Antiga meio-fundista portuguesa, a nutricionista desportiva Solange Fernandes conhece bem a realidade e as limitações que cercam um atleta profissional. Os benefícios de uma vida saudável e as limitações impostas pela meta de ser um profissional de alto rendimento. Para alcançar o melhor, uma série de requisitos são necessários: treino, repetição, condicionamento físico e saúde mental – entre outros. Em comum a todos os fatores na cadeia de profissionais há uma interseção: a boa alimentação. Nutricionista há nove anos com especialidade em Nutrição Desportiva e mestrado em treino de Alto Rendimento pela Faculdade de Motricidade Humana (FMH), Solange Fernandes conversou com a SportMagazine sobre o trabalho que desenvolve há seis anos como uma das quatro nutricionistas do Sport Lisboa e Benfica e os desafios em orientar aproximadamente 40 atletas que compõem as equipas seniores masculinas de andebol e de voleibol.
SportMagazine (SM) – Pode dar-nos uma breve introdução sobre a função que desempenha no Sport Lisboa e Benfica e o projeto que tem desenvolvido?
Solange Fernandes (SF) – Atualmente, eu acompanho duas equipas principalmente (voleibol e andebol, ambos masculinos sénior). Com essas duas equipas estou presente em todos os treinos, faço praticamente todas as viagens com eles. Obviamente, um fim de semana com uma, outra com outra, ou seja, não estou em todas, todas as viagens, mas vou repartindo entre as duas equipas tentando estar sempre presente nas viagens mais importantes e nas internacionais.
No meu dia a dia, eu faço um bocadinho de tudo o que é atribuído à nutrição: pesá-los, dar consultas de nutrição para situações mais específicas e individualizadas, formação à equipa toda – dependendo das necessidades, por exemplo, no ano passado, numa viagem internacional, tive a necessidade de dar alguma formação à equipa toda. Mas depois acabamos por fazer trabalhos individuais com cada um deles dependendo de cada objetivo. Também preparo a suplementação deles, ou seja, atletas que fazem a suplementação e são recuperados por nós de acordo com o tipo de treino que tiveram e dos objetivos que têm. Durante o treino/exercício também estou presente e auxilio em tudo o que for necessário: se algum deles não está a se sentir bem, ou se algum deles precisa de isotónico por estar num treino muito intenso, acabo por dizer que está na altura de pôr agora os hidratos de carbono, ou se estão muito cansados e temos que estar em cima deles para garantir que não fiquem tão fatigados a cada treino.
Também fazemos a avaliação antropométrica, ou seja, avaliamos a composição corporal dos atletas constantemente ao longo da época, de maneira a observar a evolução que eles vão tendo, e otimizando com a equipa técnica o que for necessário. Ou seja, se nós pretendemos que um atleta ganhe massa muscular, vamos avaliando até chegar a um ponto desejado. Ou, por exemplo, quando temos atletas lesionados temos que intervir rapidamente, tanto a fazer um plano alimentar como na suplementação, de maneira a conseguirmos recuperar o atleta mais facilmente. Isso obviamente sempre trabalhando em equipa multidisciplinar, com fisioterapeuta, treinador, equipa técnica, psicologia. Também fazemos as ementas nacionais, internacionais, ou seja, tudo o que eles comem fora são nós que indicamos aos hotéis. Trabalhamos também na parte da hidratação antes e depois dos treinos.
SM – Hoje não existe desporto de alto rendimento sem uma equipa multidisciplinar, com fisiologista, fisioterapeuta, biomecânico e, claro, nutricionista – entre outros profissionais. Como descreveria o papel da nutrição nesse quadro que auxilia no desenvolvimento físico de um atleta de elite?
