Sara Fatia começou a jogar futsal ainda miúda, aos 10 anos, na sua aldeia, em Ferreira Nova, freguesia de Figueira da Foz. Aos 13, já jogava como sénior. Chegou à Seleção Nacional, onde foi vice-campeã do mundo em 2012. Apaixonada pela modalidade, respira e vive o desporto 24 horas. Embora profissional, ainda espera o dia em que vai viver exclusivamente do futsal.
Com o curso C da UEFA, Sara Fatia, 35 anos, atualmente é treinadora do ARCD Venda da Luísa, equipa que há poucos dias conquistou a manutenção na Segunda Divisão nacional – a liderar com alguma distância a segunda fase da competição.
Uma das poucas treinadoras mulheres à frente de uma equipa nos principais escalões nacionais – caso, por exemplo, de Rute Carvalho, única mulher a treinar uma equipa na Primeira Divisão –, Sara Fatia reconhece que existe um desenvolvimento para abertura feminina em funções que vão para além das de ser atleta. Entretanto, nota que ainda há muito para evoluir no futsal feminino.
Com o contrato renovado por mais uma época com o ARCD Venda da Luísa (juntamente com a comissão técnica composta por Nené Ribeiro, Diogo Lopes e Lara Machado), Sara Fatia conversou com a SportMagazine sobre a sua trajetória no futsal, preconceitos que ainda permanecem, o baixo investimento na modalidade e os desafios de viver um momento de transição entre o amadorismo e profissionalismo no futsal de mulheres.
SportMagazine (SM) – Como se deu o seu início no futsal?
Sara Fatia (SF) – Eu desde muito pequena que as minhas brincadeiras eram com a bola. Não havia regras. Eu era a típica maria-rapaz. Então, era passar o tempo sempre com a bola debaixo do braço. E depois isso foi evoluindo. Aos 10 anos, na altura, o meu pai era diretor de futebol de cinco, aqui na minha aldeia onde sou residente [Ferreira Nova, freguesia de Figueira da Foz]. E levava-me sempre com ele. Era uma equipa feminina sénior, já adulta, e depois, aos 13 anos, eu fui fazer um exame. Como eu era de muitos escalões etários abaixo, precisei fazer um exame, uma prova de esforço para provar a minha capacidade física para jogar escalões acima. Passei mesmo no limite, mas desde então comecei a jogar federada com mulheres adultas. Eu pequenina, lá estava eu a começar a jogar precisamente no clube da minha aldeia.
SM – Afirmou que era a “típica maria-rapaz”… Na altura existia algum preconceito em ter uma menina a jogar futsal?
SF – Claro que sim. Havia os dois casos. Havia sempre dois impactos: o primeiro, “ok”, é uma rapariga e o que ela está aqui a fazer?; e o segundo impacto de quando ficavam surpreendidos e admirados. Em termos de preconceito, o que existia era quando não conheciam. Aí eu era a última para ser escolhida nas equipas, ou era a escolhida para ficar na baliza mais tempo. E eu também não me importava, atenção. Por outro lado, nunca senti grandes preconceitos na realidade, porque sempre me conheceram assim. As pessoas que já conviviam eram pessoas próximas a mim, então sempre foi uma coisa normal.

Sara Fatia conquistou diversos títulos enquanto atleta. Foto: Arquivo Pessoal
SM – E então recebia mais apoio…
SF – Sempre mais apoio. Como sou de uma aldeia, era um ringue, tinha uma rede à volta e as pessoas estavam coladas à rede. Ainda era futebol de cinco, ao ar livre, não tinha pavilhão ainda. Era em cimento, o piso era o ringue puro. E havia muito apoio das pessoas porque era uma equipa feminina. Quando eram equipas mistas, na brincadeira, com os colegas, havia também mais raparigas, então acabou por ser sempre um bocadinho mais normal. Para eles, era uma situação normal do dia a dia, já nos conheciam. O público apoiava muito, era uma equipa da terra, as atletas eram também da terra, ou seja, era um momento de grande convívio e erámos o orgulho da terra.
SM – Passados 20 anos, hoje existe vestígio de incómodo com mulheres no futsal ou é totalmente normalizado?
