Alberto Graziano é um dos mais destacados intelectuais do desporto moçambicano. Com três décadas de carreira académica, agrega a teoria à prática. Além de Professor Catedrático na Faculdade de Educação Física e Desporto da Universidade Pedagógica, em Maputo, e autor de diversos e mais de 100 artigos publicados em revistas nacionais e internacionais, foi também treinador, diretor técnico nacional e presidente da Federação Moçambicana de Andebol. Foi igualmente andebolista. O pensador moçambicano conversou com a SportMagazine sobre o desenvolvimento do desporto em Moçambique, a relevância do desporto para a inclusão social, a formação de treinadores e ainda uma das suas especialidades, a biomecânica.
SportMagazine (SM) – Para começar, peço-lhe que trace um panorama atual do desporto em Moçambique. Como tem evoluído o país em termos de investimento à formação de atletas, instalações físicas para treinos e evolução na competitividade internacional?
Alberto Graziano (AG) – Em geral, com a exceção de algumas modalidades desportivas (boxe, voleibol de praia, vela, taekwondo), o desporto moçambicano vive na sua atualidade uma dinâmica de insatisfação que os impulsiona para os confrontos internacionais de mais alto nível a que correntemente se dá o nome de alta competição. Sempre que muitas dessas representações desportivas do país se deslocam ao estrangeiro para participar na alta competição, e mesmo em torneios amigáveis, a nível de clubes, seleções nacionais, raro é que, perante a modéstia dos resultados obtidos pelos nossos atletas, a crítica especializada deixe de apontar para a necessidade da estruturação e da planificação do desporto nacional. Como se pode ver, tem aspetos negativos, mas mais positivos. Entretanto, mesmo assim, verifica-se uma evolução no desporto em Moçambique, com uma história de sucesso com alguns fracassos também.
SM – Como presidente da Academia Olímpica de Moçambique, terá ficado satisfeito pelo país ser representado por dez atletas de seis modalidades aos Jogos de Tóquio-2020. Nos Jogos do Rio-2016, por exemplo, Moçambique fora representado por um atleta. Essa estatística reflete um maior desenvolvimento do país no desporto?
AG – Como referi antes, Moçambique tem uma história com aspetos negativos, mas com mais positivos. O facto de em Tóquio 2020 ter levado dez atletas não significa linearmente uma história de sucesso. Veja só que no ano em que se estreou, levou 14 atletas, mais quatro do que em Tóquio. É apenas um facto que não acontecia desde 1980. É certo que o Boxe nas últimas olimpíadas conseguiu uma grande proeza. A vela, o hóquei e outras modalidades também conseguiram proezas em vários campeonatos. Mas, com esses resultados podemos, com propriedade, afirmar que o país vem ganhando estatuto interno para um maior desenvolvimento. Pode ser que sim. A ver vamos. Mas, certamente que constituiu para nós um motivo de grande orgulho e satisfação. O momento é, de facto, de alegria e até de consolidação da nossa unidade desportiva. Foi um feito que deve ser reconhecido e está de parabéns o nosso país.
SM – Num país onde a desigualdade social é tão grande, como ainda é o caso de Moçambique, o professor Graziano acredita que o ensino dos valores olímpicos pode ser um canal de inclusão social? Se sim, como acredita que isso pode ser implantado na prática?
AG – Como sabe, a prática desportiva para além de melhorar a qualidade de saúde, ela se torna uma verdadeira escola na vida dos praticantes: ensina valores olímpicos e disciplina. É um meio de aprender a ganhar e perder, ter garra, resistência e vontade de continuar. Durante os jogos, os atletas ao vibrar com as suas vitórias, fica ainda mais claro o potencial do desporto como elemento de inclusão social.
Por outro lado, a prática desportiva contribui para o desenvolvimento motor e cognitivo dos indivíduos. Quando bem orientados, os exercícios funcionam como modo de aprender a ter mais empatia e respeito. Podem ajudar no pensamento estratégico, na interação social e na colaboração em grupo. Tudo isso, forma indivíduos mais conscientes de si, fortalece a autoestima e promove inclusão social.
