A ética no desporto é algo já há muito tempo discutido e preservado. Há valores a serem respeitados, independentemente da modalidade praticada. No entanto, pergunta-se: será que todas as modalidades detêm os mesmos valores? Os valores devem ser incutidos desde cedo? João Mirra, treinador de rugby do Belenenses, campeão nacional, conversou com a SportMagazine acerca da ética no desporto, tomando a sua modalidade como exemplo. O técnico português falou das diferenças e semelhanças entre os valores do rugby com os mais variados desportos, apresentando ainda uma solução para que se torne mais abrangente na sociedade e no País. A entrevista abaixo fez parte do dossier publicado na edição n. 3 da Revista SportMagazine (com foco no dossier “Ética e Valores no Desporto”).
SportMagazine (SM) – Tendo em conta que vivemos numa sociedade com muito preconceito e violência, sente que o desporto acaba por ser o espelho dessa sociedade ou acha que o desporto, tomando o rugby como exemplo, tem muito a ensinar à sociedade?
João Mirra (JM) – Acho que o desporto, qualquer que seja, é o espelho da sociedade, mas ao mesmo tempo também tem muito para ensinar, se as pessoas que estiverem à frente das modalidades souberem usar as ferramentas certas. Aqui até me virava um bocadinho mais para os desportos coletivos, que é onde estou mais à-vontade. Não é que os desportos individuais não tenham essas valências. E sim, são o espelho da sociedade, mas podem ser uma ferramenta muito forte para combater isso, porque o próprio desporto, principalmente o desporto de alto rendimento, não tem, não há direito a diferenças a partir do momento em que começa o trabalho. Seja no treino, seja no jogo, essas diferenças por mais estúpidas que sejam e existam à volta da sociedade, dentro do processo desportivo são postas de lado.
SM – Enquanto treinador lida com atletas constantemente. Que valores tenta transmitir aos seus atletas para fortalecer esta ética desportiva?
JM – Tive a sorte de começar a trabalhar nos escalões de formação, seja em clube, seja em Seleção. Acho que isso foi uma vantagem para mim, porque aí podemos estar um pouco menos focados no resultado ao fim de semana e um pouco mais focados na formação desportiva do atleta enquanto pessoa, mesmo sendo um desporto coletivo. O que é que nós fazemos ou tentamos fazer? É usar os valores que nós tanto falamos, neste caso do rugby especificamente. Esses valores, mais do que fora do campo, estão dentro do campo. Lá está, estou a falar do rugby, não quer dizer que os outros desportos coletivos não têm. O andebol a mesma coisa, o basquetebol a mesma coisa, como variadas modalidades. Mas o rugby, especificamente, tem algumas características que potenciam essa passagem de valores. É um desporto, lá está, de combate, como outros, é um desporto coletivo. E se tanto os treinadores, os jogadores, os árbitros não forem fiéis a esses valores, de repente um jogo que é para ser muito disciplinado transforma-se em alguma coisa totalmente diferente. Esta própria modalidade requer em nós muita disciplina e muito rigor no seguimento desses próprios valores para manter essa disciplina, porque rapidamente se transforma noutra coisa que não queremos. Se formos fiéis a isso, dentro do campo está lá tudo. Já cometemos dois erros: que é acharmos que só o rugby é que tem essas características. Não é, há muitas outras modalidades que têm coisas muito boas para ensinar aos atletas e para formá-los enquanto pessoas. Depois achar que basta só dizer que estão lá os valores, que existem. Não, temos de ser fiéis à modalidade. Principalmente em escalões de formação, temos de ser nós, adultos, a guiar os atletas a seguirem esses valores no dia a dia. É um processo. Naturalmente, o desporto vai incutir os valores e sem esses valores eles não vão conseguir jogar esta modalidade.
SM – Sente então que esses valores têm que ser passados desde muito cedo?
JM – Claramente, não é quando tiverem 18 ou 19 anos que vão moldar-se enquanto atletas, até porque a própria modalidade, como outras, faz essa filtragem, não é? Sendo um desporto coletivo, se eles não forem disciplinados, se não jogarem coletivamente, se não forem corajosos, esses valores estão implícitos no dia a dia da modalidade, é uma filtragem normal. Não é o próprio treinador que vai dizer ‘este não tem valores não joga’, eles próprios se não foram fiéis e não seguirem isso vão começando a ficar para trás e até a maior parte deles não se sente enquadrada e sai.
SM – Assumiu que muitas modalidades têm os valores do rugby e o erro que a modalidade cometeu ao considerar-se diferente das demais. Apesar disso, crê que tem o rugby é diferente das outras modalidades?
JM – Penso que sim. Tem uma característica boa, pode ter o lado bom ou mau, mas neste caso, ainda é, infelizmente, um nicho. Está muito inserido num contexto familiar. Mesmo em equipas nas quais têm que lutar fisicamente uns contra os outros, ao fim de semana, muitas vezes estão a fazê-lo contra irmãos, primos. Há outra coisa que não é a rivalidade desportiva, isso acaba a partir do momento que se ouve o apito. Também tem o lado mau e, a meu ver, um travão no crescimento da modalidade. Precisamente esse aspeto de estar inserido num meio familiar mina o crescimento da modalidade no sentido que queremos que ela cresça. Nesse aspeto acho que sim, pode ter outras diferenças em relação às demais. Mesmo o hábito de haver um lanche ou um jantar entre as equipas a seguir aos jogos, penso que é algo que se deve manter.
