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Inês Caetano: O título que todos ganham, mas nenhum quer – uma reflexão sobre Cristiano Ronaldo, e não só

Cristiano Ronaldo, avançado português. Foto: FIFA/Twitter

Por Inês Caetano*

Não há ex-médicos, ex-advogados, ex-militares, ex-canalizadores, ex-professores. Mesmo depois da reforma por idade, mesmo quando há uma reconversão de carreira. O “ex” não vira título.

Mas há ex-atletas.

“Ex” é um título que se ganha no desporto, o único que nenhum atleta ambiciona conquistar e com o qual tem maior dificuldade em lidar. É o único título que todo e qualquer atleta sabe que vai “ganhar” no seu percurso desportivo, mais cedo ou mais tarde, independentemente dos resultados desportivos que atinja, do dinheiro que ganhe na sua carreira desportiva, dos fãs que tenha, do número de seguidores nas redes sociais ou das pessoas que o odeiem. Sim, porque os atletas (também) são odiados.

Nos últimos tempos foi notória a falta de empatia pelo Cristiano Ronaldo que acredito ser reflexo de uma sociedade altamente sedentária, que nunca praticou desporto na vida e que tem, por isso, uma enorme dificuldade em colocar-se no lugar de um atleta. Vamos só recordar isto: cerca de 80% da população portuguesa não pratica qualquer actividade física. A maioria das pessoas que está naquela que é considerada a idade activa (que trabalham, que são socialmente activos) não são desportivamente activos.

Esta falta de empatia passa para os comentários nas redes sociais, para os posts (alguns virais) com tantas e tantas teorias e considerações mais, ou menos, fundamentadas. Passa também para a televisão, para a rádio e para todos os programas de opinião onde muitos jornalistas, comentadores que abordam diferentes temáticas e até ex-jogadores de futebol teceram os mais diversos pensamentos. Que sirva de lição a todos os atletas que representam Portugal ao mais alto nível para que não contem com Portugal nos momentos menos bons das suas carreiras desportivas, das suas vidas pessoais (esqueçam isso, para Portugal, vocês são “só” atletas) e, sobretudo, no momento em que tenham de começar a pensar no único título que não lhes escapará – o de “ex”.

Se pensarmos no jornalismo e nos programas de grande alcance, como são vários os que abordam o tema do futebol, considero que perdemos uma enorme oportunidade de fazer serviço público e explicar às pessoas o que é a transição de carreira de atletas. O que é “ganhar” o derradeiro título de “ex”. Alguém com a dimensão do Cristiano Ronaldo permite-nos aprender muitas coisas. O problema é que depende sempre da forma como olhamos para estas pessoas. Em Portugal nós invejamos o sucesso porque apenas se olha para a vitória, para o resultado. Mas há um processo. E quem inveja a vida do Cristiano inveja o dinheiro, inveja as viagens, inveja os bens materiais que ele pode ter e pode proporcionar à sua família. Mas se nós olhássemos mais para o processo e se essas pessoas que invejam o Cristiano tivessem de estar um dia na pele que ele veste, diria que a grande maioria diria que afinal o dinheiro não é tudo e que eventualmente prescindiriam do dinheiro para poder ter uma vida mais tranquila, de menos trabalho, menos ódio, maior privacidade e descontração.

Na Dinamarca ensina-se empatia às crianças nas escolas. Faz parte do currículo educativo daquele país. Em Portugal, aproveitámos o tema do Cristiano para ensinar às crianças que FALHAR e ERRAR é feio. Podíamos ter aproveitado para mostrar a um país que é nos erros e nas adversidades que temos uma oportunidade de crescer. Que por muito que trabalhemos não controlamos tudo à nossa volta e que o importante é focar naquilo que controlamos e trabalhar muito, orientados para essas variáveis que estão ao nosso alcance gerir e controlar. Que errar faz parte do processo e não tem, necessariamente, de nos fazer alterar o objectivo final ao qual nos propusemos inicialmente. Mas que se tivermos de o fazer, isso não é desistir. Pelo contrário, é sermos inteligentes e percebermos que o caminho a seguir teve ajustes e que nós soubemos aproveitar as oportunidades e reajustar os objectivos.