Portanto, os valores olímpicos, parecem ser palavras do nosso dia a dia, mas ganham um significado ainda maior para os praticantes dos desportos. Ao todo, são sete valores, sendo três olímpicos (excelência, amizade e respeito) e quatro paraolímpicos (coragem, determinação, igualdade e inspiração).
Eu fui criado com esses valores e tento transmiti-los também aos meus filhos, aos meus estudantes, atletas e colegas de serviço. Na vida pessoal, sempre gostei de praticar desporto e acredito fortemente no seu potencial transformador.
SM – Em termos de políticas públicas: o desporto tem sido uma área prioritária de investimento? E já agora: como tem se desenvolvido o desporto escolar no país?
AG – É importante referir que a guerra devastou por completo as riquezas do país que, na sua maioria, possuía infraestruturas desportivas para os jovens praticarem as atividades físicas e desportivas e depois inserirem-se nos clubes das capitais provinciais, que disputavam acirradamente os campeonatos nacionais, sem jamais vergarem-se e sempre batendo-se com muito brio e profissionalismo dentro das suas limitações.
A apesar das dificuldades da guerra que assolou o território após a independência nacional, o desporto soube ganhar espaço na sociedade moçambicana, e fruto do apoio governamental algumas modalidades conquistaram hegemonia no continente e outras marcaram presença regulares em competições mundiais.
Recentemente, foi aprovada a proposta da nova Lei do Desporto pela Assembleia da República, no passado dia 6 de julho, tendo chegado com agrado aos ouvidos do movimento associativo desportivo, dos agentes desportivos, desportistas no geral e daqueles que direta ou indiretamente estão ligados a esta importante área social. Portanto, é um instrumento impulsionador de investimento e financiamento desportivo. A revisão da Lei de Mecenato, cuja proposta é do Ministério da Economia e Finanças e é coordenada pelo Ministério da Cultura, traça os benefícios fiscais que possam atrair o investimento e financiamento desportivo e dos vários ramos setoriais.
SM – Também já foi o presidente da Federação Moçambicana de Andebol. Como avalia a modalidade atualmente no país?
AG – Atualmente, o andebol tem vindo a crescer, de novo, pese embora os níveis de participação estejam longe dos desejáveis. Esta modalidade não é praticada na maior parte do país, está mais concentrada na capital do país e nas cidades da Beira Chimoio. O número de atletas e de clubes é reduzido. Os poucos êxitos em competições internacionais (Jogos da Zona VI), são devidos, na sua maioria, a “surpresas”, circunstancialmente emergentes de contextos particulares e normalmente não contínuos, que não refletem nem podem assegurar ao país um nível representativo estabilizado nesta modalidade.
SM – O professor Graziano é autor de vários livros, artigos e pesquisas sobre o desporto. Na obra “ANDEBOL: Metodologia de Ensino e de Treino”, apresenta aspectos técnicos e táticos sobre o ensino e treino do andebol em particular e do desporto no geral. Quais seriam os valores basilares para um treinador nas questões de ensino e de programação de treino?
AG – Ser treinador implica responsabilidades, conhecimento e dedicação, de forma a legitimar uma formação coerente de crianças e jovens. Ser treinador é muito mais do que ensinar e treinar atletas ou uma equipa. Quando conseguem estabelecer uma boa relação, os treinadores adquirem um lugar de elevada influência nos jovens, o que permite aumentar os benefícios da formação e de treino. É dele a responsabilidade maior de liderar o grupo de trabalho. Cabe a ele também, além de planificar e programar o ano de trabalho, organizar com cuidado a rotina de treino, cuidando de seus detalhes para que chegada a hora principal, que é a hora do jogo, nada dê errado.
Atualmente, as responsabilidades dos treinadores são muito amplas, nomeadamente ao nível da qualidade do ensino e do treino, da resposta às exigências da competição e do desenvolvimento dos atletas, enquanto alunos, desportistas e pessoas. Portanto, os treinadores têm de desempenhar um conjunto alargado de papéis, obrigando-os a serem conhecedores, competentes e habilitados de modo a satisfazerem totalmente as necessidades dos alunos/atletas.
