Desde setembro de 2019 à frente da Seleção Nacional feminina sub-18, Luís Santos levou em agosto passado a equipa portuguesa à honrosa 13.ª classificação no Campeonato Mundial da categoria, na competição disputada na Macedónia do Norte. Antigo guarda-redes, tornou-se treinador há sensivelmente duas décadas. Acumula passagens por equipas como o FC Gaia, o Artística de Avanca e o GC Santo Tirso – além de ter sido adjunto no FC Porto. Mestre em treino de alto rendimento, é também diretor dos cursos de formação de treinadores Grau 3 da Federação de Andebol de Portugal e professor de Educação Física no Grande Colégio Universal, no Porto. Na luta diária pelo desenvolvimento do andebol nacional, Luís Santos conversou com a SportMagazine sobre temas fundamentais para a ascensão da modalidade, como a formação, o talento, a ética e a latente necessidade de profissionalização da vertente feminina do andebol.
SM – Como se observa que um jovem atleta tem potencial para se tornar um jogador de alto rendimento, que tipo de valores os treinadores precisam desenvolver para ter essa capacidade de observação a ponto de identificar se, de facto, aquele atleta é talentoso?
Luís Santos (LS) – Acho que uma das características fundamentais que o treinador tem que ter, não é bem uma característica dele, mas é o ter experiência no treino. E o que acontece muitas vezes, quem trabalha com talento são treinadores inexperientes. E, na minha opinião, esse é um dos problemas que temos na formação em Portugal. Como os treinadores querem crescer rápido porque financeiramente não compensa e precisam subir os escalões, aqueles treinadores que trabalham permanentemente com o talento são treinadores que não têm experiência e à primeira vista não conseguem ter o “know-hall” para, eventualmente, perceber o que é o talento.
Sabemos que há atletas do ponto de vista da idade biológica que estão bem atrasados em relação a outros e os treinadores na formação, muitas das vezes, o que vão fazer é pegar nos atletas que estão maturados mais cedo, de forma precoce, e vão trabalhar com eles porque são aqueles que dão maior garantia de rendimento, são aqueles que estão mais avançados e teoricamente são mais evoluídos. Mas a verdade é que estão com uma maturação precoce. Fisicamente. E muitas das vezes essa maturação física precoce também está aliada à questão mental, porque se sentem mais fortes, mais altos, e se sentem mais competentes. Isso traduz-se em confiança e faz com que os atletas muitas das vezes sejam os escolhidos. Para mim, um fator chave aqui é efetivamente haver uma aposta plana da qualidade dos treinadores na formação em Portugal, da valorização dos salários dos treinadores e da base para podermos ter treinadores com essa experiência. Perdendo as tais oportunidades ao longo do crescimento dos atletas, a verdade é que se cristalizam algumas formas de jogar e perde-se o que chamamos o potencial do atleta a longo prazo, aonde ele poderia chegar. Nunca sabemos qual é, mas efetivamente sabemos que se perdemos durante o seu crescimento várias oportunidades de desenvolver o talento, ele pode chegar a uma altura onde não expressou ao máximo a sua capacidade.
Este é um fator chave: apostar na formação dos treinadores, ter formação com qualidade. Não sendo possível, muitas vezes essa tarefa tem que recair sobre os coordenadores técnicos. Nós, no andebol, e em particular no feminino, ainda não tem nenhum. Portanto, não tendo nem os treinadores da base com experiência, nem o coordenador técnico que tenha essa experiência, acabamos por estar sempre um pouco entregues à sorte naquele momento, à circunstância de uma atleta “x” cair no sítio certo com alguém que teve uma sensibilidade para ajudá-lo.

Foto: IHF
SM – Qual a importância do treino para o desenvolvimento dos atletas na formação?
LS – Olhando para a questão de como é que podemos olhar para as atletas, no nosso caso em particular na Seleção, normalmente olhamos para uma série de características e numa primeira fase procuramos observar em contexto direto, com o treino dado por nós, o maior número de atletas possíveis. Uma geração como a que temos agora, [nascidas em] 2004/2005, eu dei treino diretamente a 171 atletas desta geração. E é completamente diferente dar o treino à atleta à vê-la treinar ou jogar num determinado jogo. Uma coisa não substitui a outra, mas este fator de dar o treino é determinante – mais do que ver o jogo, dar o treino. Há questões muito particulares que tem a ver com a atitude da atleta perante o treino, a forma como ela é perspicaz, a forma como ela é rapidamente capaz de absorver o que está a ser dito e aplicar ou não, ou receber 30 vezes o mesmo feedback e não está concentrada. Esses aspectos são determinantes e fundamentais. Quando estamos a dar o treino, conseguimos sentir e observar. No jogo, não conseguimos. Lá, ela vai expressar o que faz no treino e, enquanto selecionador, quando ao ver um jogo, não sei se a atleta está a fazer algo porque o treinador quer que ela assim faça. Nunca sabemos qual a margem de liberdade de uma atleta no jogo porque depende do estilo de liderança do seu treinador e da sua visão. E quando treinamos com elas temos margens para trabalhar isso, para explorar coisas desconhecidas, como reagem quando propomos determinadas ações que para nós são determinantes. Um outro fator importante na questão do talento tem a ver com a questão da paixão. Sentir que a jogadora tem paixão e é isto que quer fazer.
