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Sergio Lara-Bercial e o treino juvenil: “Nós treinamos pessoas e não jogadores”Exclusivo 

Sergio Lara-Bercial dirigiu os projetos Serial Winning Coaches (SWC) e iCoachKids da Leeds Beckett e do ICCE. Fotos: Divulgação

Docente universitário e investigador, Lara-Bercial tem estado envolvido, nos últimos anos, na sistematização de conhecimento sobre treino de alto rendimento e treino juvenil. A componente relacional e as abordagens equilibradas entre a benevolência determinada e a exigência desportiva oferecem o compromisso do treinador centrado no desenvolvimento do indivíduo. O professor conversou com a SportMagazine.

SportMagazine (SM) – Um dos projetos em que está envolvido, via ICCE, é o Serial Winning Coaches (SWC), que avalia a performance de um grupo restrito de treinadores olímpicos e atletas com um histórico de sucesso prolongado. O professor Sérgio Lara-Bercial fala em ‘benevolência determinada’ e ‘compaixão’ como fatores que identificou nos processos de trabalho desses treinadores. Que pistas concretas oferece o projeto SWC para mudar os paradigmas do treino?

Sergio Lara-Bercial (SL-B) – Do meu ponto de vista é essencial darmos conta de que o mais importante no treino desportivo ao mais alto nível (a qualquer nível!) são as pessoas. Os ‘Serial Winning Coaches’ estão conscientes de que para extrair o melhor de nós mesmos necessitamos de nos sentir queridos e valorizados e parte de algo maior do que nós mesmos. Isto não significa que devamos ser “brandos” com os atletas. Pelo contrário, os SWC são muito exigentes com os atletas que treinam, porém, fazem-no numa perspetiva humana em que o atleta é primeiro encarado como ser humano e só depois como atleta.

SM – Raúl Gonzalez, o histórico avançado do Real Madrid e da seleção nacional espanhola de futebol, agora treinador do Real Castilla, filial do Real, disse ao professor Sergio Lara-Bercial que o treinador “que consegue gerir ou treinar “pessoas” e não “atletas” será sempre bem-sucedido. Também tem recolhido esta experiência na sua carreira de treinador e investigador? Voltamos aqui à imagem da ‘benevolência determinada’ de que fala acerca dos SWC?

SL-B – Desde logo, os jogos e as Ligas são ganhas pelos jogadores, ou seja, são as pessoas que ganham jogos e Ligas e Campeonatos. Nós treinamos pessoas, não jogadores. O jogador que se sente bem como pessoa dá muito mais de si. Equipas com menos talento e qualidade técnico/táctica, porém com maior poder social e emocional, têm mais êxito, e este é mais sustentável do que em equipas em que só há talento.

“Os jogos e as Ligas são ganhas pelos jogadores, ou seja, são as pessoas que ganham jogos e Ligas e campeonatos. Nós treinamos pessoas, não jogadores. O jogador que se sente bem como pessoa dá muito mais de si.”

SM – O Professor Lara-Bercial também participa em outro projeto, o iCoachKids. Como foi desenhado e que adaptações foram sendo necessárias ao longo do tempo?

SL-B – Este é um projeto dedicado a apoiar os treinadores que trabalham com crianças e jovens desportistas, tanto em iniciação como em rendimento. A ideia é que os treinadores e pais entendam que poucas crianças chegam a desportistas profissionais, mas todas têm direito a desfrutar do desporto e a criar e cultivar um hábito saudável e atividade física regular. Não sacrifiquemos 99,9% das crianças em favor de 0,1% que chegam ao desporto de rendimento.

Lara-Bercial nasceu em Madrid, Espanha, jogou basquetebol profissional no Real Canoe NC, Madrid, no Liverpool e Mancheste

SM – O iCoachKids foi desenvolvido no seio da Leeds Beckett University, onde é docente. De que forma é que o projeto tem contribuído para o ensino internacional dos treinadores de jovens? Como se faz essa avaliação?

SL-B – ICK criou uma página web (www.icoachkids.org) com mais de 300 vídeos educativos, artigos e infografias e uma coleção de três cursos em linha gratuitos que cobrem uma grande quantidade e diversidade de conteúdos pedagógicos importantes para os treinadores de crianças. Ao dia de hoje, mais de 4000 treinadores completaram os cursos que referi e o feedback é muito positivo. Além disso, estamos desenvolvendo um estudo de avaliação com um grupo reduzido de treinadores para avaliar o impacto dos cursos no seu trabalho e na sua confiança como treinadores.

