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José Uva e o talento para encontrar talentos: “Eu acho que as ‘Patrícias’ estão na escola”Exclusivo 

José Usa ao lado da atleta Patrícia Mamona. Foto: Divulgação.

José Uva treina Patrícia Mamona há 20 anos. Descobriu-lhe o talento ainda nos bancos do Secundário. É o exemplo do treinador que identificou o potencial precoce, respeitou as etapas de desenvolvimento, conduziu a ambição da atleta. O pódio olímpico deu sentido ao caminho. O profissional de 51 anos, natural de Faro, conversou com a SportMagazine.

SportMagazine (SM) – Disse numa entrevista após a medalha de prata da Patrícia, em Tóquio, que estava ‘anestesiado’. Mas já antes tinha ganho medalhas em grandes competições internacionais. O que é que esta medalha em Tóquio teve de diferente para si como treinador?

José Uva (JU) – Foi muito especial, precisamente por ser uma medalha olímpica. E também, por ter coincidido com a chegada à marca que era o nosso objetivo de carreira, ou seja, ultrapassar a barreira dos 15 metros.

SM – As medalhas olímpicas no triplo salto começaram com o Nelson Évora, agora a Patrícia, o Pichardo, mas também há esta nova geração com o Tiago Pereira e a Evelise Veiga. O que é aconteceu ao triplo salto em termos de treino, desde meio da década de 2000, para este sucesso consistente?

JU – Acho que ainda não há uma escola de treino consistente que explique este sucesso. Se houvesse não teríamos três medalhas, mas sim 30. No entanto, há uma mensagem clara que passou sobre a metodologia do treino no triplo salto e que tem origem na presença de um treinador russo em Portugal, o Robert Zotko, contratado em 2000 pela Federação Portuguesa de Atletismo. Eu treinava a Patrícia ainda muito jovem, não bebi diretamente dele, mas muito por intermédio do Professor João Ganço, que era o treinador do Nelson Évora, do Professor Abreu Matos, que treinava a Naide Gomes, e do Diretor Técnico da FPA na altura, o Professor José Barros, que souberam passar muito bem a mensagem do Professor Robert Zotko. A comunidade de treinadores aceitou bem os ensinamentos de um homem que tinha sido treinador nacional de saltos na antiga URSS, que fundou a escola cubana de saltos e que esteve quase uma década ao serviço da Federação Italiana de Atletismo. Infelizmente, morreu de forma prematura em 2004, ainda estava em Portugal, mas a sua mensagem foi apreendida e transmitida. Os treinadores portugueses foram sendo cada vez melhores, mais informados e capacitados, debatendo mais as questões técnicas entre si. Hoje há acesso a muita informação vinda de todas as partes do Mundo. Há formação de qualidade. Os apoios melhoraram, também por via desta rivalidade desportiva entre Sporting e Benfica, que beneficia os atletas.

Patrícia Mamona e José Uva em Tóquio 2020. Foto: Divulgação.

SM – De que forma está organizado o apoio aos atletas?

JU – Tem três vertentes. Uma de apoio direto ao atleta, através de uma bolsa, outra de apoio direto ao treinador, também por via de uma bolsa, o que é muito importante para nós, pois é uma forma de estarmos mais apoiados e assim podermos estar mais presentes, até porque os treinadores têm também outras ocupações profissionais e é sempre um conforto, sobretudo na altura das competições, em que é necessário acompanhar os atletas. O mais importante é o facto de termos uma verba para preparação. Há países que pagam mais dinheiro aos atletas, no entanto, estes têm que usar esse dinheiro para fazerem estágios no estrangeiro ou poderem ir a meetings, e isso é muito caro. Temos uma verba anual que podemos usar, mediante a gestão da Federação, depois de apresentarmos um plano de preparação, que é discutido e aprovado. Assim, conseguimos estar no mesmo sítio onde estão os grandes atletas, graças a essa preocupação da Federação, do Comité Olímpico e do IPDJ.

SM – Quando começam a aparecer esses resultados, começam também a surgir os clubes interessados em contratar, ou não?

JU – Mas os clubes interessados são dois…o Sporting e o Benfica. Os outros podem ter interesse, ou tradição, mas é tudo na base do amadorismo. Não conseguem pagar o suficiente a um atleta para ser profissional da modalidade. Ainda assim tem que quer um atleta de primeira linha. Se pensar na Patrícia Mamona, ela consegue ser profissional, mas se pensar na segunda ou na terceira melhor atleta portuguesa do triplo salto, se calhar já não conseguem. Os clubes querem o melhor, valorizam o melhor. Isto não é como nos desportos coletivos. Não há bolas no poste, não há foras de jogo. Os melhores são os que ganham. É raro o melhor perder, só se os valores competitivos forem muito idênticos.

