Lenda portuguesa da paracanoagem, Norberto Mourão, transmontano natural de Quintelas, na freguesia de Mondrões, Vila Real, aproxima-se do primeiro desafio da temporada: a Taça do Mundo da Polónia, que decorrerá entre os dias 26 e 29 deste mês. O atleta vem do melhor ano da carreira, quando conquistou uma prata na Taça do Mundo, ouro no Campeonato da Europa, bronze nos Jogos Paralímpicos de Tóquio’2020 e bronze no Campeonato do Mundo. A viver o auge na paracanoagem aos 41 anos, Norberto ainda tem outros sonhos a conquistar. Ele conversou com a SportMagazine sobre sua rotina, o contexto do paradesporto em Portugal e seus próximos objetivos.
SportMagazine (SM) – Nos últimos Jogos Paralímpicos falou-se muito do termo “superação”. É muito comum vê-lo ligado aos atletas paralímpicos. Sobre isso, dizer que alguém é um “exemplo de superação” apenas por causa da deficiência seria reduzir a sua trajetória?
Norberto Mourão (NM) – Isso acaba por acontecer em tudo o que é a realidade da pessoa com deficiência. Todas as pessoas olham para as pessoas com algum tipo de deficiência como sendo heróis, quando somos pessoas normais. Apenas temos que reajustar alguma coisa. No meu caso, não tenho as pernas, mas tenho a cadeira e consigo fazer tudo exatamente como fazia antes. A diferença é que antes usava as pernas e agora não. No desporto acaba por acontecer igual: tratam-nos como heróis, no entanto fazemos aquilo que qualquer atleta sem limitação faz. Esforça-se, empenha-se, damos o máximo e trabalhamos duro para conseguir os resultados. Não somos mais do que ninguém.
SM – Isso traz algum incómodo ao paratleta?
NM – Apenas estou a focar-me naquilo que tenho que fazer, que é seguir no plano de treinos e evoluir ao máximo. Apenas evoluindo é que vou conseguir atingir resultados e ser melhor do que os outros. Não ligo a essas questões de “heróis”. O que tenho que fazer é focar-me no que realmente importa, que é o treino. O resto não pode ser relevante. Cada um diz o que quer.

Norberto Mourão foi bronze em Tóquio 2020. Foto: CPP
SM – O CPP lançou em janeiro passado a campanha com o mote “SuperAção”, que apoia e incentiva o paradesporto. O caminho para encontrar novos “Norbertos” passa por esse tipo de iniciativa?
NM – O objetivo dessa campanha é mesmo conseguir aumentar o leque de paratletas. A maioria dos que lá estão, incluindo eu, que estou com 41 anos, começa a ter uma idade mais avançada e é importante uma renovação. Para isso acontecer é importante que sejamos exemplos. Todos os clubes estão sempre abertos a receber novos atletas, mesmo que não estejam inscritos no Comité Paralímpico.
Acabou por acontecer comigo há 11 anos, quando comecei a treinar na paracanoagem. Fui lá, experimentei e gostei bastante. É importante chegar a mais pessoas, principalmente chegar aos mais novos, que muitas vezes são demasiado protegidos pelos pais, que parecem ter medo que a criança caia… No meu tempo, o que me interessava era brincar. Se caísse, levantava-me. Era dessa forma que aprendíamos. Penso que se protege demais as crianças, principalmente as com algum tipo de deficiência. Mas o desporto melhora muito a saúde, dá-nos muito melhores condições físicas e mais ganhos. Queremos não é só olhar para a elite e criar atletas de topo, porque são poucos, mas é importante tirar as pessoas de casa e esta campanha é muito por causa disso: aumentar o leque de atletas.
SM – Portugal ganhou apenas duas medalhas de bronze nos últimos Jogos Paralímpicos. Desde Pequim 2008 não conquista um ouro. O que Portugal pode fazer para melhorar essa realidade?