Foto: FIFA/Twitter

Acho assustador quando alguém diz que o Cristiano não vai sofrer quando terminar a carreira só porque ganhou muito dinheiro. Por vezes dito até por ex-jogadores! O Cristiano será, muito provavelmente, um dos atletas (para não dizer O atleta) que mais irá sofrer na transição carreira, porque tudo no CR7 é sobre dimensionado. E a culpa é (também) um pouco de todos nós. Não sei quantas pessoas o Cristiano tem à sua volta que tenham falado desde sempre (não é desde que saiu da Juventus ou desde o Verão ou desde o Mundial – é desde sempre!) sobre a vida depois do desporto. Não sei com quem ele fala sobre isso, que atletas ele escuta, que pessoas ele procura para ser aconselhado sobre isso. Receio que, tal como acontece com muitos outros desportistas, as pessoas à sua volta sejam as primeiras a não aceitar que um dia vai acabar, porque todos à sua volta sabem o quão apaixonado ele é por aquilo que faz. E nós queremos sempre que as “nossas pessoas” estejam felizes e façam aquilo que mais gostam e que as preenche. O problema de ser um atleta profissional, é que essa profissão não é para sempre.

Será que o Cristiano e os atletas no geral, têm consigo e na sua rede de suporte pessoas que lhes colocam as perguntas certas para as respostas difíceis? Será que são essas as pessoas que, aos poucos, vão fazendo com que o título de “ex” se aproxime com menor dificuldade e que, através do apoio e suporte que estão preparados para dar, fazem com que seja um título mais leve de carregar? Tenho dúvidas. A experiência tem-me dito que, inconscientemente, os atletas vão-se rodeando de pessoas que têm um discurso sempre positivo (“vai vai vai”, “tu és o/a maior”, “não podes deixar agora, ainda és jovem”, “ainda tens muito para dar”, “eles não sabem o que perdem” etc.) porque essa motivação externa ajuda muito para aumentar o índice de motivação interna. Falo em motivação propositadamente. Porque ela é como a felicidade – vai e vem, dependendo dos momentos e contextos. O que os atletas têm é compromisso. Por isso treinam e competem, mesmo quando falta a motivação. E para a renovar precisam, por vezes, dos tais discursos positivos externos, quando ela não vem de dentro por uma série de factores que não compete agora abordar.

Ser atleta é como estar casado com o desporto; não é a mesma coisa, mas existem semelhanças. Há uma paixão imensa que faz um atleta largar tudo e ir atrás daquela imensidão de sensações boas que o desporto provoca. E depois, tudo se faz para manter a relação o mais tempo possível porque é o que nos faz feliz. Fazem-se muitas escolhas. São decisões que mudam uma vida. Há situações ao longo da relação que vão diminuindo e aumentando a chama da paixão, mas, enquanto ela existe, o foco é sempre o mesmo. Quase como uma obsessão. Mas é uma relação que já sabemos que terá um fim. Por isso todas as escolhas e decisões têm de ter essa variável em mente. As pessoas com quem um atleta se aconselha têm de estar tão ou mais preparados que o atleta para isso (família, agente, amigos e todos os profissionais com quem o atleta possa trabalhar individualmente para o seu desenvolvimento desportivo e pessoal – personal trainer, nutricionista, fisioterapeuta, psicólogo…).

Há um livro muito interessante escrito por um grande astro do futsal espanhol, Julio Garcia Mera, que tem um título muito sugestivo e que utilizamos muito na abordagem que fazemos com os atletas na Sports Embassy: “Quando o desporto te Abandona”. Quantas vezes perguntamos (treinadores, directores desportivos, amigos, familiares, agentes etc.) aos atletas com quem convivemos e de quem somos próximos se eles se vêm a abandonar o desporto ou se vão esperar serem abandonados pelo desporto? Muitos atletas acham que não têm esse poder, para poderem ser eles a decidir, mas isso é porque não se prepararam. Porque nas decisões que tomaram nunca tiveram a variável do término em conta. Tendencialmente, os atletas retiram essa variável da sua equação e o erro começa aí. E se nós não abordamos o assunto e não informamos não os estamos a preparar para o resto da sua vida. Um atleta morre duas vezes. É isso que ser “ex” significa. Há um período de luto que tem de ser respeitado, pelo atleta e pelas pessoas à sua volta. Mas, diferente do que acontece com a morte que nos leva desta vida, o atleta pode escolher o momento da sua retirada e preparar-se para viver o luto e renascer, qual Fénix.