SF – Eu sou muito suspeita para responder, porque para mim a nutrição é um dos pontos mais importantes no rendimento esportivo, obviamente. Na minha perspetiva é extremamente importante porque podemos estar a treinar muito e não vamos conseguir potenciar ao máximo a performance do atleta. Podemos nunca conseguir que o atleta seja efetivamente o atleta que poderia ser se a nutrição não estiver otimizada. O andebol, por exemplo, é uma modalidade muito gira porque dependendo da posição uns têm que ser muito pesados, outros muito leves, se eu não consigo que o atleta ganhe peso, ele não vai ter o potencial que poderia ter a jogar. Ou seja, vai prejudicar-se a longo prazo. No sentido de potenciar a performance no memento, imagina no exercício: se está muito cansado e não faz hidratos de carbono e não se hidrata bem, por exemplo, isso vai impacto na performance aguda, naquele momento. Conseguimos também ajudar tanto na prevenção da lesão, quanto potenciar a recuperação da lesão. O fisioterapeuta é o principal, mas a nutrição auxilia na rapidez dessa recuperação.

Foto: Isabel Cutileiro / SL Benfica
SM – Trabalha mais especificamente com as equipas seniores masculinas de andebol e de voleibol, existe alguma grande diferença no trabalho desenvolvido entre as duas modalidades, algumas especificidades, ou as bases são mesmo parecidas?
SF – São dois desportos de alta intensidade intermitente, ou seja, a base fisiológica do exercício acaba por ser muito parecida. Depois, obviamente, temos que ter a atenção que uns correm e outros saltam. Isso acaba por, em termos de composição corporal e necessidades de otimização, haver diferenças de um lado para o outro. O andebol, como eu disse, é muito versátil porque as posições dentro do campo são muito diferentes umas das outras, como um guarda-redes para um pivô ou pontas, que são bastante diferentes. No voleibol temos atletas que saltam muito mais, como por exemplo um distribuidor. E depois tem o tipo de salto, que é muito mais baixinho, não é tão alto como um zona 4. Então, temos que ter a atenção aí que cada objetivo individual é diferente e o tempo do jogo de um e do outro também pode ser diferente. Temos que, sim, ter a base idêntica para as duas equipas, mas temos que pensar qual a necessidade de cada desporto e a sua base individual para trabalhá-las. É muito importante percebermos do jogo. Para além de conseguirmos falar melhor com os atletas, explicar porque interesse trabalhar com eles em determinados aspetos ou não. Assim, conseguimos chegar ao atleta mais fácil e ter a confiança dele. É também mais fácil entender o que o treinador quer de um atleta ou de outro percebendo do jogo e porque aquela posição tem que fazer aquele tipo de esforço.
SM – E como a Solange passou a conhecer esses desportos?
SF – Tenho antecedentes desportivos. Pratiquei atletismo de competição até o ano passado e sempre gostei de desporto. Não conhecia nada de andebol e voleibol, conhecia muito pouco quando cheguei ao Benfica. Aliás, quando aqui cheguei, trabalhei com as cinco modalidades de pavilhão (voleibol, andebol, hóquei em patins, futsal e basquetebol). Felizmente, hoje as condições do Benfica estão a melhorar e conseguimos contratar mais nutricionistas e agora tenho duas modalidades. Mas não percebia nada, tive que efetivamente estudar, mas porque eu gosto muito do desporto. Se passa na televisão, gosto de ver. Sempre gostei. E foi por isso que eu quis a nutrição desportiva.
SM – Sobre o diálogo com os treinadores, há uma ponte a se fazer entre atleta-treinador sobre metas a cumprir. Como funciona esse trabalho?
SF – É uma parte fundamental. Um atleta chegou a dizer que queria chegar a um peso, eu falo com o treinador e ele me diz: “não, não. Não quero que ele seja um defensor, mas que seja um atacante, rápido e tem que perder peso”. Então, é muito importante manter esse diálogo com o treinador. Aqui onde trabalho estamos cá o dia inteiro, muitas horas juntos. O balneário do treinador é acessível, podemos discutir os casos. Neste mundo, nas modalidades, esta presença e esta facilidade são muito benéfica para o meu trabalho. Depois, obviamente tenho que fazer um filtro do que o treinador me diz para aquilo que vou passar ao atleta. Temos que ser muito transparentes, pensando no processo, apesar do filtro. Essa passagem e o que se deve fazer precisa ser muito clara e objetiva. Este trabalho conjunto é fundamental e acho que é isso que faz ganhar as taças.
