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Ivo Quendera: A cultura desportiva – o segredo do desenvolvimento do atleta a longo prazoExclusivo 

Ivo Quendera, treinador paralímpico de canoagem. Foto: DR

Por Ivo Quendera* (treinador paralímpico de canoagem)

Nos dias de hoje, procuramos cada vez mais produtos biológicos. Produtos ricos em nutrientes de base, quer em quantidade quer em qualidade. Escolhemos alimentos de cultivo e crescimento natural, através de métodos tradicionais e naturais, com o mínimo de aditivos, em processos de longa maturação. O conceito é o mesmo se compararmos com a formação de atletas a longo prazo. Procuramos um desenvolvimento de praticantes, de atletas e de alunos, numa continuidade evolutiva, com visão sustentada a longo prazo e com transferências para a nossa vida quotidiana e social.

Em detrimento da procura de resultados a todo o custo, através de processos de especialização precoce ou de queima de etapas de formação, um treinador deve orientar a sua conduta profissional assente nos principais eixos de desenvolvimento desportivo: a formação cívica e social do praticante; a promoção de hábitos e estilos de vida saudáveis e a partilha de experiências. Falamos, assim, da implementação de uma cultura desportiva que somente através do fenómeno de aculturamento desportivo poderemos massificar, evoluir e assumir o desporto, como um desígnio nacional.

Falamos de um processo e caminho longos, transversais, e no qual todos os agentes desportivos devem atuar em sintonia, reunindo especialistas, experiências, know-how e promovendo uma rede de trabalho colaborativo, envolvendo as áreas do ensino e educação; da saúde e bem-estar; do turismo e natureza; da área social e económica, e claro, os agentes desportivos de base: os praticantes, os treinadores, os clubes e as federações.

Numa época em que a idade de muitos atletas de elite, em várias modalidades, tende a aumentar, assim como a longevidade das suas carreiras, e numa sociedade atualmente influenciada por estes modelos a seguir, é imperativo que os treinadores portugueses apostem num Desenvolvimento do Atleta a Longo Prazo (DALP). Conceito este há muito estabelecido internacionalmente, mas que nas nossas “células” desportivas (clubes, associações e federações) ainda é tendencionalmente convergido num modelo a médio, ou muitas vezes, a curto prazo.

De acordo com o “Desporto em Números – 2020” do Instituto Nacional de Estatística, menos de 35% da população portuguesa, (com 15 e mais anos), pratica alguma atividade desportiva regular. Em números “redondos”, em 10.000.000 habitantes no nosso país, apenas 3.500.000 praticam “desporto”.

Em 2019, destes praticantes, cerca de 688.894 estão integrados no sistema federativo, distribuídos por uma realidade de 11.429 clubes, e o qual dispõe de 70% dos títulos profissionais de desporto emitidos nesse ano, e onde destaca que 7.237 títulos profissionais (cerca de 70%) foram atribuídos a treinadores e os restantes a técnicos de exercício físico e a diretores técnicos. Ou seja, os 30% restantes dispõem de uma matéria-prima bem mais vasta de atuação (cerca de 2.800.000). Torna-se importante que os clubes captem estes cidadãos no seu sistema, para poderem ter auto-sustentabilidade e maior base no processo de formação.

É evidente que os números de praticantes federados são baixos, comparando com a percentagem de títulos profissionais respeitantes a treinadores. Mas porquê? Será que as estruturas de base (os clubes, os dirigentes e os seus treinadores) estão a deixar escapar uma oportunidade de aumento de praticantes por não implementarem um DALP completo na sua longevidade?

Será que a visão do treinador na potencialização dos resultados desportivos nos jovens e jovens adultos continua a perdurar em detrimento de uma formação desportiva longa, contínua e para a vida, como o DALP tem a sua génese?

Não fará mais sentido preocuparmo-nos com o ensino e a transmissão dos hábitos e estilos de vida saudáveis, associados à prática desportiva, e que consequência terão esses benefícios a longo prazo na dinâmica, evolução, intercâmbio e massificação que sonhamos?