SM – Os treinadores de desportos individuais estão mais protegidos dos maus resultados do que os treinadores dos desportos coletivos? Ou seja, quando uma equipa falha, é visado o treinador, mas quando, numa modalidade individual, o atleta não corresponde à expectativa que foi criada, é o próprio atleta que é visado.

JU – Não concordo com isso e talvez aconteça por falta de cultura desportiva. O treinador dos desportos coletivos goza de privilégios e também de desvantagens. Acontece que a população em geral é mais opinativa em relação aos desportos coletivos. Então, é tudo muito especulativo. O treinador pode ser bom, mas se não ganha tem os dias contados. Mas o contrário também é verdade. O treinador pode não ser grande coisa, mas se ganhar está safo. Ora, nos desportos individuais isto não acontece. Se o treinador é mau, o atleta não corre rápido nem salta longe. O papel do treinador nos desportos individuais tem mais a ver com o estado de forma do atleta, com a questão técnica, física e mental. O papel do treinador de desportos coletivos também engloba esses aspetos, mas o principal é saber influenciar um grupo de homens ou de mulheres para todos trabalharem no mesmo sentido. Mais vale uma equipa mal treinada mas em que todos queiram o mesmo, do que uma equipa muito bem treinada em que cada um faça o que lhe apetece. Nos desportos individuais isso não é possível. Se o atleta não quiser ganhar tanto ou mais do que o treinador, não tem resultados. Não há nenhum treinador de desportos individuais que possa obrigar o atleta a fazer isto ou aquilo. O atleta tem que querer.

SM – No seu caso treina a Patrícia há duas décadas. Considera que o facto de trabalhar com menos gente e normalmente serem relações mais longas favorece essa relação treinador-atleta?

JU – Nos desportos coletivos, o centro de cada desporto é o clube. Nos desportos individuais, o centro é o treinador. Muitas vezes os atletas não quem saber em que clube estão, querem é escolher o treinador, pois isso é que dá garantias de poderem evoluir, ou de terem um processo de treino organizado, metódico, virado para a ciência e moderno.

José Uva: “Eu acho que as ‘Patrícias’ estão na escola. Em todas as modalidades. E os bons treinadores têm que ter acesso à escola, mesmo não sendo professores, o que não é fácil”. Foto: Carlos Saraiva

E vê alguém capaz de chegar ao nível da Patrícia? Vê potencial para isso?

JU – Eu penso ao contrário. Acho que nunca mais surgirá uma atleta como a Patrícia, pois não estamos a falar só de capacidades físicas, mas também da sua personalidade que é feita para o alto rendimento. Uma pessoa que nunca está satisfeita com o que consegue, que faz tudo para poder melhorar e que molda toda a sua vida em torno disso. Ela respira atletismo. E nem todos os atletas estão disponíveis para isso.

SM – O poder da mente vale mais do que as pernas nestas grandes competições?

JU – São três fatores importantes: a questão física, a técnica e a psicológica. A cabeça manda nas outras duas. O triângulo deve ser equilibrado. No caso de uma ser mais débil, as restantes têm que compensar, mas sempre com a parte psicológica a comandar. A Patrícia nesses cenários intimidatórios para muitos não deixa de ser focada, as pernas não lhe tremem nos momentos importantes.

SM – Essa força mental também se identifica precocemente?

JU – Costumo dizer que ‘não podemos ensinar um sapato a cantar’. Podemos pô-lo dentro da gaiola mas ele não canta… O papel do treinador é importante mas o atleta tem que ter potencial e vontade. Às vezes, ganhar pode dizer tudo, mas também pode nada dizer. Vencer adversários fracos é fácil, mas ganhar aos melhores do Mundo pode ser impossível. Foi sempre o que tentei incutir na Patrícia. Mesmo numa final olímpica, ela não tem que estar preocupada com o que as outras saltam. Tem é que tentar saltar o mais longe possível.

SM – A Patrícia chegou à prata por que era o seu limite, ou achou que podia chegar ao ouro?

JU – Aquele não é o limite dela, mas o ouro foi ganho por uma extraterrestre, que saltou mais meio metro. A campeã olímpica é a melhor a saltar longe, embora não seja a melhor tecnicamente. Se ela tivesse os níveis técnicos que a Patrícia tem, não saltaria 15,67m mas sim 16,67m, que é o que os homens saltam. A Patrícia faz 33 anos em Novembro, mas até agora não vislumbrei a diminuição de algum indicador físico. Está no auge da sua carreira e temos a perspetiva de que continue a melhorar. Mas eu gosto de ser objetivo. Ela saltou 15,01m, a 13 centímetros da tábua, o que quer dizer que ainda pode fazer 15,14m. Já os fez, mas não contou. O nosso objetivo é que até final da carreira ela salte 15,20m. Se o fizer, entra para o grupo das 10 mulheres que o conseguiram na história da modalidade.

