Questões de saúde afastaram fisicamente Fátima Monge da Silva da escola e dos treinos de andebol, mas não apagaram de dentro de si paixão pelo desporto. E foi com esse mesmo sentimento que recebeu, na abertura do 9.º Congresso Treinadores de Língua Portuguesa, em Leiria, as palavras de louvor de Carlos Diniz, vice-presidente da Confederação de Treinadores de Portugal, dando voz à homenagem da treinadora, cujo nome ficou ainda imortalizado batizando uma das conferências. Semi-surpreendida, pois o marido lera a notícia a antecipar o momento na nossa revista, Fátima Monge da Silva não escondeu a emoção de voltar à escola através das memórias, antes de levar a SportMagazine a uma viagem ao mundo encantado de “mãe Fá” – assim é chamada por muitos alunos que com ela se cruzaram ao longo de 39 anos –, numa entrevista a uma grande senhora do desporto que soube vingar num mundo de homens.
“Estou muito feliz mesmo, sinto-me muito honrada por merecer esta homenagem. Durante toda a minha vida dediquei-me ao desporto. Sou moçambicana, vim sozinha para Lisboa para tirar o curso, logo que o acabei resolvi que ia ser treinadora e dos femininos. Isto num tempo [em 1970] em que a mulher não tinha direito à prática de qualquer modalidade. Fui para o Liceu Camões e lá comecei com a minha atividade. Procurei estar sempre motivada para os meus atletas, porque sem motivação e sem paixão não conseguimos fazer nada. Infelizmente por razões de saúde tive de abandonar a atividade de treinadora ao fim de 38 anos. Ainda me dói, mas de vez em quando vou matar o bichinho. Chamam-me e eu vou com muito gosto”, disse, com os sorrisos prontos a tentarem acalmar a voz que saía embargada.
Mais do que professora de Educação Física nascida em Moçambique há 73 anos, Fátima Monge da Silva é uma mulher do desporto. Fez parte da equipa da Câmara Municipal de Lisboa no Programa de Apoio à Educação Física no 1.º Ciclo Ensino Básico, é aos dias de hoje ainda das poucas mulheres a ter treinado equipas masculinas e femininas desde que iniciou a atividade em 1973 no Liceu Maria Amália, onde plantou a semente. Na Escola Secundária Camões fez escola da modalidade, no Benfica coordenou juvenis e seniores e no Clube Atlético de Campo de Ourique, entre 1981 e 1984, dos deixou ensinamentos dos pequenos aos graúdos. Foi selecionadora nacional da Federação de Andebol de Portugal (1978-1989), fez parte da Associação de Andebol de Lisboa (1976-94), somando resultados e colecionando prémios Carreira.
Mas à questão de como gostaria que se referissem a ela, Fá, como prefere ser chamada no seu espírito bem-disposto, responde sem dar espaço a coisas materiais, tão pouco remunerações que nunca recebeu. “A mim motiva-me o desporto. A minha profissão não é ser treinadora, é a paixão pelo andebol. Ser treinadora é o veículo da minha paixão pelo andebol”, resume, simplista, mas com o tom de voz alto como se ainda estivesse em plena sala de aula, tal o entusiasmo com que viajava pelas memórias.
Afinal o andebol só surgiu na vida de Fátima Monge da Silva porque os aros do cesto de basquetebol sem tabelas, modalidade que praticara e tinha cartão de treinadora… se partiram. E aí a Escola Secundária Maria Amália Vaz de Carvalho abria, sem saber, a sua secção de andebol.
“Tínhamos campos de terra batida, sem áreas, sem nada e com duas balizas. Comecei a fazer andebol com elas. Sabia pouco da técnica para estar à frente de uma equipa. A minha primeira preocupação foi fazer formação para responder às exigências que foram propondo. A caracterização da minha equipa era basquetebol. Corriam muito, driblavam, defendiam à zona com bloqueios do pivot. Era tudo à basquetebol”, recordou, empolgada, prosseguindo o relato: “Começamos a ter bons resultados e disse-lhes que aquilo era pouco e que tínhamos que fazer convívios. Fomos a um e, no segundo jogo, uma das minhas jogadoras rematou e partiu o dedo à adversária. Já não quiseram jogar mais connosco.”