NM – É importante uma questão. A maioria dos atletas com que vamos competir – falo pela minha modalidade -, são atletas profissionais. Em Portugal, entre todos os atletas que estão no Comité Paralímpico, eu sou o único que faço isso de maneira profissional. Eu só treino, descanso, alimento-me bem e compito. Não existe nenhum outro atleta aqui com essa possibilidade. É importante que haja uma segurança ao atleta para ele poder seguir no desporto e não andar tão preocupado com as questões do trabalho, ou ir treinar às 6h00 para depois ir trabalhar às 8h00, e no final do dia ainda voltar a treinar. Isso ‘rebenta’ com ele, quer seja a nível físico, quer a nível psicológico. Lá fora isso não acontece. Quase todos os atletas presentes nas grandes competições o fazem de forma profissional. No entanto, quando algum resultado correr mal para mim, eu perco a bolsa e fico sem nada. Por exemplo, este ano tenho o Campeonato do Mundo e o Campeonato Europeu, se não conseguir um bom resultado, perco tudo. Fico sem trabalho, porque não trabalho, estou dedicado 100% à canoagem, e fico sem esse apoio. Seria importante haver uma segurança para fazer com que mais atletas escolhessem esse caminho. Infelizmente, em Portugal é muito difícil que isso aconteça.
SM – Essa bolsa é o Governo que oferece?
NM – É o CPP [Comité Paralímpico de Portugal], através do IPDJ [Instituto Português do Desporto e Juventude]. O Estado dá o apoio. E nós temos uma bolsa condicionada aos resultados. É renovada todos os anos. Conquistei a medalha nos Jogos Paralímpicos e a renovei por seis meses. Como vou ter uma prova até agosto, fiz esse prolongamento até lá. No entanto, se no Campeonato do Mundo nem sequer for à final, ou não fique entre os dez primeiros, ainda tenho a possibilidade do Europeu. Mas se não conseguir fazer uma boa prova, fico sem nada.
SM – E se não ficar entre os dez primeiros perde-se a bolsa…
NM – Para garantir a bolsa de nível três, que é a mais baixa, é necessário ficar entre os dez primeiros. Neste momento, estou no nível um, que é o mais alto, porque sou medalhado nos Jogos Olímpicos, Europeu e Mundial… Mas se eu sair do pódio deixo de receber o nível mais alto. É complicado mantermo-nos no topo e é complicado essa insegurança. Podemos ficar desamparados de uma hora para outra.

Norberto Mourão ao lado de Ivo Quendera. Foto: Norberto Mourão/Instagram
SM – Como se deu o processo de introdução ao desporto?
NM – No meu caso, após o acidente [de mota, em 2009], eu tinha um objetivo, que era fazer tudo o que eu fazia antes. Sabia que iria precisar muita força de braços, não só para andar com a cadeira de rodas, mas também com as canadianas e também com as próteses. Neste sentido, ainda estava nos cuidados intensivos e já estava a pedir à minha mãe para usar halteres, para não perder as forças… Mas claro que o médico não deixou. Logo que tive alta, procurei um desporto. Um rapaz que fazia fisioterapia comigo falou-me de uma atleta portuguesa que fazia paracanoagem, a Carol Ferreira. Entrei em contato com ela. Experimentei, gostei bastante e a partir do dia 16 de janeiro de 2011 comecei a praticar. À medida que fui reduzindo a fisioterapia comecei a aumentar o número de treinos e os resultados aos poucos começaram a aparecer. Fui-me empenhando cada vez mais na paracanoagem, conseguindo chegar a resultados de excelência. Importante dizer que quando eu fui experimentar a canoagem, foi com o meu treinador de sempre, o Ivo Quendera, com quem estou até hoje.
SM – É um “casamento” longo com o Ivo, não é?
NM – Damo-nos bastante bem. Somos como família. Curiosamente, nunca tivemos uma discussão, existe um respeito de parte a parte. Não sou uma pessoa conflituosa e respeito e acredito totalmente no trabalho dele. Dou todo o feedback que ele precisa saber, vou dando a minha opinião e vamos ajustando juntos no trabalho, em conjunto e é isso que faz com que haja essa evolução. Não é estando a discutir um com o outro, assim não vamos a lugar nenhum. Em 11 anos nunca tivemos nenhuma discussão.
SM – Como se dá a rotina de treinos do atleta de alto rendimento?
NM – Numa semana normal, eu saio de minha casa [em Vila Real] na segunda-feira de manhã, às 7h20, e faço 2010 quilómetros até Montemor-o-Velho. Faço um treino na água, entre 6 e 8 quilómetros, depois faço mais um treino de complemento. Na parte da tarde faço um treino que poderá ser na água ou no ginásio e mais um outro treino de complemento, que poderá ser um reforço muscular, fazer alguns quilómetros a andar na cadeira. O tipo de treinos que fazemos muitas vezes será apenas mobilidade, outras vezes reforço muscular com elásticos, também fazer alguns quilómetros na cadeira de rodas e tudo isso acaba por fortalecer a questão das articulações e dá a força que precisamos na água. Em termos de quilómetros, depende sempre de semana para semana ou da altura do ano em que estamos. Mas em geral, 50 a 60 quilómetros por semana. Há alturas em que chegamos a 70, 80 quilómetros por semana. E em semana de competição, 30 a 40 quilómetros: diminui-se a quantidade de quilómetros, mas aumenta-se a intensidade. Nossa prova é dos 200 metros então tem que ser muito rápido.