SM – A Nutrição Desportiva atua apenas na preparação do organismo de atletas para provas competitivas ou a especialidade dedica-se também à otimização dos treinos de desportistas e da rotina do atleta? E já agora: essa especialidade ela é restrita apenas para atletas profissionais?
SF – Não. Na nutrição como em todas as áreas há especialidades. Uma pessoa que não tem qualquer patologia e que queria ter uma vida ativa faz todo o sentido que vá ter com um nutricionista especialista em desporto. Aliás, eu antes de vir para o Benfica trabalhei em ginásios, trabalhei no Gabinete de Fisioterapia em que acompanhava uma equipa de atletas recreativos para prepará-los a uma maratona por exemplo. Fomos todos juntos a Maratona de Sevilha, por exemplo. Atletas recreativos, mas que fazia todo o sentido ter o acompanhamento de um nutricionista desportivo.

Foto: Isabel Cutileiro / SL Benfica
SM – Muitas vezes ligamos a nutrição apenas à saúde física do atleta, mas essa especialidade também pode auxiliar no bem-estar mental?
SF – Se fomos falar fisiologicamente, o nosso intestino está muito ligado a tudo o que se passa no nosso cérebro. Se nós conseguirmos comer alimentos que nos ajudem a ter o intestino saudável, isso vai ajudar a potenciar a nossa saúde mental. Trabalho com muitas mulheres também aqui no Benfica, apesar de estar destinada às duas equipas masculinas. Também acompanho algumas atletas femininas individualmente e, sendo esse género mais afetado pela saúde mental e composição corporal, vemos que a nutrição tem um papel espetacular para elas. Tenho um caso que trabalho desde o ano passado e há algumas questões que já haviam passado à patologia e o facto de ela ter conseguido melhorar a composição corporal com o plano alimentar saudável e adequado, em termos de saúde mental facilitou muito o processo para que na psicologia conseguissem trabalhar aspetos que a ajudassem a ter melhores rendimentos desportivos e a estar melhor também fora do Benfica, na sua saúde geral. Portanto, a nutrição está diretamente ligada com a saúde mental.
SM – Da mesma forma que a nutrição tem um papel fundamental na performance desportiva, podendo potenciá-la, um atleta se mal orientado pode nunca atingir o seu máximo. Neste ponto, que orientações a Solange poderia dar para que os profissionais do desporto saibam se estão a ser bem acompanhados?
SF – A maneira mais fácil de todas, e a mais simples, é ir ao site da ordem e ver se o nutricionista está incluído. Isto é a base da base, todos os nutricionistas têm que estar lá inscritos. Depois, a perceção de bom e mau é muito dúbia. Eu já tive atletas e clientes porque eu digo algo de uma maneira diferente do que eles acham que é, podem achar que sou uma má profissional e não sei o que estou a dizer, quando na verdade a base por onde eles se guiaram pode estar errada. Mas acho que é mais fácil caracterizar um bom nutricionista do que propriamente um mau. Um bom profissional é aquele que vai ao encontro das necessidades do atleta, tenta perceber o porquê que o atleta tem aquelas noções de nutrição e porque fazia tudo o que fazia antes e tentar desmistificar, explicar ao máximo porque as coisas são como são. Ou seja, se o atleta sair da nossa consulta a saber exatamente porque vai seguir aqueles cálculos, o porquê de cada suplemento, acho que isso vai determinar que ele está acompanhado por um bom profissional, mesmo que o plano não seja perfeito. Já fiz planos, e já disse aos atletas, que sei que não são os planos perfeitos, mas é o plano perfeito para aquele atleta naquele momento e que, posteriormente, vamos melhorando e otimizando o plano de acordo com a evolução que o atleta vai tendo e de acordo com o que ele consegue fazer. O plano alimentar perfeito é aquele que o atleta consegue aplicar, que pode incluir um copinho de vinho, a bola de berlim de vez em quando, ou seja, coisas que normalmente não se veem como saudáveis.
