Por Paulo Cunha (Professor Auxiliar na Faculdade de Educação Física e Desporto – U. Lusófona), Francisco Frederico (Treinador de Natação na Alemanha) e Vilson da Silva (Treinador de Futebol em Portugal e no Brasil)
O processo de identificação e seleção de jovens talentos, há muito vem sendo discutido universalmente no seio dos treinadores de todas as modalidades. Muitos dos modelos operacionalizados visam a deteção de verdadeiros talentos, tendo em perspetiva o Alto Rendimento Desportivo. Do ponto de vista pedagógico, essa perspetiva é altamente questionável, uma vez que é desejável que todos os jovens tenham direito a uma prática desportiva efetiva e continuada, organizada e efetivada em função das suas capacidades e objetivos.
A seleção de jovens para a prática de uma qualquer modalidade desportiva não se deverá centrar-se unicamente, nos reconhecidos, ou aparentemente, talentosos, uma vez que esses se traduzirão numa ínfima minoria. Por outro lado, são múltiplos os casos de jovens atletas, precocemente preteridos, cuja vontade de experimentar alternativas, a motivação e a capacidade de superação permitiram que atingissem níveis de prestação muito superiores a outros que, embora inicialmente selecionados e recrutados, a médio e longo prazo não concretizaram objetivos previstos pelos treinadores.
Segundo Abbott e Collins (2002), nações desportivas de sucesso como a Austrália, a Alemanha e a ex-União Soviética selecionavam jovens talentosos com base em referências físicas e de desempenho, que se acreditava estarem correlacionadas com a excelência no desporto. Segundo estes autores, atletas potencialmente talentosos foram e são, muitas vezes, preteridos devido a um conceito inadequado de talento.
A maturação biológica identificará o momento em que se atinge a maturidade, podendo ser classificada como maturação precoce ou maturação tardia. Na primeira, a maturidade é alcançada antes do tempo cronológico previsto, na segunda verifica-se a situação inversa. Existem diferentes metodologias para a sua identificação, como a idade da menarca, o pico de crescimento em altura ou a identificação de características sexuais secundárias (Malina et al., 2009; Smart et al., 2012). O crescimento e a maturação biológica influenciam a seleção de atletas jovens desenvolvidos precocemente, os quais são favorecidos em relação aos que possuem desenvolvimento tardio, pois são dotados de maiores dimensões corporais, sendo mais velozes e potentes do que estes últimos (Van Der Berg et al., 2019).
A este respeito importará também abordar o Efeito da Idade Relativa (EIR), o qual identifica as vantagens da idade de jovens atletas em relação a outros dentro de uma determinada faixa etária (Dixon et al., 2011). Para os mesmos autores – embora destinadas a promover a equidade por meio da manutenção de semelhanças gerais de desenvolvimento (p.e., cognitivas, fisiológicas) -, as estratégias de agrupamento por idade, comuns à maioria das modalidades, tiveram a consequência de beneficiar as crianças mais velhas dentro do mesmo escalão, na medida em que este processo de agrupamento tem apenas em consideração a idade cronológica, um indicador pouco preciso sobre o estádio de desenvolvimento biológico (Anderson & Ward, 2002). De acordo com estes autores, indivíduos com idade cronológica semelhante podem variar significativamente no seu desenvolvimento maturacional e, consequentemente, apresentar grandes diferenças de dimensão, força, potência e velocidade que poderão traduzir-se numa situação competitiva algo injusta. Esta opinião é partilhada por Kunrath et al. (2016) para quem as organizações desportivas, que dividem os escalões de competição por ano de nascimento, permitem que jogadores com diferentes estágios maturacionais compitam entre si, beneficiando os mais desenvolvidos em aspetos antropométricos, capacidades condicionais, maturidade cognitiva e capacidade psicológica.