SM – O projeto postula 10 “regras de ouro” [ver caixa] para criar uma experiência desportiva positiva para crianças. Uma dessas regras é que o treinador juvenil deve centralizar o seu trabalho na criança. Tudo deve girar em torno desta e não em redor dos adultos. O moderno recrutamento desportivo, com as suas lógicas comerciais, é um entrave a esta pedagogia?

SL-B – Sim, temos um problema que se chama “profissionalização” do desporto juvenil. É impossível saber que menino ou menina vão ser profissionais de qualquer desporto no futuro quando são muito jovens. Ainda assim, estamos empenhados em os selecionar e em tratá-los como se já fossem profissionais. É importante que ofereçamos uma perspetiva diferente aos clubes, treinadores e pais.

SM – Um estudo promovido pela Leeds Beckett e pelo ICCE demonstra que as raparigas, em comparação com os rapazes, têm quatro vezes menos possibilidades de entrar no desporto organizado. O desporto é um domínio masculino. Como é que se combate isto, que, não sendo um problema de treino, no fundo é um reflexo do que se passa em termos de sociedade?

Como treinador ganhou 17 títulos nacionais em Inglaterra, no basquetebol feminino e masculino

SL-B – Combate-se desde cedo. É, como diz, mais um problema social do que somente desportivo, e por isso é um problema complexo para o qual não há nenhuma solução mágica. Devemos investir mais na promoção do desporto feminino, melhorar a qualidade da educação física nas escolas, porque sabemos que em muitos casos, experiências negativas em educação física provocam que, tanto rapazes como raparigas se desinteressem da prática desportiva. Também é necessário desenvolver mais mulheres treinadoras, mudar a forma como os desportos tradicionais são oferecidos às raparigas mais jovens para que sejam mais atrativos. E, claro, ampliar a oferta, pois nem todas querem jogar futebol, jogar basquetebol ou praticar atletismo.

“Temos um problema que se chama “profissionalização” do desporto juvenil. É impossível saber que menino ou menina vai ser profissional de qualquer desporto no futuro, quando são muito jovens. Ainda assim estamos empenhados em os selecionar e em tratá-los como se já fossem profissionais.”

SM – O talento desportivo é um bem escasso. Em determinado nível, é incompatível com o normal percurso escolar. Há jovens que competem no topo muito cedo, o caso do futebol ou da ginástica. Na sua opinião, como podem conciliar-se estas duas dimensões?

SLB – Uma carreira desportiva é compatível com uma carreira académica e uma vida relativamente normal. O facto de haver rapazes e raparigas treinando muitas horas desde muito jovens contribui para acelerar o seu desenvolvimento. No entanto, provavelmente, o produto final seria o mesmo um par de anos mais tarde se treinassem menos. Por outro lado ainda, as escolas devem estar mais preparadas para ajudar jovens com talento que desde tenra idade se dedicam de corpo e alma ao desporto. A solução está entre os dois campos, a educação e o desporto.

SM – Há diferenças essenciais entre gerir emoções de atletas jovens e atletas adultos? Afinal são sempre emoções…

SLB – Bom…um pouco. Tenha em conta que, apesar de as emoções serem as mesmas, um jovem tem menos recursos para identificar essas emoções e menos experiência para as controlar e canalizar de forma positiva. O treinador e os pais necessitam estar atentos para os ajudar e não “deitar mais lenha para o fogo”, como por vezes acontece.

*SERGIO LARA-BERCIAL, 46 anos, nasceu em Madrid, Espanha, jogou basquetebol profissional no Real Canoe NC, Madrid, no Liverpool e Manchester, no Reino Unido. Como treinador ganhou 17 títulos nacionais em Inglaterra, no basquetebol feminino e masculino. A nível internacional, dirigiu a Seleção britânica a vários níveis participando em cinco campeonatos europeus.

Professor e investigador de treino desportivo na Universidade Leeds Beckett e no ICCE (International Council for Coaching Excellence), durante a última década tem-se dedicado à avaliação e desenvolvimento de sistemas de formação de treinadores e estratégias de aprendizagem relacionadas com a formação e treino dos jovens.

Sergio Lara-Bercial dirigiu os projetos Serial Winning Coaches (SWC) e iCoachKids da Leeds Beckett e do ICCE.

Doutorado em Desenvolvimento Positivo Juvenil no desporto, é também consultor da Comissão Europeia, da UEFA, FBA e Nike.

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