SM – Numa de suas pesquisas, também trata da biomecânica do desporto. Poderia definir o que é a biomecânica e qual o seu contributo para o desporto de alto rendimento?
AG – A biomecânica está presente desde as tarefas mais simples, como levar comida à boca, até as mais exaustivas, como uma competição. Por isso, de acordo com a definição mais amplamente aceite, biomecânica é “o estudo dos sistemas biológicos usando os métodos da mecânica”. Quando o sistema biológico de interesse é o corpo humano, como o é na maioria dos casos do desporto e da educação física, a biomecânica pode ser definida em termos mais explícitos como “o estudo do corpo humano sob o ponto de vista das forças internas e externas exercidas sobre ele”. Em espaço desportivo, a biomecânica, habitualmente referida como Biomecânica do Desporto, preocupa-se então com o estudo das forças em presença, e dos seus efeitos, nos espaços de realização desportiva, seja em treino, seja em competição, seja perspetivando a etiologia da lesão, ou a sua profilaxia, seja ainda estudando os equipamentos e os materiais a disposição, ou utilizados pelos praticantes.
Portanto, a biomecânica proporciona-nos, então, a capacidade de otimizar o movimento humano, seja em ordem à maximização da potência, seja em ordem à máxima racionalização energética. Permite-nos ainda hierarquizá-lo, do mais simples ao mais complexo e entender como podemos encontrar transferências de processos menos complexos para os mais elaborados, estruturando progressões. Por último, permite-nos perceber, em cada estádio de desenvolvimento da prática, como atenuar o risco de lesão, protegendo a integridade do executante. Neste particular desempenham também papéis críticos os meios auxiliares de prática, nomeadamente os equipamentos desportivos, os engenhos e materiais desportivos e as condições físicas de realização. Também no desenvolvimento e otimização destes (seja em ordem ao aumento da segurança ou do rendimento), a biomecânica pode desempenhar um papel determinante, selecionando calçado, pisos, vestuário, engenhos e materiais (raquetes, bolas, bicicletas etc.) mais adequados para cada situação, para cada modalidade desportiva, para cada praticante.
SM – Foi andebolista e treinador de andebol. Neste sentido, poderia falar como está a atividade e a formação de treinadores em Moçambique nos diferentes escalões?
AG – Treinador é aquele que ensina os princípios e regras técnicas de atividades desportivas, orienta a prática dessas atividades. Treina atletas nas técnicas de diversos jogos e outros desportos. Instruiu atletas sobre os princípios e regras inerentes a cada uma das modalidades desportivas. Encarrega-se do preparo físico dos atletas. Por isso, o treinador deve adquirir muitas competências e habilidades pessoais.
Por isso, treinar constantemente os treinadores de desporto, formar parte relevante dos protagonistas do desporto, constitui um dos vetores fundamentais da missão das organizações que formam, particularmente o Comité Olímpico de Moçambique, as federações nacionais em parcerias com as Associações Provinciais e a Faculdade de Educação Física e Desporto.
Como se pode ver, não restam dúvidas acerca da importância, não só da formação académica superior, para a construção do universo multifatorial de competências do treinador desportivo de sucesso, bem como dos cursos de curta duração, que são organizados e promovidos pelas universidades moçambicanas.
Os cursos são bem administrados a maior parte das vezes por instrutores locais e, em outras ocasiões, por instrutores estrangeiros. Em muitas modalidades, a atividade de treinador, em Moçambique, não é remunerada, com exceção na de futebol, e em poucos casos no de basquetebol. A maior parte de treinadores exercem a atividade por amor à camisola.
SM – Arriscar-se-ia a fazer uma projeção acerca do desporto moçambicano nos próximos anos?
