*por Aldo Matos da Costa (Presidente da Associação Portuguesa de Técnicos de Natação)
Para apreciadores do comportamento social, aconselho vivamente a leitura do último livro de Michael Sandel (2022) – “a tirania do mérito”. Às páginas tantas, Sandel refere que a sociedade civil debate-se com o problema ético do mérito, isto é, sobre a dificuldade em compreender por que razão aqueles que ascendem em virtude dos seus talentos merecem mais do que aqueles tanto ou mais esforçados, mas que não atingem o mesmo patamar de excelência por serem menos munidos de dons naturais.
Sobre esta dicotomia – talento e esforço, poderíamos teorizar as mais variadas conjeturas sociais em diferentes áreas de aplicação. Seja qual for, sabemos que a diferença entre um individuo com talento e sem talento pode até ser uma questão de sorte, mas consideramos sempre que o esforço é uma escolha. Portanto, ao assumirmos a sorte como uma característica penetrante da vida humana, tendemos também a considerar que as “diferenças de esforço” devem ser recompensadas, mas as diferenças de talento não deveriam. Constata-se assim uma noção social igualitária e neutralizadora da sorte, que inflaciona a relevância moral do esforço e ignora a arbitrariedade do talento. Com efeito, como referem alguns autores, o sucesso pode muito bem ser descrito através da relação entre talento, sorte e recompensa.
Todavia, no que diz respeito ao desporto, assistimos todos os dias a políticas governamentais que procuram atribuir condições de preparação desportiva privilegiadas a determinados atletas precocemente talentosos, o que parece resultar numa recompensa dirigida ao talento e não propriamente ao esforço. Nas palavras de Richard Bailey, um ilustre académico britânico, essa política desportiva atribui vantagem àqueles já “tocados” pela sorte biológica, o que parece contrariar a estratégia fundada numa filosofia de justiça social.
Infelizmente a nossa compreensão é vã acerca do “padrão” estocástico no desporto sobretudo quando admitimos o seu efeito no tempo. Se assim fosse seria relativamente fácil identificar jovens talentos a partir da população estudante, ou pelo menos, ficaríamos descansados porque um jovem desportista prodígio seria uma garantia de sucesso na idade adulta. Sabemos que não é assim. Mesmo perante as inúmeras recomendações para a identificação e desenvolvimento da excelência, aqueles “talentos” que nunca tiveram a oportunidade de realizar o seu potencial devido a variados fatores contextuais (apoio parental, condições de treino) serão porventura mais numerosos do que aqueles que efetivamente atingiram a elite no desporto.
Posto isto, a parca literatura sobre o tema sugere que nos deparamos com um paradoxo sobre as diferentes formas como a sorte se manifesta: (i) sorte resultante – as consequências das nossas ações são afetadas pela sorte; (ii) sorte circunstancial – as circunstâncias em que alguém age introduzem sorte; (iii) sorte constitutiva – a sorte afeta o tipo de pessoa que somos; (iv) sorte causal antecedente – as ações de alguém são determinadas por circunstâncias antecedentes. De facto, já referia Thomas Nagel na década de 70, que quando somamos a sorte causal resultante, circunstancial, constitutiva e antecedente, a área da vida que é livre de sorte parece encolher “a um ponto sem extensão”. Assim, no desporto, tal como na sociedade, o ideal meritocrático é imperfeito, o que significa que não podemos ignorar nem a aleatoriedade biológica, nem a importância do esforço e do percurso do atleta, sendo o sucesso uma “amálgama” difícil de desemaranhar de talento, esforço mas também de sorte.
Mesmo assim, surpreendentemente, tendemos a optar por ignorar o papel da sorte na vida. Françoys Gagné, que escreveu profundamente sobre isto, liderou um estudo muito eloquente sobre o que fez a diferença no sucesso académico. Educadores e alunos afirmaram peremptoriamente que a sorte não é de todo o determinante mais importante (perante oito influências causais propostas). Resultados idênticos foram obtidos por outros autores questionando músicos, desportistas e até atletas olímpicos.