SM – É possível chegar a se tornar um atleta sénior sem talento, apenas aprimorando e desenvolvendo uma boa técnica com os treinos?
LS – É claramente possível. Nós temos inúmeros exemplos, em parte porque o nosso processo de formação não é bem estruturado e bem conduzido, mas temos inúmeros exemplos de atletas jovens que são talentos e, por vezes, até brincamos que são atletas que terminaram [a carreira] continuando a ser talentos. São os eternos talentos e que se perderam e o tempo não cria expressão. E os outros, na mesma idade, ou antes, nunca chegaram a ter o talento reconhecido que teriam outros jogadores, mas que com a sua capacidade de trabalho, com o saber reconhecer as suas limitações que é algo importante num atleta, perceber até onde pode chegar, e perceber a sua utilidade dentro de uma equipa, qual o contributo que pode dar, com todas essas capacidades, conseguem fazer uma carreira de alto rendimento e muitas vezes por muitos anos até. É um pouco esta luta que nós temos que ter porque, por vezes, o talento, sentindo que é talento, se não for bem acompanhado, a capacidade de trabalho não se junta. A tendência é facilitar um pouco porque tudo se torna fácil. É um bocadinho como numa escola, se sou muito bom numa disciplina, falo mais um bocadinho, estou distraído para o lado, não implica muita coisa. Mas vou falhando em pequenos detalhes e pormenores e quando chegamos a um nível de alto rendimento para dar um salto para integração no altíssimo nível e manter-se nesse nível esses detalhes vão fazer a diferença e vão faltar.
SM – A parte física é um detalhe fundamental, e a parte psicológica seguramente é igualmente importante. Como um treinador deve trabalhar a sua formação para saber lidar para o desenvolvimento mental do atleta? Principalmente o treinador da formação…
LS – Penso que numa primeira fase é reconhecer que, cada vez mais, o trabalho tem que ser feito por equipas multidisciplinares. Isso é um investimento que tem que ser feito o mais rápido possível porque não é possível um treinador de formação conseguir dar uma todas as respostas àquilo que são as exigências do trabalho na formação para o rendimento. Estamos a falar nesta perspetiva do rendimento, da participação para o rendimento. Portanto, o primeiro passo que o treinador tem que dar é efetivamente rodear-se com pessoas que tragam contributos dessas áreas e tentar quebrar essas barreiras de que o treinador é quem tem que trabalhar e decidir tudo, que sabe de tudo. Penso que nos falta um pouco isso, essa abertura, para reconhecermos que uma pessoa que esteja dedicada exclusivamente numa área terá muito mais tempo para pensar nos detalhes do que um treinador terá porque tem todo um conjunto de coisas por fazer.
Em segundo lugar, naturalmente, para poder fazer isso, é necessário que o treinador invista muito na formação nessas áreas também. Um treinador para trabalhar com uma equipa multidisciplinar também tem que ter um conhecimento alargado, para poder mediar, orientar, para entrar nas linhas de força que toda a gente tem que ter porque pode-se cair na tendência de cada uma das disciplinas ou das pessoas das áreas quererem trabalhar mais porque acham que a sua área é mais importante.
SM – E quando o treinador não tem essa possibilidade de ter uma equipa multidisciplinar, o que pode fazer?
LS – Faz nesta lógica do investimento pessoal. Faz na lógica do aconselhar-se com colegas, levando os casos, muitas vezes em termos particulares, se calhar sem nome, anonimamente, mas conversando com as pessoas das áreas. Portanto, essa partilha, esse perguntar e reconhecer que não temos as respostas para tudo é algo fundamental. Portanto, sabemos que não conseguimos fazer o que é o ideal, mas procuramos sempre melhorar. Também não temos que deixar de fazer as coisas da forma que entendemos que devem ser feitas, procurar alguns recursos. E é isso que estamos a bater um pouco também, eu que estou a colaborar na formação dos treinadores. Queremos que os treinadores trabalhem mais em cooperação, trabalhem mais uns com os outros, que tenham mais abertura para que entrem em contacto com os pais para apoio extra onde alguém de fora pode apoiar em determinadas questões e depois criar esta interligação. Portanto, esses são fatores decisivos naquilo que é a atitude do treinador.