SF – Existe sempre [incómodo], de uma forma ou de outra, mais ou menos camuflado. Há por exemplo, uma ideia errada, preconcebida, de que as treinadoras mulheres estão mais preparadas para lidar com equipas femininas. É uma ideia completamente errada, mas existe esse estereótipo que mulher consegue lidar melhor com mulher. Mas são treinador e atleta, não há género. Outro exemplo que posso dar é o tratamento dos árbitros. O árbitro de Primeira Divisão da equipa feminina não é o mesmo da Primeira Divisão masculina. O tratamento é diferente, a agressividade é diferente, a facilidade como se marcam as faltas é diferente. Deixa-se jogar menos, a forma de trato é muito mais picuinhas por assim dizer. Ainda existe uma forma de tratamento que não é a melhor, quando deveríamos ser tratadas da mesma forma que os homens.
SM – E essa diferenciação restringe-se apenas ao campo de jogo?
SF – Em termos de dirigentes, também existe ainda algum preconceito. Ou acham que não temos capacidade, ou porque acham que estamos mais preparadas para outros tipos de atividades. Mas não há mais o preconceituoso como se falavam antigamente, que “futebol não é para mulher”, ou “lugar de mulher é em casa a lavar roupa”, isso não existe tanto. Continua a existir a ideia pré-definida que a mulher não tem tanta competência ou aptidão de jogar futsal, de treinadora à atleta, dirigente, manager, o que for. Mas a mulher continua a prova uma e outra vez que temos mais do que capacidade para qualquer uma das funções com a mesma qualidade que um homem.
SM – É possível viver futsal em Portugal?
SF – Atualmente, em Portugal, não. Se calhar, se contarmos os dedos de uma mão, contamos as mulheres que são profissionais, entre aspas, de futsal. Praticamente, é um desporto tratado como um hobby em que o nosso maior reembolso são ajudas de custo; ou alimentação. Mas um salário propriamente dito, isso não existe e não acho que nos próximos dez anos isso venha a acontecer. Acho que ainda temos um longo caminho pela frente até à profissionalização. Antes de nós, talvez o futebol feminino consiga o fazer muito mais rapidamente.
SM – Mesmo treinadora é igual, não recebe salário?
SF – É uma ajuda de custo, mesmo sendo treinadora.
SM – E o que faz paralelamente ao futsal? E as atletas, como dividem o tempo?
SF – Eu sou licenciada em economia e estou a trabalhar em contabilidade. E as atletas praticamente a equipa está a estudar, a outra metade trabalha. Uma é professora, outra terminou o curso e vai conseguir fazer algumas coisas na área do ginásio, outra trabalha no call center, outra numa fábrica, é muito variável.
SM – Até que ponto prejudica o teu trabalho?
SF – Imenso. Prejudica a elas, a mim e a nossa estrutura. Quando temos que dividir o nosso corpo e a nossa mente em duas áreas é normal que o potencial de desenvolvimento e o foco não sejam absolutos em cada uma das áreas. Isso exige uma grande força de vontade, empenho e dedicação.
SM – Como avalia a manutenção do Venda da Luísa na Segunda Divisão?
SF – Na verdade, o objetivo da equipa nesta época, sendo a primeira na Segunda Divisão nacional após descer, o objetivo era a manutenção, por muita reformulação e muitas atletas novas. No entanto, sendo um bocadinho mais ambiciosa, o objetivo era a manutenção, mas por via da classificação inicial para o apuramento do campeão.
SM – O que é preciso evoluir no nosso futsal de mulheres?
SF – Vou começar da base. Na minha opinião, será investir em termos de formação. A Federação [Portuguesa de Futebol, que faz a gestão do futsal] já criou este ano o primeiro Campeonato Nacional de Sub-19, e é por aí que tem que começar. É estrutural. Desenvolvermos os clubes e criarmos condições aos clubes, e os próprios clubes têm que preparam e organizarem-se para conseguir criar uma base cada vez mais larga para que cheguemos ao topo muito mais profissionalizadas do que neste momento. Esse é o primeiro passo: investir mais na base, em melhores treinadores, melhores infraestrutura, e depois é uma roda, uma coisa leva a outra e quanto mais tempo, melhor fica.
SM – E, por fim, vamos relembrar algo bom: como foi para si chegar à Seleção?
SF – Na Seleção, estive por um ano, em 2012. Fui vice-campeã mundial com a seleção portuguesa perdendo a final com o Brasil. Foi incrível, o pavilhão com três mil pessoas constantemente a apoiar do primeiro ao último segundo. Chegámos à final com o Brasil, com os jogos transmitidos na televisão nacional, com muito carinho de todos. Foi incrível. Foi o auge da minha carreira. Em 2015, ainda fui campeão nacional.