Aos 33 anos, Rute Carvalho é a única mulher a comandar uma equipa na principal competição do futsal feminino em Portugal nesta época. Aponta a falta de oportunidade – e não de competência – a outras treinadoras como fundamental para a escassez da presença feminina à frente dos clubes da Primeira Divisão. Profissional com o Grau II de certificação, entretanto, ela vê a modalidade em plena evolução – embora encontre pontos a melhorar.
Treinadora do Grupo Desportivo de Chaves, levou o clube pela primeira vez à final da Taça de Portugal, referente à temporada 2019/2020, frente ao Benfica – acabou como vice-campeã. Após uma época que deixou saudades, não conseguiu na temporada atual superar os baixos investimentos e as difíceis condições de trabalho. Uma posição acima da lanterna-vermelha, conheceu a primeira despromoção na elite nacional.
Com experiência como treinadoras de homens, nas categorias de formação e mantendo-se atualizada para seguir a crescer na carreira, Rute Carvalho conversou com a SportMagazine sobre o desenvolvimento do futsal feminino no país, sobre o facto de ter sido a única mulher na Primeira Divisão, os desafios no GD Chaves e revelou que a passagem dela pela equipa de Vila Real terminará ao fim do campeonato.

Rute Carvalho, treinadora do GD Chaves. Foto: GD Chaves
SportMagazine (SM) – É atualmente a única mulher treinadora entre as 14 equipas da da Primeira Divisão Nacional. Porque acha que é não há mais mulheres nessas equipas da elite?
Rute Carvalho (RC) – Não sei muito bem responder a isso porque eu acho que há várias treinadoras com muita qualidade. Posso nomear por exemplo duas com quem eu já partilhei campeonatos numa época em que tínhamos três treinadoras na Primeira Divisão. A Teresa Jordão, que é uma referência na modalidade, entretanto retirou-se por opção do Campeonato Nacional e está agora como coordenadora no Sporting; e a Sofia Ferreira, que já esteve em duas equipas distintas e partilhámos a competição durante duas épocas. Acho que é uma pessoa com muita qualidade também, faz um trabalho muito bem-feito, pelo menos aparentemente a forma como as equipas jogam, eu honestamente gosto muito.
Entretanto, acho que foi fruto das circunstâncias. Ela num primeiro momento o projeto funcionou bastante mal, e depois na segunda equipa desceu de divisão e não renovaram o contrato com ela. Ela está agora na Segunda Divisão nacional [no Maia]. Acho que é uma questão de tempo até voltar a estar lá. Acho estranho.
E depois, neste momento, sou a única mulher e infelizmente na equipa que está em penúltimo lugar. Ou seja, pode até causar algum tipo de preconceito, o facto quase que nos dá razão para não ter mais mulheres. Mas honestamente, não sei responder… Mas não é por falta de qualidade das mulheres. Se calhar por falta de oportunidade. Eu fui uma privilegiada que tive a oportunidade de treinar com uma equipa da Primeira Divisão, mas há muitas, se calhar, melhores que eu que não tiveram essa oportunidade. Acho que não ficamos nada a dever aos homens.
SM – Mas existe preconceito com as mulheres no futsal?
RC – Acho que não. Sinceramente, eu nunca senti isso. Eu sinto preconceito de outros agentes desportivos. Mas nunca senti preconceito relativamente aos meus colegas treinadores. A forma como discutimos as coisas, a forma como sou tratada, nunca senti que me tratam: “ah, não perceber nada disso”, não, de todo. Acho que é mesmo por falta de oportunidade. E se calhar mesmo também há poucas mulheres. Estou a pensar com o grau 3 [da formação de treinador], que é o topo do futsal, eu recordo-me de quatro mulheres com esta capacitação. A seguir com grau dois certamente haverá muitas mais, mas se calhar sempre um bocadinho escondidas em campeonatos distritais.
Eu tive a sorte e o privilégio de muito cedo ter chegado aqui. Acredito que toda a gente me conhece, falem bem ou falem mal, mas falam. E quem está nos distritais, por exemplo, não têm essa visibilidade. Acho que é isso, falta que nos conheçam para nos darem essa oportunidade. Não acho sinceramente que haja discriminação, porque eu própria e outras já tive a oportunidade de treinar e campeonatos masculino como treinadora-adjunta… Mas é a minha opinião, não sei o que outras pensam.
SM – O futsal em Portugal está a evoluir em vários estágios, inclusive no feminino. Atualmente já é possível viver apenas do futsal?
RC – No local onde eu estou, não há recursos. Temos que sempre buscar jogadoras bastante longe, o que implica em bastantes viagens. E muitas não estão dispostas a fazer duas horas de viagem para cada lado apenas com o clube pagando despesas de deslocação. E é isso que acontece. Este ano [o clube] dá uma gratificação, mas é algo simbólico. As minhas atletas, a maior parte delas, têm outro trabalho. São pessoas que se levantam às 6h00 e saem do treino às 22h00, chegam à casa à meia-noite e no dia seguinte vão trabalhar porque o futsal não permite que elas vivam apenas disso. Mas eu conheço casos em clubes que estão a investir fortemente e felizmente começa aparecer gente a viver do futsal. Pelo menos não objetivamente, mas nós sabemos que o fazem. Ganham o suficiente para viver disso. Mas de maneira geral é uma insegurança, não há contratos, não há nada.