SM – É cada vez mais emergente a utilização da tecnologia para auxiliar os mais diversos departamentos ligados ao desporto. Com a nutrição não é diferente, certo? Inclusive, há várias aplicações disponíveis para que atletas sigam um plano alimentar sem acompanhamento profissional, tudo automatizado. Como é que a utilização de softwares de nutrição e aplicações no telemóvel por exemplo tem ajudado no acompanhamento aos atletas e que benefícios ou prejuízos essa facilidade pode proporcionar?
SL – Vou dar duas respostas diferentes. Acho que o software pode ser muito interessante e muito maus. Atualmente, não trabalho diretamente com nenhuma aplicação no telemóvel aqui no Benfica porque isso tem que ser uma aplicação feita pela instituição, que ainda está nesse processo. Para além disso, aqui estou diariamente com os atletas, que podem me ver todos os dias e estão à vontade para conversamos a qualquer momento. No entanto, acho que é muito bom, positivo, uma pessoa poder ter o seu plano alimentar no telemóvel, poder enviar mensagens através da aplicação para tirar dúvidas etc. Por outro lado, há softwares que não são tão interessantes porque tentam substituir o nutricionista e não consegue. Independentemente de qualquer coisa, as máquinas ainda não substituíram o ser humano e na nutrição isso acontece igual. A tecnologia consegue dar uma base para trabalhar, uma pessoa chega a uma aplicação, coloca o peso, altura, objetivo, e aquilo calcula uma necessidade energética e uma distribuição de macronutrientes e depois a pessoa é que tem que fazer a contagem.
Não podemos esquecer que a nutrição é muito mais do que apenas a matemática. A nutrição é pensada em alimentos e qual o retorno que esses alimentos vão nos dar. Pensar só em calorias e nos macronutrientes, que são as proteínas, os hidratos de carbono e a gordura. Nós temos as calorias podemos consumir e a partir daí distribuímos por esses três macronutrientes e as aplicações dá a quantidade de macronutrientes que podemos utilizar, mas não nos dão muitas vezes alimentos ricos em outros nutrientes, como os micronutrientes que são as vitaminas e minerais que são fundamentais para ser saudável. Não consegue substituir exatamente a sabedoria do nutricionista.
Por outro lado, há outras máquinas que nos tem ajudado muito, como por exemplo o “Dexter”. É uma máquina que faz a avaliação da composição corporal, como se fosse uma ressonância magnética e ela dá essa composição corporal. Esse é um exemplo de uma contribuição tecnológica que é muito relevante e interessante. Portanto, acho que temos que ter atenção e cuidado às utilizações dos softwares.
SM – Por fim, citaria algum caso de sucesso no seu trabalho do qual se orgulha?
SF – Efetivamente, não posso dizer nomes porque eticamente não é correto. No entanto, vou falar sobre uma pessoa que acompanhei antes de chegar ao Benfica. Era uma atleta recreativa, mas que corria muito e gostava muito de exercícios. Mas tinha um desses problemas de bulimia, uma patologia associada à nutrição. Trabalhei com ela e foi muito bom e lisonjeador o processo com ela. Já se passaram cinco anos desde que acabámos o processo e quem quiser ler houve um livro em que nós participamos, o “Correr sem lesões”, do Ernesto Ferreira, que tem a história dela, um caso de sucesso que a corrida lhe deu coisas muito boas e foi muito influenciado pela nutrição.
Solange de Almeida Fernandes, 31 anos, é nutricionista credenciada, membro efetivo da Ordem dos Nutricionistas (2400N), e exerce a prática de Nutrição há nove, em contexto clínico e especialmente desportivo, com trabalho desenvolvido no Centro de Alto Rendimento de Lisboa e de Rio Maior. Detém uma pós-graduação em Nutrição Desportiva pelo Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, e o título de Certified Sports Nutrition Specialist (WellX Proschool/Nutriscience). Mestre em treino de Alto Rendimento pela Faculdade de Motricidade Humana (FMH). Nos últimos *6 anos exerce funções como Nutricionista no Sport Lisboa e Benfica.

Foto: SL Benfica