer uma leitura de alguns resultados. E já temos essa deteção e vamos lançar um estudo sobre o impacto do PNED ao nível do sistema desportivo. Portanto, vamos fazer um trabalho de avaliação e sobre perspetivas futuras. Mas, assim à partida, a avaliação é positiva que fazemos, não só pelos números, mas também a partir de outros aspetos. O primeiro, por exemplo, é marca que o PNED se afirmou pela positiva a nível do desporto em Portugal. É conhecida, já foi premiado internacionalmente duas vezes pelo que fazemos, somos cada vez mais chamados, pedem-nos ajuda, materiais, formação e, portanto, um player que é reconhecido a nível do desporto para a produção da ética. Depois também a nível do que lançamos, quer dos recursos pedagógicos, quer discursos didáticos, posso dizer que nós estamos sempre a reeditar e a reimprimir esses recursos, porque também nos pedem. Portanto, é sinal que aquilo que fazemos também chega às pessoas e aos clubes.
SM – O Cartão Branco e a Bandeira da Ética são os recursos mais visíveis do PNED?
JCL – Sim, os nossos recursos práticos mais visíveis são o Cartão Branco e a Bandeira da Ética. O Cartão Branco é um recurso que visa a promoção da ética e do desporto pela positiva no jogo e posso-lhe dizer que cada vez mais há amostragem de cartões, significa também que esse fair-play e missão positiva é reconhecida e é visível cada vez mais. Outro dado que temos é o da comunicação social quase todas as semanas dar nota do futebol ou do desporto pela positiva. Porquê? Porque aparecem constantemente notícias do Cartão Branco e era esse um dos objetivos, que a comunicação social desse eco disso.
SM – Pelo que li houve 2700 amostragens do Cartão Branco nestes dez anos. Um número significativo…
JCL – Sim, sim. Nós temos 70 entidades que aderiram ao Cartão Branco, que foi sempre aumentando e cerca de 2700 amostragens. Ao nível da bandeira, também temos cada vez mais entidades registadas são mais 1700 entidades registadas na bandeira que é uma plataforma para as entidades poderem colocar lá evidências e notícias sobre como é que trabalham esta dimensão da ética e dos valores do desporto, depois nós certificamos essas experiências na área. Posso dizer que cada vez há mais entidades, temos cerca de 800 já certificadas, portanto chegamos a mais clubes que se envolvem na promoção da ética e valores. São dados reais.
SM – Sei que também atuam no âmbito das escolas. Com é feito esse tipo de trabalho?
JCL – Fazemos ainda vários concursos que lançamos em vários domínios, quer na área do ensino, quer na área da imprensa ou da investigação. Ao longo destes dez anos, fizemos 44 edições de concursos. Os números também têm sempre aumentando. São dados que nos ajudam a perceber o impacto. Paralelamente a esta dimensão dos dados que temos serem positivos porque nos dão esse feedback do maior envolvimento dos agentes desportivos, nós temos essa perceção. Nestes dez anos além de deixarmos marca, também ajudámos clubes a criar dinâmicas de valorização desta área, criando códigos de conduta, pessoas responsáveis nesta área da ética, campanhas específicas. É uma área que tem sido valorizada com a presença do PNED, sem dúvida nenhuma.
SM – Por muito que o caminho seja o correto, o que falta fazer para que situações de agressões entre adeptos, por exemplo, não se repitam?
JCL – O nosso trabalho é muito da prevenção e formativo, atuamos muito a nível dos escalões de formação, não tanto no desporto profissional, mas focamos muito na dimensão mais preventiva e formativa nos escalões de formação. Esse é o nosso público-alvo. Em relação essa questão dos adeptos, digamos que é a mais visível, não é? As notícias dão mais conta da dimensão mais negativa que o desporto tem. Mas o Governo criou uma autoridade contra a violência, de prevenção e combate à violência no desporto, e essa entidade tem essa missão de prevenir e dar conta dessa luta dimensão mais violenta que o desporto tem. E tem feito um bom trabalho. Agora, o que me parece a mim, é que têm que haver aqui duas dimensões. Uma mais preventiva e informativa, que é a que nós fazemos, e isto é geracional, educacional e haverá sempre gente que pisa o risco e haverá sempre gente mal-educada como em todas as gerações. Agora acho que podemos atenuar isso com a questão da prevenção e da formação. Podemos usar aqui a imagem de dois carris de comboio que têm de ser paralelos. A dimensão formativa e de sensibilização dos adeptos, dos clubes e depois o outro carril, o da dimensão mais legal, mais sancionatória que deve existir.
SM – Qual deve ser a evolução, no seu entender, deste carril da dimensão legal?