SM – Acredita que os valores do rugby devem ser levados a cabo noutros desportos?
JM – Sim, acho que como tudo na vida, nós podemos ser um exemplo para as coisas boas e para as coisas más. Acho que o rugby, neste momento, em Portugal, passa um momento decisivo, que é: está a crescer, cada vez mais se está a querer profissionalizar. Agora, muita gente fala mal do futebol, mas é um facto que na Europa é o desporto número um. Acho que temos de ter a capacidade de continuar a crescer para o semiprofissionalismo e o profissionalismo dos atletas, mas sem perder estas características que, não sendo únicas, são muito especificas do rugby. Porque sempre que começa a entrar dinheiro, aumenta a competição, a competitividade e facilmente estes valores são postos de parte. É um desafio para as pessoas à volta da modalidade, não tanto os atletas, porque acho que acabam por seguir o ambiente à sua volta. Temos de ter a capacidade de continuar esse crescimento, não podemos continuar a ser um desporto de bairro, não é isso que queremos. Queremos crescer a nível internacional, com as seleções, com os Lusitanos, que é quase uma Seleção B, e ao mesmo tempo não perder essas modalidades. Também queremos que os pais quando vêm deixar os filhos, e tiverem que escolher, olhem para a nossa modalidade e percebam que, se calhar, tem um por cento de probabilidade de ser jogador profissional, não é isso que o vai sustentar, mas sei que esta modalidade lhe pode dar formação enquanto homem ou enquanto mulher. Se perdemos isso e nos banalizarmos podemos não conseguir competir com outras modalidades. É um grande desafio, estamos numa fase muito importante, principalmente no rugby nacional, para fazer um crescimento sustentado sem perder esta identidade, estas características.
SM – Como treinador, qual a sua motivação para educar os seus atletas, ou seja, passar estes valores?
JM – Eu não me sinto capacitado para os educar individualmente. Acho é que tenho alguma capacidade para usar ferramentas específicas do rugby. Se tiver a capacidade de ser fiel a essas características da modalidade, consigo dar o exemplo para os atletas beberem dessa formação desportiva. Porque lá está, tenho de ser justo, tenho de ser coerente comigo mesmo, rigoroso, resiliente, tenho de respeitar o adversário, seja ele bom, seja mau, quer eu ganhe, quer eu perca.
SM – Com estes valores que disse que o rugby tem, pergunto o que é que falta a esta modalidade para sair desse nicho?
JM – Não sei se sou a melhor pessoa para responder a isto, mas do que sei acho que se têm feito coisas muito boas nestes últimos anos. Tentar ir para bairros socialmente mais desfavorecidos, porque óbvio que o melhor atleta pode vir de um estrato social e económico alto. Mas também é certo que se tivermos que escolher entre o atleta que está na rua a jogar futebol ou a jogar à apanhada a correr, com oito anos, ou o atleta que está em casa a jogar Playstation, provavelmente o atleta que está a correr vai dar garantias de ser melhor atleta no futuro. Não quer dizer que seja. Rapidamente temos de ir buscar estes jogadores que, aos 18 anos e com 1,90 m, podem escolher o basquetebol ou o andebol. Têm de perceber que aqui têm uma modalidade que lhes vai acrescentar algo. Porque se nós continuamos em Lisboa, Porto, Coimbra, vamos espremer estes atletas, mas o salto vai ser muito pequenino. Temos que ir para as escolas, ir buscar número. A qualidade vem da quantidade e da diferença. É o que defendo. Temos de sair das grandes cidades para ver atletas com outros desenvolvimentos tanto sociais, culturais, físicos, para mais tarde ter um número alargado de jogadores heterogéneo para subir a qualidade. Temos tantas pessoas a ver futebol, porque toda a gente joga futebol em Portugal. Seja nas pracetas ou na escola. Mesmo que a maior parte não siga a carreira profissional de futebol, aprendeu e gostou. E nós só vamos conseguir crescer se a maior parte das pessoas que vão seguindo a modalidade, foram atletas ou têm de alguma forma contacto com a modalidade. São essas pessoas que vão aos estádios, são essas pessoas que no futuro vão ver o rugby na televisão, são essas pessoas que vão comprar os produtos de rugby, seguir nas redes sociais os clubes e os jogadores.
JOÃO MIRRA, 41 anos, é treinador de rugby do CF Os Belenenses. Em 2015, foi distinguido como treinador do ano pela Federação Portuguesa de Rugby, após uma caminhada histórica na Seleção Nacional de Sevens Feminino. Enquanto jogador passou toda a sua carreira no emblema do Restelo. Como treinador passou pelos sub-16 do clube, pela Seleção feminina de sevens, Seleção masculina sub-18, sevens sub-18 e sub-20 (como adjunto), orientou os seniores do Belenenses, da Seleção sénior masculina como adjunto e os Lusitanos.