Por Susana Feitor* (Formadora do Comité Olímpico Internacional e treinadora)
Se há coisa certa na vida de um atleta é que um dia a carreira de alto rendimento vai terminar. Mais cedo ou mais tarde, e sem dramas, diria até que há duas coisas certas: o fim da carreira e a morte. Mas estou aqui para falar de vida e da vida que está para lá do desporto – a transição de carreira. Na minha cabeça sempre morou a ideia de que iria competir até que o corpo permitisse e depois queria ter uma atividade que me preenchesse o coração. Teria de estudar na universidade e, depois de terminar a carreira desportiva, iria dedicar-me a uma atividade profissional para a qual tivesse estudado. Esta era a ideia. Mas afinal foi muito diferente…
A minha vida desportiva começa cedo e, logo aos 15 anos, sou campeã do mundo de juniores, frequentava o 9.º ano. Aos 17 anos, sou olímpica pela primeira vez em Barcelona, ainda nem tinha acabado a escola secundária. Era boa aluna, as coisas no atletismo estavam a tornar-se muito sérias, mas não abalou o meu desempenho escolar. Só que não foi sempre assim e tudo foi diferente na faculdade.
Entrei em Engenharia Florestal, no Instituto Superior de Agronomia (ISA), movida pelas minhas origens e paixão pela natureza. Mas senti enormes dificuldades em conciliar as duas vidas. Depressa se tornou evidente que não ia conseguir fazer o alto rendimento e a universidade em simultâneo. Não desisti. No ISA tinha vários mecanismos de apoio, tal como se fosse um trabalhador-estudante e os professores eram fantásticos. Mas, por uma razão ou por outra, não conseguia avançar muito. O foco, tanto meu, como do meu treinador, era maior na performance. E o 4.º lugar no Mundial de atletismo em Sevilha-1999 alimentava o sonho do resultado olímpico e, em 2000, seriam os Jogos em Sydney, que poderiam ser a minha oportunidade. Só que 10 dias antes de competir, já a treinar na Austrália, sofri uma lesão grave que deitou abaixo toda a esperança, mesmo assim fui 14.ª. Desde aí, passei a viver em função desse resultado que tardava em surgir. Só que essa ideia condicionou a minha estratégia inicial em relação à outra vida.
É que, ao mesmo tempo, não me sentia feliz no curso de Engenharia Florestal, apesar do ideal romântico que vinha da serra dos Candeeiros, na verdade revia-me no desporto. Foi difícil, depressivo, ao ponto de ter ido falar com o professor Pedro Lynce, Chefe de Missão às Universíadas de 2001, nas quais fora medalha de prata, ele era também presidente no ISA. Expus as minhas dificuldades, às quais me pergunta olhando nos olhos: ‘Oh Susana, você quer mesmo fazer isto?’. Até que soube que a FMH tinha um curso recente: Exercício e Saúde. Eureka! Iria juntar as minhas áreas de interesse, o treino, a fisiologia, a prescrição e a saúde, além disso poderia acompanhar atletas. Em 2003 troquei a Engenharia Florestal pelo Exercício e Saúde, mas o foco nos Jogos de Atenas-2004 continuou a ser o mais importante. Queria vingar Sydney-2000, mas já com um olho no pós-carreira. Este é o meu primeiro planeamento concreto de transição de carreira.
Neste sentido, deixo-vos aqui o meu singelo conselho: Planear a transição de carreira, ou a sua dualidade, é tão importante como planear o treino rumo a uma competição. Os treinadores têm essa responsabilidade e devem sensibilizar os atletas que é necessário, desde o momento em que entram no alto rendimento, montar um plano B. Um plano que dê resposta ao que os atletas sabem que um dia vão querer fazer, sem estarem presos a uma atividade de que não gostam.