JCL – Tanto a prevenção como a dimensão legal devem aprimorar, devem evoluir, se calhar, para penas mais pesadas, ir ao bolso das pessoas com mais peso, para que se sintam dissuadidas para não ter determinados comportamentos. Depois toma-se a floresta pela árvore e é errado. Por exemplo a Associação Futebol do Porto todos os fins-de-semana realiza mais de mil jogos, desses mil jogos cinco por cento, ou nem isso, têm problemas disciplinares. É uma minoria e, por vezes, damos foco a essa minoria. Grande parte do desporto é vivido e praticado de uma forma saudável. Temos que caminhar e trabalhar sempre nestes dois carris. Grande parte dos adeptos são adultos, já formados e é difícil trabalhar com eles do ponto de vista preventivo. Aí têm que ser as sanções ainda mais pesadas. Em relação às crianças, aí já é um trabalho diferente.
SM – Tais como?
JCL – Nós temos muitas ações de sensibilização, fizemos entre 2500 e 3000 ações de formação, com mais de 125 mil participantes nessas ações, grande parte também de treinadores. A nossa ação passa muito por aí por formação e sensibilização. Passa também estimular os clubes a trabalharem esta temática através da Bandeira que é uma metodologia que estimula os clubes e as entidades a promover esta área. Temos tido coisas muito interessantes. Os clubes cada vez mais trabalham com os pais, criando academias, escolas, formação para os pais, criação de documentos estratégicos como códigos de conduta. Os municípios também estão apostados nesta temática, por exemplo nos contratos-programa de apoio financeiro aos clubes também já há critérios de majoração para esta dimensão da ética. Portanto os clubes que se comportam, que trabalham esta área, têm a certificação da bandeira e são majorados do ponto de vista financeiro e aqui há uma coisa estrutural que permite uma mudança comportamental. O desporto tem uma dimensão, uma componente muito grande do ponto de vista emotivo. Às vezes as pessoas não se controlam e dão maus exemplos aos miúdos. Por vezes, os clubes também não têm força para impor determinadas regras, porque também dependem financeiramente dos pais. Acho que cada vez mais há essa consciencialização de colocar regras, códigos e ‘educar’ os pais.
SM – Que outros mecanismos estão previstos a breve trecho?
JCL – Vamos avançar em breve com um projeto piloto com várias entidades para a próxima época desportiva. Pretendemos trabalhar um pouco esta dimensão da competição e da formação. Entendemos que os pais são fatores negativos para os seus filhos por causa do peso que dão ao resultado. A competição faz parte do jogo, mas quando na formação se dá demasiado peso a essa componente, estamos a desvirtuar o período da formação. Estamos a falar de escalões de formação e não de competição. Este projeto-piloto para valorizar outros aspetos que contribuam para a classificação e que não se fixa apenas no ganhar ou perder. Para a classificação vão contar outros aspetos como a disciplina ou comportamento dos pais. O resultado assim não tem tanto peso e os pais percebem que se por portarem mal também isso pesa para classificação. Vamos trabalhar neste modelo ao longo deste ano.
SM – Será apenas aplicado nos clubes que tiverem a Bandeira?
JCL – Vai ser um projeto com várias associações de futebol, que já estão connosco, também algumas federações. Vamos trabalhar uma metodologia de valorização dentro dos escalões de formação de aspetos formativos e educativos que possam contribuir também para a classificação. Estamos a falar até aos 12 anos em que outros aspetos que são importantíssimos na formação dos miúdos. Criando este este modelo, a ideia é que em 2023/2024 tenhamos um projeto-piloto com várias modalidades aplicando esta metodologia.
SM – Pode dar exemplos práticos da atuação da Bandeira da Ética na sociedade?
JCL – Estamos a acompanhar um projeto da Câmara Municipal de Almeirim em que estão a testar, dentro do processo da Bandeira da Ética, o projeto que é Pais Desportivos São Pais Responsáveis. Quando os pais dizem asneiras os recintos desportivos são penalizados com multas e nós estamos a acompanhar essa metodologia. Há essa preocupação das entidades em mudar os comportamentos e tenho a esperança de que realmente as coisas melhorem. Acho que cada vez mais há essa consciencialização. Os pais procuram clubes e entidades que se preocupam com esta área e os clubes querem essa mais valia para si.
SM – Qual a importância que têm os treinadores neste campo da formação de bons cidadãos?
JCL – O treinador tem grande importância, porque estamos a falar da formação de miúdos, crianças que se faz através de uma atividade desportiva. Não podemos perder este Norte. Temos miúdos que estão a desenvolver‑se do ponto de vista físico, intelectual, emotivo e também social. São estes múltiplos aspetos que o treinador tem que ter em atenção. Quando os miúdos são crescidos é outra coisa, agora numa fase formativa o treinador deve ter esta preocupação de estar a formar crianças que irão ser adultas e que a sua atividade desportiva é uma ferramenta para essa educação. Só uma mínima parte será atletas de alta competição, é até mais interessante para o treinador investir na dimensão formativa, porque a grande massa das pessoas vem dali.
