Em outubro de 2020, a equipa do Desportivo da Póvoa passava por um momento conturbado. Na altura, Edgar Silva, treinador da equipa sénior masculina, e Igor Oliveira, coordenador, pediram a demissão. Caiu sobre os ombros de Maria Marques, então adjunta (além de treinadora da equipa feminina) do clube, a missão de levar interinamente – até o final da competição -, a equipa masculina. Uma mulher a comandar homens em plena Primeira Divisão nacional. De acordo com a Federação Portuguesa de Voleibol, um caso inédito. Para Maria Marques, uma novidade que pode ser traduzida também em alerta: afinal, ser a primeira, somente nesta altura, quer muito dizer sobre o desporto em que atua.
Em entrevista à SportMagazine, a treinadora Grau 3 pediu aos clubes e as pessoas que fazem o voleibol português uma “mentalidade aberta”. Na última temporada, todas as equipas da elite nacional foram, novamente, treinadas por homens. Uma nova luz, recorde-se, foi acesa por Mariana Castro, que assumiu os dois últimos jogos do SC Espinho na temporada passada, na Taça Federação, substituindo o treinador principal, Ricardo Lemos, que não pôde estar presente por ter nascido o seu filho. “Há mulheres com muita competência e elas têm que ter as portas abertas para se formarem, para estudarem”, observou Maria Marques, duas vezes eleita Treinadora da formação do Ano, pela Associação de Voleibol de Braga.
Aos 38 anos, a treinadora segue também a carreira como jogadora profissional. Atleta internacional desde as camadas jovens até sénior, venceu dois Campeonatos Nacionais da 1ª Divisão e uma Taça de Portugal. Na última época, foi a líbero do Vitória SC – equipa que deverá seguir na próxima temporada.
Campeã nacional com os cadetes masculinos do Desportivo da Póvoa, Maria Marques afirma que prefere treinar homens. Apesar disso, soma também uma subida de divisão em seniores femininos como treinadora principal no Desportivo da Póvoa. Entretanto, deixou sob suspensa a decisão de seguir ou não a carreira como treinadora quando encerrar a sua carreira como atleta.
Quando dará um ponto final a vida de atleta, Marques ainda não sabe responder. Apenas espera ver o voleibol feminino a viver dias melhores, com mais investimento, profissionalismo e a capacidade de, um dia, ter homens e mulheres em igualdade. “É estrutural… É algo que precisa mudar de cima a baixo”, afirma.
Confira a entrevista que é parte de uma reportagem maior sobre o voleibol feminino que será publicada na próxima edição da nossa revista.
SportMagazine (SM) – É possível uma atleta da Primeira Liga viver apenas do voleibol em Portugal?
Maria Marques (MM) – Hoje em dia, mais do que antigamente, estamos a aproximarmos disso. Há algumas atletas que realmente são profissionais de voleibol. No entanto, não são muitas. São mesmo muito poucas. Temos sempre alguma carreira em paralelo. Na minha situação, sou professora. Temos muitas atletas médicas, nutricionistas, enfermeiras, várias profissões, mas têm que exercer porque realmente o salário do voleibol não nos permite. Permite-nos, se calhar, neste momento, viver com ele, mas para o futuro fica complicado porque realmente é um salário baixo e não podemos fazer grandes investimentos com esse tipo de salário. Podemos viver o dia a dia, mas não fazer investimentos para o futuro. Ainda são poucas as atletas que ganham a vida só com o voleibol, mas estamos a caminhar um bocadinho para o voleibol.
Diria que uns 5% do total são profissionais, mas tirando só as portuguesas, porque há muitas estrangeiras. As portuguesas, não muito mais do que isso… E, se calhar, menos do que isso.
SM – É muito comum nas modalidades femininas como o voleibol, em Portugal, a ocorrência da carreira dual. Até que ponto esse tipo de situação pode ser prejudicial ou benéfico para o desenvolvimento da modalidade?
MM – Claro que prejudica. Eu sou realmente muito boa numa coisa quando consigo focar apenas nela. Como treinadora, eu tenho que estar preocupada se a atleta vai trabalhar naquele dia, se a atleta tem um evento qualquer no fim de semana e não pode ir ao jogo, ou se tem que estudar para um exame e isso mexe tudo com o treino. E numa modalidade coletiva não podemos andar a mudar os horários por causa de uma atleta. Tem o restante da equipa… Numa modalidade individual, é capaz de ser mais fácil, mas na coletiva, se não tivermos essa atleta no treino, é sempre uma peça que falta e o trabalho fica mais dificultado.
E, como atleta, também sinto que trabalhar e ser treinadora, o desgaste do dia a dia reflete-se no treino e no jogo. Portanto, a carreira dual não ajuda a qualidade do treino, a qualidade do jogo, do atleta e do treinador.
SM – No seu caso é uma carreira “trial”. Gostaria que falasse um pouco dessa experiência que teve em ser atleta e treinadora ao mesmo tempo no ano passado.
MM – Já fui treinadora-atleta no Vitória e no Desportivo da Póvoa, é muito difícil. Para mim, é desafiante. Eu gosto disso. Mas é difícil. Ano passado, no Desportivo da Póvoa, e há cerca de cinco anos no Vitória. Não treinava muito, infelizmente, treinava mais as outras colegas. Lá está, chamei colegas e não atletas (risos), mas participava do treino na fase final, entrava na mesma nos exercícios individuais, mas participava mais na parte final. Para além de me preocupar com a minha forma de estar no campo, tinha que me preocupar com as outras todas, e às vezes preocupava-me mais com as outras todas e esquecia-me da minha parte individual.
E como foi a experiência com o masculino, como foi ser uma mulher líder de homens?