Segundo o Comité Olímpico Internacional, a média de idades do pico de rendimento de um atleta está entre os 27 e os 31 anos, significa que, a partir daí, essa fase de máximo rendimento. O final da carreira estará mais próximo, apesar de atualmente com o avanço da medicina desportiva, dos métodos de recuperação, entre outros aspetos, os atletas terminam as carreiras cada vez mais tarde. Em média ainda têm cerca de 25 a 30 anos de vida ativa até à idade da reforma, isto se for aos 65-67anos. É muito tempo a desempenhar uma atividade de baixo interesse ou sem paixão. Portanto, quanto mais cedo começarmos a planear, melhor.
Voltando à minha história… Quando o Comité Olímpico de Portugal (COP) me convida para fazer parte da comissão instaladora da Comissão de Atletas Olímpicos (CAO) em 2001, e depois em 2002 ser eleita presidente, vi que era importante os atletas estarem organizados, para que, de um modo estruturado, se apresentarem aos órgãos oficiais. Debaterem os mecanismos de apoio à preparação, mas também outras questões, como as estratégias de apoio à transição de carreira, apoios diretos do Estado, tributação fiscal das bolsas de apoio, ou até debater o funcionamento do Projeto Olímpico. Juntando essa experiência da CAO, à mudança de curso, senti que ter idealizado um plano B contribuía muito para a minha paz interior e para o melhorar o foco desportivo, algo que não tinha sentido até então.
No entanto, ter um plano ajuda a orientar o caminho, mas não quer dizer que tudo corra matematicamente. A carga da mudança estava lá. Nos Jogos de Atenas-2004 fui 20.ª, longe dos lugares cimeiros e do que tinha sentido em Sydney. Cheguei ao fim da época muito desgastada, frustrada e o resultado olímpico sem sair. Digo ao meu treinador que precisava de uma pausa, queria voltar a dedicar tempo à faculdade, descansar do alto rendimento, no fundo não sabia se voltaria a querer competir. Até ao final de 2004, descansei, reorganizei as ideias, mas senti que não podia terminar a carreira assim e propus ao meu treinador mudanças estruturais no treino, nos estágios, etc. Retomei com novo fôlego, parecia outra. Apontei para os Jogos de Pequim-2008. De tal modo estava, que no verão de 2005, conquistei a que até hoje foi a minha melhor medalha: o bronze no Mundial em Helsínquia.
Outra mensagem que quero deixar: Há fases em é preciso de apostar 100% no alto rendimento, mas a opção de desligar ou não do resto, é muito pessoal. Entretanto, a faculdade era em Lisboa e Rio Maior oferecia melhores estradas para os treinos de marcha e, de repente, vi-me numa correria entre os dois locais, um desgaste enorme. As circunstâncias obrigaram-me a adaptar e a optar.
E mais uma vez a minha história passaria por nova mudança de planos… Fui ficando em Rio Maior, aonde acabo por regressar. Precisava licenciar-me, e influenciada pelas vivências na CAO e no COP, volto a mudar de curso. Fui estudar Gestão das Organizações Desportivas na Escola Superior de Desporto de Rio Maior, com o objetivo de terminar a carreira ao mesmo tempo que o curso: foco na transição. É que se queria ter resultados e preparar a integração no mercado de trabalho, precisava treinar, recuperar e estudar na mesma área. Já sob a orientação de outro treinador, estava na reta final e senti-me renovada.
Voltei a ter resultados, fui 6.ª no Mundial de em Daegu (hoje 4.ª, pela desclassificação das russas) e fiz 1.28,51 h aos 20km, que seria a minha melhor marca em nove anos. Mas o corpo já pedia descanso e as lesões antigas teimavam em reaparecer. Ainda assim, fui suplente para os Jogos de Londres-2012 e ainda fiz marca para os Jogos do Rio-2016. Porém, uma última lesão grave inviabilizou o desejo de terminar a carreira numa grande competição. Aos poucos inverti prioridades. A licenciatura tornava-se necessária para me candidatar a concursos que me interessavam – já tinha perdido oportunidades de estágio no Comité Olímpico Internacional (COI) na Suíça, apenas por não ser licenciada. E é isso que faço, concluo a licenciatura, mantenho-me na CAO, sou formadora do COI, também treinadora de uma atleta norueguês… mas ainda assim, não me sinto preenchida!