Não poderá este processo trazer não só aumento de praticantes e consequentemente o aumento da base da pirâmide, mais competitividade e também aumento dos números no topo desta (alto rendimento)? Vivendo numa realidade com regressão de certos valores sociais, relacionamentos e marcada pelo distanciamento entre os mais jovens e os mais seniores, não fará sentido potencializar essa relação etária através do DALP?

É importante que a mensagem relativa ao DALP e seus benefícios, que as estruturas de formação, gestão e decisão desportiva, transmitam aos seus agentes de terreno, seja compreendida na sua globalidade, nomeadamente a sua longevidade, com o intuito, não só do aumento das percentagens de praticantes desportivos, mas também a sua continuidade, substituindo-se o termo de “atleta” por “praticante” (Desenvolvimento do Praticante Desportivo a Longo Prazo – DPDAP).

É esta a missão do DALP. Dar oportunidade de participação desportiva total, nas várias etapas de crescimento e maturação, tendo em conta os objetivos individuais e o ambiente envolvente, as rotinas da respetiva comunidade/localidade, e em casos de atletas de alto rendimento, a continuidade da prática no pós carreira desportiva.

Não podemos continuar a assistir a especializações precoces (treino intensivo precoce) na procura resultados imediatos e da necessidade de potenciar da performance dos atletas de formação em determinadas modalidades, e que, por falta de maturação psicológica, pressão social ou familiar, acabam por infligir saturação, desinteresse e continuamente servir de catalisador ao abandono precoce da prática desportiva, com graves consequências na idade adulta e fim de vida. À realidade deste abandono, continuamos a ouvir absurdamente profissionais apontarem como causas, a dedicação aos estudos ou entrada no mercado de trabalho, escamoteando a especialização precoce, em detrimento do Desporto para Todos.

Aqui existe um importante papel social do sistema autárquico e educativo, que, que deve focar-se na formação cívica dos mais jovens, nomeadamente do gosto pela atividade física desportiva, pelos hábitos e estilos de vida saudáveis, pela dinâmica social e relacional, pelo desenvolvimento das competências motoras de base, pela oportunidade de uma maior experienciação desportiva, e, em última instância, como passagem de testemunho, fomentar relações de continuidade da prática desportiva no sistema federativo (seja através das aulas de educação física, desporto escolar, ou dos centros de formação desportiva).

Deixemos de idealizar uma pirâmide de evolução desportiva, focada apenas no “atleta” e passar a adaptar um modelo de retângulo, mais inclusivo e com objetivos de continuidade e longevidade do praticante no sistema, independentemente do nível de prática ou objetivos pessoais, com uma base sólida e comunitária, sustentada por pilares de ética e desenvolvimento psicossocial dos cidadãos, convergindo assim no atual conceito de Participação Total no Desporto!

*IVO QUENDERA, 41 anos, é o primeiro treinador português de canoagem com atletas qualificados para os Jogos Paralímpicos. É atualmente Técnico Nacional de Paracanoagem e treinador do medalhado paralímpico Norberto Mourão (bronze nos Jogos de Tóquio). Antigo canoísta, licenciou-se em Ciências do Desporto na Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa, é mestre em Desporto pela Escola Superior de Desporto de Rio Maior (ESDRM).

** Este artigo é parte do dossier sobre a “preparação do atleta a longo prazo”, abordagem realizada pela SM, na edição n.º 1 da nossa revista.  O material completo está disponível para os assinantes. Se ainda não é, saiba como fazer para integrar o nosso grupo de leitores e colaborar com o nosso projeto.

Ivo Quendera é o treinador do paralímpico Norberto Mourão. Foto: DR

1 Comentário

1 Comentário

  1. Jaime

    Junho 21, 2022 at 5:21 pm

    Parabéns Ivo, está muito boa a publicação.
    Jaime

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