SM – Como treinador da equipa sub-18, o Luís Santos deve ter um diálogo permanente com o José António Silva, o selecionador da equipa sénior. Como funciona essa comunicação entre o responsável pela equipa de formação e o selecionador principal?
LS – Penso que quando estamos a falar de um processo de formação para o rendimento, é decisivo perceber bem aquilo que pretende o treinador sénior, ou aquilo que pretende a estrutura do clube ou seleção. Há clubes que têm a sua forma de entender o jogo e contratam um determinado jogador já com um perfil definido. Existe uma filosofia do clube, coisa que existe pouco em Portugal – aqui existe mais a filosofia do treinador, que é chamado para aquela posição e implementa as suas ideias. E depois vem outro que eventualmente muda um conjunto de coisas e andamos num ciclo difícil de gerir. Mas partindo do pressuposto que não existem essas alterações, acho que por ordem de prioridade, naturalmente, tem que ser perceber o que quer o treinador principal. Neste caso, o José António Silva na Seleção A, o que ele quer para os próximos anos e o que é necessário para Portugal do ponto de vista do rendimento e da equipa sénior. Quais os problemas que nos deparamos, porque que não ainda não conseguimos estar permanentemente nas fases finais? Precisamos procurar dar uma resposta a isso. Esses são os primeiros passos para numa primeira conversa poder articular o trabalho que está para baixo. Depois, naturalmente que percebendo bem o que se pretende, quais as lacunas para os próximos anos, tentar criar linhas de convergência que nos permitam ter o tal enquadramento no sentido de perceber quais são as atletas que podem e vão dar a resposta àquilo que é necessário na Seleção A. Portanto, neste trabalho, acima de estar eu a fazer um trabalho do que eu acho, penso que aqui a grande arte terá que ser abrir um sentido para perceber o que Portugal precisa. E mesmo que em alguns detalhes eu, individualmente, não esteja de acordo, sobrepõem-se aquilo que Portugal precisa e aquilo que é necessário para a Seleção A. É assim que eu vejo a relação, assim que eu vejo o trabalho de cooperação. O meu trabalho com a geração sub-18 é dar uma resposta àquilo que são as necessidades da Seleção A. Existem muitas reuniões de convergência, de ideias que são similares ao que se pretende de maneira geral – e isso para mim é decisivo para não haver um confronto das ideias que são base do modelo, do sistema de desenvolvimento. Não existe confronto, se existisse não era possível trabalhar nessa cooperação.

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SM – Uma outra questão relevante na formação é a questão ética, que é multifatorial, tem várias vertentes. Mas, na formação de atletas, como o treinador colabora na construção dos valores dos atletas?
LS – Eu penso que a questão da ética tem aqui vários ramos. Estamos a investir um pouco com os atletas no sentido da ética relacionada ao que pode ser o doping, das questões relacionadas à viciação de resultados, com as questões que se relacionam também com a própria ética, o fair play dentro do jogo e na forma de jogar. A nível das seleções é fundamental porque as atletas jogam entre elas nos clubes, portanto essa questão de serem adversárias e perceberem que são adversárias, mas precisam estar sempre juntas por serem colegas de profissão e de seleção. É preciso haver um respeito muito grande entre a linha de trabalho dos clubes e a da seleção.
Outra parte fundamental são perceberem que as questões éticas com os treinadores que trabalham. No feminino, em particular, às questões de manipulação, às questões que acontecem do ponto de vista emocional, das atletas estarem muito agarradas a determinados contextos… É curioso, mas temos em Portugal, e se calhar isso mais no feminino – também estive muitos anos no masculino -, mas sinto que os clubes no feminino apoderam-se muito mais das atletas não lhes dando condições nenhuma. Não temos profissionalismo, não temos investimento, mas os clubes apoderam-se das atletas do ponto de vista emocional fazendo uma barra imensa na mudança de uma atleta. Essas questões também têm a ver com a ética por parte dos clubes, que precisam perceber que as atletas são investimentos do clube, mas os clubes têm que dar condições a essas atletas para poderem ser melhores atletas. E elas têm que se respeitar e fazerem-se respeitar também.
SM – Em Portugal, ainda há uma escassez de atletas profissionais no andebol feminino. Como então um treinador consegue motivar uma atleta para uma modalidade em que há pouca profissionalização?