Carli et al. (2009), e Musch e Grondin (2001) identificaram que os atletas nascidos nos primeiros meses de um ano civil, geralmente têm a vantagem de serem maiores, mais fortes e mais rápidos em comparação com aqueles que nasceram nos últimos meses do mesmo ano. Fumarco e Rossi (2018) referem que as crianças nascidas em janeiro são cerca de 17% mais maduras do que as crianças nascidas em dezembro do mesmo ano civil. Estes estudiosos referem que essa grande diferença no nível de maturação se traduz na concretização do EIR a nível desportivo.
Muller et al. (2017), afirmam que atletas mais jovens, em estádio de amadurecimento precoce, têm mais hipóteses numa seleção de talentos. Defendem ainda a necessidade de serem considerados a idade relativa e o estádio de maturidade biológica durante a seleção de talentos nas modalidades de inverno, de modo a evitar injustiças e discriminações em relação a atletas mais jovens ou menos maduros.
O Efeito da Idade Relativa em várias modalidades
O EIR tem vindo a ser objeto de estudo em muitas modalidades, com resultados diferenciados, alguns dos quais importará referir. Num estudo de Vegara-Ferri et al. (2019), foi analisado o EIR em jogadores de basquetebol de elite mundial, em três competições: Campeonato do Mundo de sub-17 de 2016, Mundial de sub-19 de 2015 e Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro-2016, com uma amostra de 1044 indivíduos de ambos os sexos. Foram consideradas as seguintes variáveis: data de nascimento, sexo, altura e posto específico. As principais conclusões foram as seguintes:
- nos escalões sub-17 e sub-19 verificou-se uma presença significativa de jogadores nascidos nos primeiros meses do ano, tanto no masculino como no feminino.
- nas equipas que obtiveram melhores resultados, prevaleceram os atletas nascidos nos primeiros meses do ano, contudo, sem diferenças estatísticas em relação aos demais atletas.
Salles et al. (2019), estudaram 57 atletas adolescentes do basquetebol, comparando a idade cronológica dos atletas (entre 9.5 e 15.5 anos) e o seu nível maturacional para identificar a influência desses fatores na eficácia coletiva. Foi utilizada a versão brasileira validada por Paes (2014) do questionário inglês de eficácia coletiva para desportos de Short et al. (2005). Os resultados apontaram para uma influência residual do estágio maturacional sobre a eficácia coletiva, não se verificando relação entre idade cronológica e os percentuais da eficácia coletiva. Concluíram que não se verificou uma influência da idade relativa e da maturação na eficácia coletiva.
Redondo et al. (2019) efetuaram um estudo com lançadores espanhóis, de ambos os sexos, na faixa etária dos 14 aos 18 anos. Globalmente, verificou-se o EIR face à elevada percentagem de atletas nascidos no primeiro quartil (janeiro a março) do ano. Nas disciplinas de lançamento de peso, disco e martelo no escalão de sub-14, verificou-se um valor mais significativo do EIR do que no escalão de sub-18. Neste escalão mais velho, o EIR só se verificou (e em ambos os sexos) nos lançadores de martelo.
Um número considerável de estudos, em várias modalidades, aponta para o predomínio dos atletas nascidos no primeiro quartil de cada ano.
Num estudo relativo à elite europeia de futebol de sub-16 e sub-18, Helsen et al. (2005) verificaram uma diferença considerável entre os nascidos no primeiro e o quarto trimestre (outubro a dezembro), respetivamente, 43.4% e 9.3%. O mesmo foi verificado por Ramos e Massuça (2015) no basquetebol, nos Campeonatos da Europa de sub-16 em 2013, numa amostra de 192 jogadores, com os seguintes resultados: 1.º quartil foi de 35%, 2.º (abril a junho) 26%, 3.º (julho a setembro) 21% e 4.º de 18%.
Também no críquete australiano, Connor et al. (2018) verificaram uma representação muito mais elevada de jogadoras nascidas no pimeiro trimestre quando comparado com o quarto, respetivamente, nos sub-15 (37.7% e 16.0%) e nos sub-18 (37.0% e 18.7%).