Todos vão ser homens ou mulheres e poucos vão ser atletas. O treinador tem que ser aquela figura marcante, um modelo para passar valores, para a formação do caráter dos miúdos. Aliás, logo no preâmbulo do Código Deontológico dos Treinadores, da Confederação dos Treinadores, lê-se isso mesmo. O treinador é uma peça fundamental para a passagem de valores. Educa, transforma e educa um ser humano que é também um atleta.
SM – O Código Deontológico dos treinadores é uma ferramenta fundamental para que estes pressupostos sejam aplicados?
JCL – Cada vez mais se fala da boa governança dos modelos das entidades públicas, privadas, desportivas, também por causa da dimensão da transparência que deve existir. Neste sentido, o código deontológico, é um instrumento muito importante para afirmar essa dimensão de transparência, que aquela entidade tem um conjunto de princípios que vela e defende. Porque os princípios devem ser ideias valorativas que nos orientam, tipo sinais de trânsito. Sem esses sinais trânsito, facilmente podemos ter acidentes. Portanto, são princípios que orientam a nossa vida, o nosso comportamento. A confederação criou o código este ano, parece-me bastante interessante, é um chapéu orientador para outros códigos que possam criar dentro de outras associações específicas de cada modalidade desportiva. É um documento fundamental e que orienta o comportamento que os treinadores devem ter junto dos diversos stakeholders. Para nós, este instrumento é fundamental e ainda bem que a Confederação criou este instrumento de afirmação dos tais princípios que a entidade deve zelar. Temos de ter noção que uma confederação é uma entidade de cúpula que se deve preocupar com a imagem dos seus agentes. O Código, neste caso em que os treinadores têm mais impacto na sociedade, ajuda a preservar esta imagem pela positiva.
SM – Da mesma forma que a Bandeira da Ética já produz efeitos, o Cartão Branco também já se reflete nas boas práticas?
JCL – Nós temos um estudo único até agora na Associação de Futebol de Lisboa, em que ficou provado que o Cartão Branco leva a uma diminuição das ocorrências disciplinares. Portanto este cartão não é só uma ideia interessante, tem alguma eficácia, promove a dimensão positiva do desporto. Para nós, inicialmente, este cartão fazia sentido somente no escalões de formação, mas as federações elevaram-no a outros escalões, como no basquetebol, o voleibol, que o levaram para os seniores. Tem sido muito positivo e favorece o fair-play.
SM – Há um Plano da CPLP. Presumo que não seja fácil trabalhar com realidades sociais tão díspares?
JCL – Apesar das raízes que nos unem, não é fácil. Cada país tem as suas idiosincrasias e características, mas tem sido um percurso interessante. Já fizemos planos em que, na primeira parte, formámos agentes desportivos para esta ética no desporto. Durante dois ou três anos fizemos formação nos países da CPLP e houve países que já criaram os seus programas de ética e criámos recursos juntamente com eles, adaptados a cada país. A segunda fase será Brasil e Timor. Estes planos pretendem marcar a presença desta área. No fundo, são um farol para dizer que é uma área em que podem trabalhar, temos planos, recursos, atividades. Temos feito várias coisas e tem havido feedback positivo.
SM – Traçando uma fotografia geral, a ética do desporto em Portugal tem uma imagem bonita?
JCL – Temos a tendência sempre de valorizar mais o negativo. Somos também um país muito futebolizado, o que também não é bom. Depois há uma visibilidade muito grande de dois ou três clubes que são rivais e uma das dimensões dessa rivalidade é a imagem negativa das claques, isso marca de forma negativa. Mas também gostaria de olhar para outra face do desporto como ferramenta educativa, valorativa, como prática normal de quem joga e se dá bem, que é a grande parte das atividades desportivas. Se pensarmos na quantidade de jogos que há em todos os fins de semana, são milhares e milhares, 90% deles decorrem pela positiva. O Cartão Branco tem contribuído para lutar contra essa ideia negativa, e quando há, que é quase todas as semanas, há notícias sobre eles.
*JOSÉ CARLOS LIMA – Na coordenação do Plano Nacional de Ética no Desporto (PNED) desde 2012, José Lima é licenciado em Teologia e mestre em Ciências da Educação pela Universidade Católica Portuguesa, pela Universidade Complutense de Madrid fez especialização em Filosofia. Com voz serena, dá segurança às palavras quando o tema é a missão que tem abraçado na última década na demanda do fair-play no desporto. Docente universitário, foi administrador do Colégio Universitário Pio XII, coordenou o setor do mercado social de emprego, cooperação e voluntariado na União das Misericórdias Portuguesas. Integrou a direção do Colégio D. Maria Pia, da Casa Pia de Lisboa, instituição na qual este constituiu diversos projetos pedagógicos, liderou grupos de trabalho para certificação da qualidade e desenvolveu projetos solidários. Foi dirigente do CNE, teve assento no Conselho Nacional de Voluntariado e na Plataforma Nacional das Organizações Não Governamentais. Tem diversos artigos e livros publicados na área social, pedagógica e desportiva.