*por João Paulo Almeida, Diretor-geral do Comité Olímpico de Portugal
A globalização e crescente mediatização do fenómeno desportivo têm tornado os grandes eventos desportivos – com os Jogos Olímpicos à cabeça – palcos privilegiados para expor diante de audiências de milhões de pessoas momentos de excelência que marcam o nosso imaginário, mas também tragédias e escândalos que assolam inapelavelmente a reputação e os valores éticos do desporto, expondo vulnerabilidades na salvaguarda da integridade das organizações que o governam, das competições que organizam, e bem assim dos atletas e demais agentes desportivos.
À medida que a sua reputação e credibilidade é posta em causa, nomeadamente pela enorme exposição e escrutínio público em grandes eventos, ressaltam duas tendências a ter em conta no combate pela integridade do desporto. A primeira, refere-se à multiplicidade de comportamentos que afetam a verdade desportiva e os princípios e valores fundamentais do desporto, pois longe vão os tempos em que a dopagem, a violência e a corrupção resumiam as frentes de batalha da integridade. A manipulação de competições desportivas, o bullying, o assédio e abuso sexual, o abuso psicológico e sobre treino, os direitos das comunidades LGBTIQ+, a exploração de menores ou os direitos humanos são, como se cons- tata dos casos recentes trazidos à luz da ribalta olímpica por Simon Biles, Kamila Valieva, Naomi Osaka, Caster Semenya, Laurel Hubbard, Mo Farah (isto é, Hussein Abdi Kahin) ou Nikola Karabatic , entre tantos outros, tópicos que alargam, complexificam e aprofundam estas frentes de batalha.
Esta tendência é acompanhada por um crescente envolvimento de entidades externas ao universo des- portivo, explorando vulnerabilidades para prosperarem e penetrarem nas raízes das estruturas desportivas, comprometendo invariavelmente a autonomia das suas organizações, capturando as suas esferas de decisão e instalando um clima de promiscuidade pouco recomendável. A tempestade perfeita para um jogo de baixo risco e elevados proveitos.
Com efeito, também as práticas que comprometem a ética desportiva se globalizaram, pois, ao contrário do passado, não são perpetradas apenas por agentes desportivos com propósitos iminentemente desportivos, mas envolvem outros intervenientes que instrumenta- lizam a integridade do desporto para os mais diversos interesses políticos, económicos e criminais.
Dos pequenos aos grandes interesses. Da escala lo- cal, à nacional e internacional. Do clube de base às fede- rações internacionais. Dos países desportivamente mais desenvolvidos aos mais periféricos. Do desporto de base formativa ao desporto profissional e de alto rendi- mento. Da pequena à grande e complexa criminalidade organizada transnacional.
Torna-se, por isso, absolutamente premente transformar as mensagens de Tolerância Zero, Start to Talk e abordagem centrada no atleta em ações concretas com métricas tangíveis, com efetiva tolerância zero aos discursos inconsequentes da Tolerância Zero, exigindo medidas concretas e a aplicação da lei perante quem prevarica, por forma a garantir que o desporto não opera à margem do estado de direito e de princípios elementares de boa governação.
A emergência de movimentos como The Army of Survivors ou Global Athletes são, entre vários outros, manifestações impressivas de uma página que está a virar onde um número crescente de atletas e outros protagonistas não se conformam com um diluir de responsabilidades perante a erupção de violações graves à sua integridade física e moral como ocorre, por exemplo, no flagelo da manipulação de competições desportivas, onde se teima em ignorar um quadro de competências claramente estabelecido numa Convenção Internacional ratificada pelo Estado para organismos desportivos, governos, autoridades públicas, operadores de apostas e órgãos de polícia criminal.
Por mais que as evidências demonstrem as profundas fragilidades que tornam o desporto apetecível e amplamente permeável à infiltração deste tipo de práticas, como atesta o barómetro de corrupção desportiva da INTERPOL, persistem bolsas de resistência em trilhar um caminho onde a ética e a integridade se projetem das palavras para ações concretas, devidamente escrutina- das e implementadas.
Caso se pretenda alterar estas circunstâncias, a integridade e a ética não podem continuar a ser palavras de ocasião, cobertas por campanhas de sensibilização e programas de promoção de boas práticas que apenas maquilham um problema que se enraíza nos interstícios do desporto, se não forem acompanhadas pela intransigência e eficácia no cumprimento e aplicação de pesadas sanções desportivas, financeiras, disciplinares e criminais.
Se não se traduzirem num compromisso claro das federações desportivas e do Estado em ações específicas, e obrigatórias, na qualificação dos seus agentes desportivos e regulação das suas competições, condicionando o financiamento público a tal desiderato, como, aliás, a lei já determina. Se a formação de treinadores, na sua componente geral, desde o grau I, não tiver como conteúdos obrigatórios a capacitação em vários domínios da integridade, dotando os técnicos de ferramentas prá- ticas para reconhecerem e atuarem perante estes casos, nomeadamente junto de crianças e jovens, e bem assim para a renovação da cédula de treinador.
Se atletas e técnicos forem meros recipientes de de- cisões de terceiros em vez de parte ativa na tomada de decisões relativas a aspetos cruciais da sua carreira desportiva. Se a qualificação de profissionais certificados e processos de governação em matéria de prevenção da integridade e proteção de atletas não se constituírem como requisitos indispensáveis à certificação de clubes e demais organizações desportivas, para efeitos de filiação e participação em competições desportivas. Se não houver canais de denúncia protegidos e consequentes mecanismos ágeis para célere intervenção das autoridades competentes tendo em vista garantir um ambiente seguro e protegido para os praticantes, erradicando um sentimento de impunidade e denegação de justiça às vítimas, amiúde tolerante com a negligência no acompanhamento destes casos.
A cada denúncia por investigar e a cada titubear na aplicação da lei e dos regulamentos, as autoridades públicas, as entidades desportivas e órgãos de polícia criminal estão a passar um cartão branco para se perder esta batalha, contribuindo para transformar os grandes eventos em palcos de descrença e falência dos valores e princípios éticos do desporto.
*JOÃO PAULO ALMEIDA, Diretor-geral no Comité Olímpico de Portugal desde maio de 2013, João Paulo Almeida é especialista em manipulação de competições desportivas, jogo responsável, regulamentação de jogos de azar. Licenciado em Gestão do Desporto pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa, em 1999, graduação à qual juntou em 2006 a de Sociologia, pelo ISCTE, e em 2009 o mestrado em Administração e Políticas Públicas no mesmo estabelecimento de ensino, tem entre as suas áreas de interesse a participação em projetos que visam integridade das apostas desportivas e boa governação. Integra grupos de trabalho e comissões diretivas presididas ou coordenadas pelo Comité Olímpico Internacional, International Centre for Sport Security, Sports Integrity and Global Alliance, Conselho da Europa, Comissão Europeia, European Gambling and Betting Association e UNODC. Antes de chegar ao COP, João Paulo Almeida foi, entre abril e dezembro de 1998, técnico na Direção de Serviços de Formação, no Centro de Estudos e Formação Desportiva da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto. Entre fevereiro de 2000 e abril de 2013 desempenhou funções de técnico superior de desporto do Departamento de Educação e Cultura e Diretor de instalações desportivas na Câmara Municipal da Amadora.