Rute Carvalho vai deixar o GD Chaves. Foto: GD Chaves
Essa situação, por exemplo, do Covid-19 deixou-nos numa situação difícil. Eu mesmo como treinadora de futsal profissional treinava dois clubes para viver apenas disso, mas quando veio a pandemia, parou tudo e eu vi-me sem rendimento nenhum porque não tinha segurança absolutamente nenhuma. Até acho que pode haver clubes para uma jogadora ou outra que estão dispostos a pagar 600 euros por mês, mas e a segurança suficiente que dão a essa pessoa para deixar o seu trabalho? Que eu conheça contratos profissionais não existem. Mas também não conheço a realidade de todas. Para treinadores existem, alguns. Eu estou como trabalhadora independente, assino meus recibos, mas em clubes menores há uma gratificação. Isso é muito difícil. A gente quer viver disso, mas é impossível não pensar no futuro. Penso que está a mudar, o Benfica, o Nun’Álvares, o Santa Luzia, que tem duas internacionais brasileiras que estão cá a fazer só isso, aparentemente podem estar a mudar o paradigma.
SM – O que já mudou no futsal ao longo das últimas décadas?
RC – Eu joguei, mas só em campeonatos distritais. Mas como treinadora estou há muito pouco tempo, desde 2015. Em termos de campeonatos nacionais desde 2017, no masculino, e depois passei para o feminino. Comecei a jogar futsal em 2004 e de quando eu jogava, claro que a grande diferença agora que estamos a ver é a formação. Eu nunca tive formação. Comecei com 16 anos e integrei logo equipas sénior. Não existiam campeonatos de formação nem masculino, quanto mais feminino. Agora começa-se a apostar na base da pirâmide e é assim que tem que ser. E depois as mudanças dos quadros competitivos. Ainda estamos um bocadinho atrasados, mas estamos a caminhar para lá.
Na época que eu jogava havia o campeão distrital, mas acabava por ali. O objetivo era jogar uma taça nacional, fazíamos dois a três jogos a nível nacional e estava feito a época. Agora há um campeonato distrital para quem tem outros objetivos, é um ponto de passagem para o que se pretende, que é subir à Segunda Divisão Nacional e depois à Primeira.
SM – E o que acha que pode ser feito para melhorar esse quadro atual?
RC – Precisamos de visibilidade no nosso campeonato. O grande handicap que está acontecer neste momento é não haver um “name sponsor”. Nós temos a Liga Placard masculina, a BPI futebol feminino e temos o campeonato nacional da Primeira Divisão de Futsal Feminino. Isto tira a visibilidade. Neste momento, qualquer jogadora jovem que tenha num raio de quilómetros próximos um clube de futsal ou futebol, vai escolher o futebol. É óbvio. Porque tem visibilidade, tem jogadoras profissionais. Temos uma Liga praticamente profissional e no futsal, não. Esse seria um ponto de partida.
Acho que o futsal começou a ficar para trás. Não conseguiu acompanhar. Faltam títulos? Não, já está posto que temos muita qualidade. Temos bons treinadores cá dentro, lá fora, simplesmente acho que há poucos recursos e os que há agora estão canalizados para onde há dinheiro. Dinheiro infelizmente é o que move.
SM – Sobre o momento atual do Chaves no Nacional, como explicar a posição na classificação?
RC – Para mim, é inexplicável. Honestamente, estão a acontecer coisas que nunca pensei que pudessem acontecer. Nós, o ano passado, fizemos uma época estrondosa, depois da Taça de Portugal, com uma manutenção relativamente tranquila, com um plantel sempre muito curto. Mas neste momento temos seis jogadoras de campo e uma guarda-redes. Ano passado eram sete, mais uma.
SM – E não há nem reserva para a guarda-redes?
RC – Temos outra guarda-redes, que entretanto saiu por motivos profissionais e temos a esperança de que se acontecer alguma coisa que ela possa pelo menos vir jogar. Mas está muito difícil. Só isso aí já pode explicar muita coisa. Mas comparativamente ao ano passado que fizemos uma época incrível, quem vê para além dos resultados, nós jogamos o dobro. Ano passado houve remates que chutávamos para fora e a bola desviava e entrava. Hoje a bola não está a entrar. É inexplicável. Parece que aquele pormenor que está a fazer a diferença. Estamos a passar por coisas este ano que julgava impossíveis.
SM – A equipa teve a despromoção confirmada à Segunda Divisão. Já conhece o futuro na próxima época?
RC – Sigo até ao final da época. A próxima está indefinida, sei apenas que não ficarei aqui. Decisão que já tinha sido tomada e comunicada à direção numa fase precoce da competição, independentemente daquilo que fosse o resultado final.