Lupo et al. (2019) realizaram um estudo na Itália, com uma amostra de 3319 seniores de elite no basquetebol, râguebi, futebol, voleibol e pólo-aquático. O EIR apenas foi verificado no futebol, com uma prevalência de jogadores nascidos nos primeiros meses do ano. Para estes autores, haverá a necessidade de as instâncias responsáveis pelo futebol em Itália darem mais oportunidades aos talentos nascidos na segunda parte do ano, promovendo a igualdade de oportunidades de inserção de jogadores jovens nas equipas seniores.
Também Van Der Berg et al. (2019) consideram ser importante que os treinadores de futebol não excluam jovens com desenvolvimento tardio dos programas de desenvolvimento de talentos, uma vez que estes têm apresentado mais-valias dos factores psicológicos associados ao processo de treino e competição – como fator equilibrador das desvantagens físicas relativamente aos mais precoces – que se refletiram numa capacidade de rendimento aproximada em situação de jogo.
Nagy et al. (2018) verificaram a existência de diferenças significativas no EIR da seleção nacional de natação pura húngara por grupos de idade. As disparidades foram encontradas em ambos os sexos (p≤0.001) em relação ao quartil de nascimento – primeiro comparativamente com o quarto.
Ainda na natação pura, Romaneiro et al. (2009), numa análise ao EIR nos Jogos Olímpicos de Pequim-2008, encontraram diferenças por quartil (p ≤0.05) na globalidade dos participantes. Para a população total deste estudo (n=18132) existiram diferenças significativas na distribuição das datas de nascimento por quartil, ao longo dos trimestres do ano (p≤0.01), onde o primeiro e segundo quartis revelaram percentuais superiores. Por sua vez, no estudo de Ferreira et al. (2017), relativamente aos Jogos Olímpicos de Londres-2012, também em natação pura, o EIR foi observado apenas no continente asiático (p=0.02), com maior representação dos atletas nascidos no primeiro e segundo quartis em comparação ao quarto.
Já Frederico (2021) numa análise a quatro edições da principal competição europeia júnior de natação pura (2015, 2017, 2018, 2019) verificou o EIR, apenas quando considerou a totalidade da amostra nas eliminatórias de masculinos e femininos (p=0.018), com os seguintes números de inscrição por quartil – 2045 no primeiro, 1814 no segundo, 2189 no terceiro e 1088 no quarto -, não se verificando diferenças quando foi analisado cada sexo separadamente. Esta discrepância poderá ser explicada pelo facto de esta modalidade ter na componente técnica um elemento determinante para a prestação (Cunha, 2017).
Num estudo de Faber et al. (2019) realizado no ténis de mesa em contexto mundial, europeu e nacional (França e Países Baixos) para os escalões etários sub-15, sub18, sub-21 e absoluto, em ambos os sexos, o EIR foi residual. Como possível explicação para estes resultados, o autor apresenta o facto de a modalidade lemen componente técnica o lement determinante para a prestação, contrariamente a outros desportos onde a componente física parece ser predominante para o sucesso.
Importância da Idade Biológica / Esquelética
Uma análise global parece indiciar a existência do EIR na grande maioria das modalidades, particularmente naquelas em que a componente física predomina relativamente à técnica. Este facto deverá ser do conhecimento dos responsáveis pela seleção dos jovens talentos, de modo a inverter uma lógica que poderá ser perniciosa para os jovens praticantes nascidos nos terceiro e quarto quartis do ano.
Face ao exposto, e em termos ideais, seria muito mais lógico que o agrupamento por escalões tivesse em consideração a Idade Biológica (IB) e não a referida Idade Cronológica (IC). Contudo, a determinação da IB não é de fácil operacionalização. Malina et al. (2004) referem que a Idade Esquelética (IE) é considerada o melhor indicador da IB. Os mesmos autores sugerem que a IE será um melhor indicador para agrupar jovens com graus de desenvolvimento maturacional semelhantes comparativamente com a IC. Contudo, o método clássico de avaliação da IE, que se baseia na comparação das características ósseas reais e dos indicadores de maturação das radiografias de mão e punho, utilizando imagens de referência do modelo de Greulich e Pyle de 1959, defendido por Tanner et al. (2001), não é de fácil aplicação para a comunidade desportiva em geral.