AG – O futuro do Desporto Moçambicano é bastante promissor. É certo que não será fácil. Teremos que “sofrer” muito para alcançar esse estágio. O desporto está a evoluir surpreendentemente e continuará em evolução, se todos os intervenientes procurarem tirar maior vantagem possível investindo muito em seus setores. Portanto, tudo estará na dependência de medidas que terão que ser assumidas no âmbito de muitas áreas e temas. Não basta juntar desportistas de diversas modalidades para debater o futuro do desporto nacional ou fazer uma reflexão crítica sobre a atividade desportiva realizada no seio dos clubes e orientada pelas federações. Só isso, não poderá conduzir-nos à identificação das grandes contradições e dos problemas fundamentais que existem no desporto nacional. Se quisermos transformar o desporto moçambicano, o Estado, os Municípios, as federações e as associações desportivas, os clubes, as escolas e faculdades de desporto deverão tomar medidas coerentes.
SM – Por fim, poderia falar sobre os projetos de cooperação entre Moçambique e Portugal no desporto?
AG – Desde que me graduei (licenciatura, mestrado e doutoramento), a minha carreira académica tem decorrido em estreita associação à cooperação com os países lusófonos, particularmente com Portugal e com o Brasil. Realmente, os caminhos que trilhei estiveram sempre ligados à cooperação, quer a título pessoal, quer em representação da minha Faculdade e, nalgumas vezes, da UP. Por isso, concordarão comigo se disser que uma Universidade, um país, uma federação desportiva não vive da prática das virtudes cristãs, nem da imitação dos Santos. Não vive do recolhimento e da renúncia ao mundo. Certamente tem valores próprios, embora não deva enclausurar-se neles. Carece de estar no mundo, mas não de modo passivo, calando-se e deitando-se no colo dos interesses vigentes. Assim, devemos continuar a estar no mundo, ao lado dos outros sujeitos que o constroem e do mesmo jeito.
Não podemos ficar a assistir passivamente a configuração do mundo pelo mercado e prestar alegremente serviços nesse sentido, é imperioso que também estejamos no mundo como um protagonista ao lado dos outros e que participemos de modo ativo, responsáveis e empenhados na feitura da realidade.
De resto a história recente do nosso País, do nosso desporto, da nossa educação etc., atestam sobremaneira o postulado anterior. Por isso, continuaremos a aumentar a cooperação e o nosso carácter internacional. Aliás, a Nova Visão Estratégica da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] para o período de 2016 a 2026, adotada pela XI Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP [Brasília, novembro de 2016], veio reforçar a convicção de que a Cooperação entre os Estados-Membros [EM] da CPLP e desta com distintos parceiros de desenvolvimento é um pilar estratégico da Organização que permite afirmar a identidade dos EM e reforçar não só os laços desportivos, mas também culturais, sociais, económicos e políticos. Adicionalmente, a cooperação da CPLP contribui para o desenvolvimento sustentável dos EM, a consolidação política, económica e social da Comunidade e para a sua projeção enquanto Organização Internacional.
Alberto da Conceição Liberto Graziano nasceu em Maputo, Moçambique, e é Professor Catedrático na Faculdade de Educação Física e Desporto da Universidade Pedagógica desde 1993. Licenciado em Educação Física, em 1991, pelo Instituto de Cultura Física, de Kiev (ex-URSS), mestrado em Desporto de Alto Rendimento pela Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, doutorou-se em 2002 na Universidade do Porto, Portugal. Atualmente coordena o Laboratório de Biomecânica, a Escola Doutoral e preside a Academia Olímpica de Moçambique, no Comité Olímpico de Moçambique. É autor de várias obras, entre as quais se incluem Pós-Graduação: Desafios e perspetivas na formação universitária (com Vicente Tembe, Maputo 2021), Métodos de Medição para o Estudo do Movimento Humano (Maputo, 2022), Biomecânica em Moçambique: Para que serve na sua prática profissional e que benefício pode trazer para o professor e para o treinador? (Maputo, 2018 – 1ª edição e 2019 – 2ª edição), Andebol: Metodologia de Ensino e de Treino (Maputo, 2012), Biomecânica: Fundamentos e Aplicações na Educação Física escolar (Maputo, 2009) e o Passado, o Presente e as Perspetivas para o Desenvolvimento do Desporto em Moçambique (com Vicente Tembe e Pedro Pessula, Maputo, 2008).