SM – Qual é o papel do treinador Ivo Quendera no processo de evolução do Norberto na canoagem?
NM – Se não fosse o Ivo a treinar-me eu nunca teria chegado onde cheguei. Não dá para crescer sozinho. Neste processo não estamos só eu e o Ivo. Estão também uma universidade de Lisboa, a FMH [Faculdade de Motricidade Humana], com um grupo de trabalho que nos vai acompanhando, fazendo testes, vai filmando os nossos treinos e mandando um parecer de maneira a ver onde é que temos que apostar mais para se conseguir evoluir e manter uma linha mais favorável para ser o mais rápido possível. E temos também fisioterapeuta da federação, dois psicólogos e só um conjunto de todos, com a opinião de todos e a tentativa de evoluir que é possível crescermos.
SM – É um trabalho então a longo prazo. Existe um trabalho de desenvolvimento do atleta de alto rendimento que requer muitos anos de trabalho…
NM – Exatamente. Como eu disse, iniciei em 2011. Comecei a representar Portugal em 2012, mas os meus melhores resultados no caiaque, onde comecei, foram apenas em 2018. Ou seja, entre 2011 e 2018 eu estava a atingir a minha evolução para chegar nas melhores marcas. E embora já seja campeão europeu, já tenha medalhas em campeonatos do mundo e Jogos Paralímpicos, continuo a procurar o que é melhor. Um paratleta não se faz de um ano para outro. É preciso às vezes, oito, nove, dez anos… Estamos sempre em constante amadurecimento, em constante aprendizagem. O mesmo acontece com atletas consagrados, como o Fernando Pimenta. Se tiverem a possibilidade de acompanharem um treino dele, vão ver que o treinador está ao lado a insistir para que ele melhore a técnica. Um atleta que começou a treinar bastante novo e já está com 33 anos continua o treinador ali a insistir na técnica porque existe margem de evolução. São muitos anos para evoluir e treinar forte, não é de um dia para outro.
SM – E quais os objetivos a curto e longo prazo agora?
NM – Este ano, em 2022, os objetivos são as provas internacionais. Vamos ter uma prova de teste a meio da época mais ou menos, que é uma Taça do Mundo na Polónia, em maio. O objetivo é chegar lá em bom momento e ver como estão meus adversários. Os objetivos para esta época serão, no Campeonato do Mundo e no Campeonato Europeu tentar manter o nível, tentar superar e evoluir e melhorar os meus tempos. Para isso procuramos sempre fazer algo diferente, porque fazendo sempre o mesmo acabamos por ser sempre iguais. Queremos melhorar e por isso, vamos sempre alterando coisas no nosso treino, vendo técnicas novas. É isso que temos estado a fazer. O objetivo a longo prazo, por sua vez, acaba por ser Paris 2024. Temos o objetivo de lá estar. Vai ser complicado. Temos pouco tempo para trabalhar, mas é igual para todos. Até agora, temos conseguido bons resultados para nos manter em bom nível e manter a presença na competição, que é o grande objetivo a longo prazo.
SM – Em alguns momentos da entrevista falou da necessidade de “renovação”. Com 41 anos, o Norberto espera seguir em alta performance até quando?
NM – Cada vez é mais importante treinar bem e sobretudo descansar bem para o corpo recuperar bem. Não recupero da mesma forma que recuperava há dez anos e isso vai se notando. Por isso os treinos têm que ser sempre ajustados tendo em conta as horas de descanso, o cuidado com a alimentação… Agora, estando num desporto que é paralímpico, em que a média de idade é um pouco mais avançada porque a média dos atletas acaba por ter um histórico de acidentes de aviação ou algo do género, trata-se de uma média de idade mais avançada. Eu continuo mais ou menos na média, que é entre os 35 e 42 anos. Espero aguentar-me ainda com bastante força para Paris 2024. Enquanto houver força é para continuar. Temos objetivos a longo prazo e enquanto der para estar no topo, continua-se a treinar forte e com empenho para nos manter lá. Acredito em Paris e vejo-me a lutar para ir a Los Angeles. Vamos ver o que o corpo permite.

Ivo e Norberto têm rotina intensa de treinos. Foto: Quendera/Instagram