Para isso, há 7 etapas que na Sports Embassy consideramos essenciais de serem percorridas:

  • Consciencialização
  • Procura de apoio
  • Preparação
  • Novos objectivos
  • Competitividade
  • Busca de sucesso
  • Nova carreira.

Um ex-atleta pode ser o que quiser depois da vida no desporto porque o que o desporto lhe dá é possível de ser transferido para aquilo que o atleta quiser, desde que encontre uma nova paixão, algo a que se possa dedicar com a mesma energia, obsessão e competitividade que direcciona para a sua carreira desportiva.

Em Portugal não existe um plano nacional de acompanhamento, transversal às diferentes modalidades, que envolva a tutela do desporto. Não existe um observatório direccionado para esta temática. Acredito que há uma grande responsabilidade que deve ser dos atletas, mas não podemos apontar-lhes o dedo apenas a eles sabendo que, a partir do momento que mostram algum talento, são orientados para pensar apenas no desporto e é-lhes incutida a cultura do PLANO A – viver para e do desporto única e exclusivamente. E quando algo corre mal no desporto o mundo desaba porque não há um bote onde o atleta se possa sentar e desfrutar de pequenos outros sucessos porque estava totalmente focado em algo deixou de ter – ou por uma lesão, ou por um contracto que correu mal, uma experiência que não resultou como o atleta desejava ou apenas porque chegou o fim da viagem o título final vem aí – é “ex” atleta.

Temos casos de suicídio em Portugal. Temos casos de depressão profunda. Não é só no estrangeiro. É aqui. Ao nosso lado. E fechamos os olhos. E rebaixamos atletas em final de carreira. Apontamos o dedo aos índices de performance física quais entendidos em fisiologia, treino de alto rendimento, medicina desportiva, sem olharmos para os atletas como pessoas em vez de os vermos como super-heróis e máquinas de resultados.

Humanização precisa-se. No desporto, na alta performance, na sociedade. Temos grandes marcas a fazer campanhas de Natal sensibilizando para o tema da saúde mental. Temos empresas a iniciar o processo dos 4 dias de trabalho por semana para um maior equilíbrio da vida profissional e da vida pessoal porque há vida para além do trabalho. Mas também há vida para além do desporto. Para além do Futebol. Não podemos defender uma coisa para as nossas vidas pessoais e sermos incoerentes quando usamos as redes sociais para partilhar mensagens de ódio para com outras pessoas apenas porque são figuras públicas e têm uma actividade profissional sobre a qual TODA a gente se sente no direito de comentar com propriedade.

Há vida para além do Futebol. Haverá uma nova vida para o Cristiano quando ele decidir abandonar o Futebol e espero, muito sinceramente, que seja ele a abandonar o Futebol porque já teve uma pequena amostra de como será se ele deixar que seja uma decisão para o Futebol tomar.

Os atletas são especiais também pelo facto de terem uma segunda vida. E a sociedade portuguesa não está preparada para aproveitar a experiência que estas pessoas trazem da sua primeira vida. Também porque os próprios atletas têm dificuldade em fazer essa preparação e essa transição. Um atleta informado é um atleta preparado. Por isso cabe-nos também a cada um de nós contribuir para disseminar essa informação. Quando um jovem decidir seguir uma carreira de alta competição / profissional, podemos perguntar-lhe desde logo “e depois dessa vida, o que queres ser?” e certamente que será uma pergunta que nunca irá esquecer. Foi o que fizeram ao Magic Johnson na sua primeira época na NBA. E hoje é um empresário de sucesso que conta essa história como um dos grandes motivos para se ter preparado com tempo e ser hoje um ex-atleta bem-sucedido.

*Inês Caetano é fundadora da Sports Embassy, uma organização sem fins lucrativos constituída por (ex) atletas de diferentes modalidades que tem como objectivo valorizar as competências adquiridas no desporto e promover a sua transferência para outras áreas profissionais. Para isso, desenvolveu diversos programas orientados para apoiar atletas e uma Academia que promove actividades de formação nas Empresas através de (ex) atletas.

Inês Caetano, ex-atleta de pentatlo moderno, é a fundadora da Sports Embassy. Foto: Sports Embassy

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