LS – Perspectivar no feminino a profissionalização em Portugal penso que é uma questão que ainda levará alguns anos. É a minha opinião sincera. Aquilo que penso que nós devemos fazer é exigir do ponto de vista formativo, do ponto de vista da Federação em particular, nas gerações onde trabalhamos aqui nesta margem são idades determinantes para que essas atletas tenham o clique de quererem ou não quererem seguir adiante. E temos que fazer esse papel de incentivar. Isso que vai determinar a diferença depois e pode levar a Seleção A a um patamar superior. Não nos vamos enganar e achar que somos capazes de termos uma Seleção A a competir a nível internacional se não tivermos as atletas a ser profissionais, a ter um trabalho dedicada ao que estão a fazer. Isso não é possível. Estamos a competir Davi contra Golias sempre. E a questão é sempre a mesma, somos amplamente críticos até entre nós treinadores, criticamos tudo, opções, vamos discutir se deveria ter sido 6-0, 3-2-1, se há marcação individual, quando isso é completamente irrelevante em relação àquilo que estamos a falar.
O que está por trás disso é a forma como temos ou não temos estruturado isso. Portanto, com atletas que fazem todo o percurso de formação sem perspetiva de carreira, que têm que estar a trabalhar, a pedir aos patrões para gerir uma saída e depois sabem que vão ser penalizadas a nível de trabalho… Eu valorizo imenso as mulheres, porque os rapazes não fazem isso. Chegam a uma determinada altura e ponto, não fazem. E nós temos atletas que fazem isso por anos sem receber um tostão, investem do seu bolso, treinam e treinam cinco, seis, oito vezes por semana porque continuam a acreditar e a paixão pelo jogo é imenso. Portanto, esse caminho a nível de seleções, a Federação tem que manter um trabalho de exigência do ponto de vista daquilo que é o trabalho de seleções, e isso vai naturalmente vai empurrar para que os clubes deem condições para as atletas. Quando elas começarem a ambicionar mais vão olhar para o sítio onde estão e vão pedir mais. Se os clubes não conseguirem dar mais, têm que perceber e têm de abrir mão dessas atletas para que voem e façam mais. E não as prender. Só podemos ter consistência se as atletas puderem treinar com mais qualidade e maior volume de trabalho.
SM – É muito comum homens treinarem mulheres no andebol português. Como formador, há uma procura das mulheres pela profissão de treinadora? E já agora, como treinador homem a treinar mulheres, qual o maior desafio?
LS – Penso que o investimento na carreira de treinadora ainda é uma coisa menor. Ser mulher no desporto é algo que é um desafio porque efetivamente as nossas estruturas e todo o desporto acaba por estar muito voltado para a cultura do homem. Portanto, ser mulher no desporto é sempre um desafio. Acho que aquilo que deve ser feito, naturalmente, é fomentar mais atletas e jovens treinadoras para esta vontade de ir à luta, sabendo sempre que a luta será sempre maior do que se fosse um homem. Não vale a pena esconder, assim será.
Do ponto de vista daquilo que é a liderança com as raparigas e as mulheres com quem eu trabalho, aquilo que eu tento de alguma forma dizer-lhes isto é que elas têm que se fazer respeitar e têm que procurar a sua luta e fazer o seu caminho se é isso que gostam. E fazer se respeitar também é naturalmente com investimento, aproveitando as oportunidades que lhes são dadas e demonstrando tanto alcançar um patamar de profissionalização como qualquer homem. Portanto, o caminho que temos é reconhecer a competência das pessoas independentemente de ser homens ou mulheres.
O desafio de trabalhar com mulheres é constante. Ter que compreender a visão do jogo e da realidade das coisas como uma mulher, que é isso que devo tentar. Não é chegar no feminino vindo do masculino e achar que é tudo igual, não é essa a ideia. É muito diferente. Mas também não é um diferente que as pessoas muitas vezes pintam. Ouvi muitas coisas quando aqui cheguei há três anos. Estou agradavelmente surpreendido pela positiva sobre aquilo que é a postura das mulheres. A maior parte das pessoas que estão há muito tempo no feminino tem que repensar o que estão aqui a fazer e qual a visão das atletas. As atletas trabalham, são dedicadas e se somos exigentes com elas e as respeitarmos, elas vão reconhecer. A falta de exigência não pode existir porque são mulheres. Elas reconhecem. E felizmente começam a ter atletas que vão percebem que quem as exige as respeita. Não é quem facilita porque é mulher.
Luís Filipe Oliveira Santos*, natural de Vila Nova de Gaia, tem 40 anos, e é licenciado em desporto e educação física pela Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade do porto e mestre em treino de alto rendimento – andebol pela mesma faculdade. Tem o Curso de Mastercoach EHF PRO License da Federação de Andebol de Portugal, é formador dos Cursos de Treinadores Grau 3 da FAP, professor de Educação Física e selecionador nacional da equipa feminina sub-18.

Foto: FAP
DP
Novembro 4, 2022 at 10:14 am
Um Homem com uma visão muito à frente no desporto do nosso país. O futuro do Andebol. Parabéns, Mister!