No entanto, existem outros métodos para determinação da IB: as características sexuais secundárias, o pico de crescimento em altura ou a menarca (Malina et al., 2015). Deste modo, os treinadores dos escalões jovens dispõem de instrumentos, mais ou menos acessíveis, para determinação da idade biológica. A questão que se coloca é se os aplicam de modo sistemático? Porque a IB e o EIR se refletem com maior importância na competição, seria importante encontrar alternativas aos quadros competitivos atuais.
Nesse sentido, apresentamos várias propostas de Morris e Nevil (2006):
• Datas de corte rotativas – A rotação das datas de corte significa que os anos de seleção devem basear-se em períodos de 9 meses, de modo que, em cada ano, o grupo específico de atletas beneficiados pela idade seja diferente;
• Faixas etárias reduzidas – Grupos de faixa etária baseados em faixas etárias menores (6 meses) podem atenuar alguns dos efeitos da idade relativa. Apesar do EIR não poder ser eliminado, pelo menos o efeito desse fenómeno seria muito menos evidente;
• Estabelecer escalões Atual e Potencial – A criação de dois escalões em cada agrupamento etário em função de critérios objetivos;
• Idade na data da competição – A idade na data da competição pode ser aplicada em modalidades onde os atletas competem individualmente;
• Modelos de competições modificados – substituir a existência de uma única competição nacional por época, numa série de competições importantes dispersas criteriosamente ao longo da época desportiva, em que a elegibilidade para participação depende da idade à data da competição, tanto as modalidades individuais como as coletivas podem adotar essa abordagem.
De acordo com Figueiredo et al. (2009), o sucesso no desporto infantojuvenil pode levar os jovens maturacionalmente mais precoces a serem considerados como mais dotados por treinadores e colegas. Segundo os mesmos autores, esses fatores podem contribuir para a sobrevalorização do ego em atletas de maturação precoce – uma vez afetado, face à mitigação do efeito da IB, leva frequentemente ao abandono precoce. Noutro sentido, e como modo compensatório ao anteriormente referido, as limitações de desempenho dos jovens com maturação tardia podem levá-los a desenvolverem uma prática focada na melhoria do domínio das habilidades desportivas específicas, tornando-os mais capazes tecnicamente.
A este propósito importará questionar, o que é o sucesso no desporto infantojuvenil? Numa perspetiva meramente quantitativa, o sucesso seria alcançar o maior número de vitórias possível, seria ganhar, ser campeão… Numa visão mais qualitativa, deveremos considerar como sucesso dotar os praticantes de competências técnicas, técnico-táticas e com um desenvolvimento progressivo das capacidades motoras, de modo a atingir o alto rendimento na idade adulta. Mas, em qualquer dos casos, o foco está sempre colocado nos mais dotados, ou seja, naqueles cuja deteção é mais fácil desde o início do processo.
Assim, defendemos que a seleção de jovens para a prática desportiva deverá iniciar-se em função do prazer que a mesma deve produzir nas idades mais jovens, onde a competição deverá estar sempre presente, fundamentalmente numa perspetiva de superação e realização pessoal. Nesse processo, aqueles que se destacam pelas suas capacidades de exceção serão naturalmente detetados e selecionados – sem nunca olvidar o controlo da IB, nesse processo – devendo ser sujeitos a modelos de preparação mais exigentes e controlados, mas onde o sucesso ao nível mais elevado se manterá como incógnita durante vários anos de prática.
Este artigo é parte da edição n.º 1 da nossa revista, que contém Dossier “A Preparação do Atleta a Longo Prazo”. O material completo está disponível para os assinantes. Se ainda não é, saiba como fazer para integrar o nosso grupo de leitores e colaborar com o nosso projeto.