MM – Fui campeã de cadetes masculinos, treinadora de mini voleibol masculino, o que me dá mais prazer até. Fui adjunta no sénior masculino do Desportivo da Póvoa e infelizmente nesta altura o treinador não podia estar, foi-se embora naquele caso e tive que assumir a equipa e fui treinadora principal. Pelos vistos fui a primeira, não sei, nunca verifiquei.
Nos miúdos é mais fácil porque eu sou professora e eles já olham para mim como professora e acho que esse respeito já existe naturalmente. E eu tenho alguma facilidade em, mesmo no discurso, de lidar com os rapazes mais novos e para mim é mais fácil. O sénior masculino, acho que o travão é mais meu do que propriamente nos atletas. Eu tive muita sorte nos atletas que apanhei, eles sempre me deixaram muito à vontade, mas às vezes nós pensamos, “posso dizer isto?”, “posso dizer aquilo?”, será que está a me levar a sério, mas pronto, foi gratificante. Não estava à espera que fosse tão fácil assim e por acaso gostei muito.
SM – Sentiu algum preconceito por estar nessa função?
MM – Sentir, não senti. Não posso dizer isso. Foi mal, não tem termos desportivos, mas financeiros. Teve que fechar a equipa. Tínhamos acabado de subir de divisão e estávamos a tentar garantir a manutenção. Provavelmente, não íamos garantir logo na primeira fase, mas tínhamos um grupo de trabalho até muito interessante e dava para fazer isso.
SM – Em relação ao masculino, existe uma diferença grande na modalidade feminina?
MM – Sim, isso ainda se nota um bocadinho. Principalmente, nos clubes chamados grandes do futebol. Os homens ganham bastante mais que as mulheres. Neste momento, se calhar, a distância está mais curta, mas ainda se nota um bocadinho e nota-se também na gestão dos horários de marcação dos jogos, da disponibilidade dos pavilhões, nos materiais que às vezes são disponibilizados para as atletas treinarem do que o que os atletas treinam… Não sei precisar percentagens, mas são muito menos homens a praticar voleibol e há uma dificuldade grande de captar atletas no masculino, portanto pode ser que se invista um bocadinho mais no feminino.
SM – O que pode ser feito para que mais mulheres possam ser treinadoras, não só de homens?
MM – Na primeira liga são todos homens. Provavelmente, eu fui a primeira, tenho quase certeza. Mas não fui a primeira a assumir uma equipa realmente uma época inteira e o trabalho todo que implica uma época inteira. Para isso acontecer vai demorar. Vai demorar. Acho que as federações, ou o próprio IPDJ [Instituto Português do Desporto e Juventude], possam incentivar mais os clubes a abrir as portas às mulheres. Às vezes é mesma a quebra da barreira da mentalidade que existe: de eu entrar no pavilhão e virem a mim me cumprimentar como treinadora principal e não o rapaz que está ao meu lado [como ocorreu], assumirem que sou eu a treinadora…
Ainda há uma barreira psicológica que deve ser quebrada. No feminino, por exemplo, ainda somos todas treinadas por homens. Há mulheres com muita competência e elas têm que ter as portas abertas para se formarem, para estudarem, para poder entrarem em treinos e poderem ganhar confiança e assim começar a assumir mais as equipas. E depois os próprios clubes terem a mentalidade aberta. Muitos dos dirigentes são pais de atletas. Um dirigente que é um pai de um atleta que não percebe nada da modalidade é que acaba por fazer a contratação de um treinador. Vão por currículo, mas o meu currículo se calhar não reflete a minha competência como treinador, competência humana. É estrutural… É algo que precisa mudar de cima a baixo.
SM – O que as atletas podem fazer para mudar essa realidade?
MM – As atletas é melhorar o seu voleibol, serem melhores, mostrarem que trabalhamos muito. Antigamente, tínhamos um treino por dia, quatro vezes por semana. Hoje em dia trabalha-se bidiário, todos os dias da semana, às vezes nem folgas. É continuar a manter isso, trabalhar mais e mostrar que estamos ali. Às vezes, esquecem-se que o masculino já teve alguns resultados a nível internacional, mas as mulheres também conseguem e neste momento temos uma Seleção Nacional a mostrar isso.
SM – Em relação a outros países europeus, onde colocaria Portugal neste momento?
MM – Já estivemos muito mal, mas tem havido algum investimento. O voleibol em Portugal é maioritariamente feminino [55% dos praticantes são mulheres] e já se abre essa mentalidade. Já há uma abertura maior da Federação e dos meios de comunicação social para isso. E temos crescido, temos aberto outras portas. Temos que admitir que a nossa Seleção feminina fez um excelente trabalho na Silver League. E pode ser que seja esse o passo para que já não haja obstáculos. A partir do momento em que houver uma conquista relativamente grande, acho que abre portas para que haja mais investimento nos treinadores e nas atletas para o feminino crescer ainda mais.
SM – Para encerrar, a Maria Marques tem 38 anos. Até quando pretende seguir a carreira como atleta?
MM – A jogar? Não sei. Fisicamente, tenho as minhas limitações até porque a minha formação não tinha a parte física. Quando eu era mais nova, não havia o treino que agora começa a ter. Eu sito que me faz falta. Mas enquanto o físico me permitir e a cabeça estiver a aturar algumas coisas, eu continuo a jogar. Como treinadora, se eu deixar de jogar, vou deixar de treinar também. Acho não quer dizer que depois não possa voltar. Sempre cresci em paralelo com as duas coisas e ir treinar e dar treino e não poder tocar na bola como atleta acho que vai me custar. Entretanto, vou continuar a estudar e trabalhar para ser cada vez melhor treinadora.