Antes de tudo haverá que salientar que a nossa perceção sobre o que nos rodeia, particularmente do comportamento humano, será um potente influente da forma como encaramos os nossos próprios objetivos de vida. Isto significa que as atribuições causais que cada pessoa faz perante o mesmo evento podem variar entre o controlo absoluto da acaso até ao conformismo com a imprevisibilidade dos acontecimentos, sobre os quais apenas nos espera uma mera reação. Tudo isto tem fortes implicações nas expectativas, na autoestima e até na motivação para a realização. Enquanto ter “boa” sorte não é geralmente considerado um importante pressuposto do sucesso, ter “má” sorte é muitas vezes invocado para justificar o insucesso, explica Gagné! Assim, ao assumirmos o acaso como a causa principal do sucesso, estamos também a afirmar o nosso conformismo sobre a falta de controlo e responsabilidade no evento em causa. Um exemplo disso pode muito bem acontecer perante o resultado de uma loteria mas muito dificilmente veremos atletas de topo a invocar a sorte como razão principal para a sua medalha olímpica!
Mas se o talento e esforço não variam tanto entre os atletas de alto nível desportivo, quanto varia afinal a sorte durante a competição? Williams Hopkins, um académico proeminente com muito trabalho feito no âmbito da modelação do rendimento desportivo, oferece uma perspetiva quantitativa muito interessante ao analisar as estimativas da variabilidade da performance em competição,, o que nos permite compreender as contribuições relativas do contexto e de outros fatores externos que, de forma imprevisível, afetam o desempenho atlético. Hopkins e a sua equipa sugerem que a variabilidade do desempenho desportivo parece advir da variabilidade de fatores como a potência, a dinâmica da competição, as condições climatéricas, a habilidade técnica ou o sistema de pontuação subjetiva. Consequentemente, por exemplo, a patinagem de velocidade apresentam os valores mais baixos de variabilidade da performance durante a época desportiva; o surf, por sua vez, surge com um elevado coeficiente de variação.
Na nossa opinião, esta visão sobre a variabilidade (a curto prazo) da performance permite-nos classificar o desporto como um sistema aberto, composto e variável quanto à sua previsibilidade, oscilando entre modalidades mais determinísticas ou mais probabilísticas. Compreensivelmente, podemos dizer que um dado desporto será: (i) mais determinístico, quando a performance pode ser estabelecida de forma inequívoca a partir da quantidade e qualidade dos fatores que a explicam; (ii) mais probabilístico, se é afetado por fatores imprevisíveis ou limitadamente previsíveis, que impedem estabelecer inequivocamente uma previsão sólida do resultado com base no conhecimento da sua estrutura modeladora de desempenho.
Este pressuposto teórico foi usado muito recentemente por uma equipa de físicos e astrónomos italianos procuraram analisar os efeitos de circunstâncias imprevisíveis durante a competição desportiva na esgrima, particularmente na disciplina de espada. Os autores escolheram uma modalidade individual que resulta em diferenças substanciais nos resultados finais, mesmo quando competem atletas com capacidades individuais visivelmente similares. Acontece que a aleatoriedade está expressamente presente nas regras da esgrima, nomeadamente no caso de empate, na duração imprevisível dos torneios e até na classificação final dos participantes. Adotando uma complexa modelação matemática com dados reais, os autores estimaram o peso relativo do acaso em relação ao talento do atleta em 45% para homens e 55% para mulheres! De acordo com os autores, as regras peculiares da esgrima tornam este desporto o melhor candidato para fornecer os limites superiores da contribuição do acaso em competições desportivas com pontuações individuais. Por outro lado, a corrida de velocidade de 100 metros olímpicos, apresentar-se-ia como uma boa candidata a contribuições mais baixas do acaso (4% para homens e 6% para mulheres, segundos a literatura consultada).
Como já ouvimos provavelmente dizer, a sorte parece ser um parceiro silencioso do sucesso. O desporto não parece ser exceção, e só agora começamos verdadeiramente a quantificar o seu papel. Por alguma razão esta temática remete-me sempre para o fabuloso ensaio de Isaiah Berlin, quando se questiona, retoricamente, porque os acontecimentos a que chamamos história ocorreram como ocorreram. Berlin descreve “que se a história é uma ciência, então deveria ser possível descobrir e formular um conjunto de leis históricas autênticas, que articuladas com os dados da observação empírica, tornariam a predição do futuro (e retroação do passado)” verossímil.
Pedro
Março 4, 2023 at 9:35 am
A sorte é como a fé, serve para disfarçar as falhas de competência. Será?
JOAO ALEXANDRE
Março 4, 2023 at 9:53 am
Parabéns Aldo Costa por esta excelente análise!… abraço