SM – Quando os seus atletas chegam às grandes competições, que já é fase final de um percurso, sente que ainda pode ter impacto, ou nessa altura depende mais do atleta do que do treinador?

JU – Um treinador de saltos tem sempre impacto durante uma prova, a nível técnico e de motivação. Mas temos que ter muito cuidado com o que dizemos ao atleta. Uma palavra mal aplicada pode condicioná-lo. Nestes grandes momentos, os treinadores dizem, sobretudo, palavras de motivação.

SM – Que ferramentas científicas para o treino tem hoje que não tinha quando começou, ou até mais recentemente, há 10 anos atrás, por exemplo?

JU – A tecnologia e o conhecimento científico invadiram o treino. Os médicos são melhores, as equipas de apoio multidisciplinar (psicólogos, biomecânicos, nutricionistas, psicólogos) são mais eficazes. O treinador não pode perceber de tudo. A prevenção de lesões também melhorou muito. Ainda que o treino tenha mantido a essência, as ferramentas são outras. O professor Moniz Pereira usava um cronómetro, agora temos um GPS que nos diz tudo o que faz o atleta, até mesmo o que se passa com os seus sinais vitais quando dorme. Ou um dispositivo colocado na barra de musculação que nos diz a que velocidade ele mexe a barra. A Patrícia usa um anel que mede as pulsações e a temperatura corporal constantes, encaminhando a informação para uma aplicação. É possível cruzar esses dados com valores de referência para cansaço, por exemplo, porque o descanso também é treino.

“Muitos atletas que têm uma personalidade forte focam-se muito nos adversários, nas vitórias, nas medalhas, e esquecem-se de pensar que o seu principal adversário são eles próprios”. Foto: Carlos Saraiva

SM – Como é que se cruzou com a Patrícia?

JU – Num corta-mato escolar, tinha ela 12 anos. Na altura eu estava no Joma, um clube no Monte Abrão, em Queluz. Tínhamos uma equipa técnica muito boa e fazíamos prospeção nas várias escolas de Sintra. Um dia, um professor da escola onde ela andava, a António Sérgio, no Cacém, falou-me dela. Quando a miúda mais baixa da turma ganha às colegas, mas também aos colegas rapazes, há ali alguma coisa. E havia. Mas é preciso muito cuidado para não criar expectativas a uma criança só para a convencer. Depois, se ela não consegue, vai acumulando frustrações. É melhor acumular alegrias aos poucos, mesmo sem a própria criança saber o que vale. O treinador tem que motivar, mas sem criar falsas expectativas.

SM – Percebeu logo que havia ali potencial olímpico?

JU – Ninguém se atreve a dizer isso. O mais importante serão as decisões posteriores que vão tomar na sua vida. Todos os dias vimos miúdos que prometem. Mesmo que tenham potencial físico podem não ter o resto. Podem não ter jeito nenhum, podem não ter vontade, ou os pais não os deixarem fazer atletismo. Há muitos imponderáveis e os treinadores apreenderam a ser conservadores.

SM – O Professor José Uva é também coordenador dos atletas e treinadores de saltos, no Sporting, que tem sido um viveiro para o atletismo. Considera que, em geral, a prospeção de talentos está organizada de forma útil?

JU – Em Portugal, a captação de atletas é organizada. A Federação Portuguesa de Atletismo tem um programa nacional juntamente com a Direção-Geral de Educação/Desporto Escolar, o Mega-Sprinter, no âmbito do qual quase todas as escolas do país fazem uma prova de velocidade, salto em comprimento e resistência, ao nível da turma, depois ao nível da escola, e depois há uma final nacional. É uma boa rede para encontrar talentos e vocações. A grande dificuldade é que, por vezes, surgem talentos em zonas do país em que não se consegue dar resposta, pois faltam treinadores. No Sporting temos a academia de atletismo, estamos presentes no programa, identificamos os talentos e o clube tem a possibilidade de contratar e criar condições para o atleta se deslocar.

*JOSÉ SOUSA UVA, 51 anos, natural de Faro, licenciou-se em Educação Física e Desporto pela Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP). Professor de Educação Física na Escola Secundária de Linda-a-Velha, Lisboa, treina a vice-campeão olímpica Patrícia Mamona há quase 20 anos. É também Coordenador dos atletas e treinadores de saltos no Sporting Clube de Portugal.

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