Quando se dá a pandemia, com o confinamento, dou por mim a assistir a webinares sobre recuperação de lesões, fisiologia do exercício, matérias relacionadas com estilos de vida, no fundo estava a voltar ao Exercício e Saúde e a ligar pouco às matérias de gestão. Um dia troco contatos com a Fitness Academy, uma empresa de formação na área do desporto. O Miguel Marcelino, administrador da empresa, desafia-me a fazer um curso de Técnico de Exercício Físico (CET). Fizemos uma permuta, daria aulas quando precisassem enquanto frequentava o curso. Em 2020, começo o curso, a parte teórica está feita, e agora faço estágio num ginásio. Não sei se a minha vida vai ser num ginásio, mas a ideia que tinha de ajudar pessoas e ser-lhes útil está viva, sinto-o todos os dias no estágio. É muito gratificante! E permite-me conciliar com qualquer outro projeto que possa surgir e ser um rendimento extra. Vejo que tive de percorrer todo um caminho para perceber que sem deixar de me focar no atletismo, andei à procura de algo que me fizesse ter o sentimento de pertença. Gostar de muitas áreas, tornou a minha escolha mais difícil. Hoje sei que o que faz mais sentido para mim é ajudar pessoas, ser útil através do Exercício, ou seja conciliar o Exercício e Saúde, com a Gestão de Desporto. Contudo, aos 47 anos, sinto todos os dias que continuo em fase de pleno crescimento.
Hoje sou treinadora, dou apoio a um grupo de jovens e treino duas atletas da marcha, a Mara Ribeiro e a Inês Mendes. Estou a terminar a certificação em treino personalizado. Estou em fim de mandato na CAO, renovei no conselho diretivo da Academia Olímpica de Portugal, dou apoio num projeto do Erasmus+ sobre carreiras duais, continuo como formadora do COI para a transição de carreira e tive uma experiência fantástica com a FADU, como chefe de Missão às Universíadas de Taipé-2017 e Nápoles-2019.
Como treinadora, quero muito potenciar todas estas vivências. Com a minha história, aliada ao conhecimento, procuro sensibilizar atletas e treinadores, bem como dirigentes, que não abdiquem de um planeamento dual a longo prazo. Para mim, o papel do treinador ou dos ex-atletas passa por contribuir para essa descoberta pessoal do jovem atleta. Ter um plano é melhor que nenhum. Permitam-se ao erro. Aprender com ele e seguir melhorando. Quanto mais cedo encararem o processo, mais fácil e mais profícuo será para todos.
*SUSANA PAULO DE JESUS FEITOR, 47 anos, foi a primeira atleta portuguesa a conquistar uma medalha na marcha atlética. Subiu ao terceiro lugar do pódio no Mundial de Helsínquia (2005) e no Europeu de Budapeste (1998), depois de ter sido campeã mundial júnior. Na longa carreira participou em cinco edições dos Jogos Olímpicos e durante sete anos deteve o recorde nacional dos 20 km marcha. Presidiu à Comissão de Atletas Olímpicos entre 2002 e 2005. É licenciada em Gestão das Organizações Desportivas na Escola Superior de Desporto de Rio Maior, é formadora do Comité Olímpico Internacional e, neste momento, frequente o curso de Técnico de Exercício Físico.
Este artigo é parte da edição n.º 1 da nossa revista, que contém Dossier “A Preparação do Atleta a Longo Prazo”. O material completo está disponível para os assinantes. Se ainda não é, saiba como fazer para integrar o nosso grupo de leitores e colaborar com o nosso projeto.