Sexy equipamento preto
As juvenis do Maria Amália já partilhavam da paixão da treinadora que nunca virou o rosto a um desafio, nem que as luzes do carro do marido tivessem de servir de iluminação do campo ou tivesse de enfrentar os cânones vigentes. “Fui à Associação de Andebol explicar que tinha umas juvenis e que gostaríamos de entrar no que chamavam campeonatos eventuais de seniores e entrámos. Começamos a treinar, não tínhamos campo, mas dizia-lhe que temos é que gostar do que fazemos. Foi o que sempre me motivou, porque tinha paixão pelo que fazia e transmitia-o às minhas atletas. Só precisávamos resolver problemas. Não tínhamos luz no campo, treinávamos a condição física fora do campo, ganhei campeonatos nacionais sem nunca treinar no pavilhão e sem luz. O equipamento era inexistente, porque éramos do feminino e ali não havia desporto algum para mulheres. Disse às minhas jogadoras para escolherem a cor de um equipamento, quiseram preta como o da Académica. Pagaram os calções e as camisolas. A reitora disse logo que era demasiado sexy quando a informei da participação nuns jogos da associação. Só acedeu, depois de ter dito que as meninas já tinham gasto o dinheiro e que só mostrassem o equipamento preto na hora de entrar em campo!”, contou Fá, lembrando da organização de bailes, sob controlo da professora de religião e moral, e dos bolos feitos pelas atletas para patrocinar os jogos.
No início da década de 1970 era assim, no final não era diferente, pois mesmo na Seleção, em 1977, como recorda, os equipamentos eram os dos masculinos. “Sobrava tecido, então lá costurávamos os calções para servirem raparigas. Só tivemos direito a equipamentos com a participação no Campeonatos do Mundo C [1986, com 8.º lugar] e depois em 1988, quando fomos 6.ªs. Quando ganhámos o Torneio Internacional de Itália, na Sicília, o primeiro título internacional da Seleção A, é que as minhas atletas aproveitaram para perguntar ao presidente da federação se já tinham direito a equipamentos”, conta, entre gargalhadas.
Uma de que viver num mundo de homens não foi fácil. Ciente de cada passo que dado e de cada barreira transposta, Fátima Monge da Silva mantém a máxima: “Ser persistente e seguir em frente, mostrar que estamos aqui e que vale a pena gostarmos de nós!”, aconselha filosófica, mas muito ciente de não foi, nem é fácil ser mulher num mundo de homens.
“Ainda se sente muito, por exemplo, até no mundo do dirigismo. Todavia, penso que não devemos fazer comparações, mas sim mostrar que também temos direitos e mostrar serviço. Foi o que pensei quando fui para os seniores masculinos, porque aí tinha uma forma de mostrar que também tinha capacidade. Claro que tive treinadores que iam jogar contra mim e que ficavam danados porque perdiam com uma mulher. O público era a mesma coisa. ‘Vai para casa, vai coser meias’, era usual ouvir. Quando ia para os jogos no Norte, tinha que levar aqueles kispos com carapuço porque era toda cuspida. No final, despia o dito casaco e metia-o no lixo. Tínhamos ganho o jogo e isso era o que me importava. Penso que, por vezes, as mulheres se acomodam, quando devem ser ambiciosas”, aconselha.
Conselhos deixados às campeãs do Benfica
Esses foram alguns dos recados deixados, esta temporada, quando o Benfica, em busca do título feminino que viria a conquistar ao fim de 29 anos, solicitou os seus préstimos. “Ajudei o treinador de seniores femininos ao nível de guarda-redes. Disse-lhes mesmo que o primeiro adversário são elas próprias, porque tinham de se superar, não comparar com o outro. Há que perceber qual a nossa limitação e trabalhar nela até superá-la. Querer é poder. As jogadoras têm de sentir que têm um treinador que, se for preciso, fala alto no treino, mas também as estimula e anima. Os meus atletas sabiam que no dia em que deixasse de gritar com alguém era porque me tinha deixado de importar com esse atleta”, vincou.
Vencedora de três Taças de Portugal pelo Clube Escolar Maria Amália, uma pelo CACO (1983/84) e pelo Benfica (1984/85), emblema que ajudou a conquistar o título nacional sénior feminino da I divisão em 1985/86, repetindo os dois campeonatos ganhos com a equipa do D. Amália, Fá também foi campeã com os masculinos do Camões três vezes nas divisões secundárias. Apesar da experiência reconhece que “é muito diferente” treinar homens e mulheres.
“Temos de nos adaptar à caracterização do que temos em frente. A nível do feminino, há maior poder de sacrifício. Aliás, pergunto aos homens, que parecem que estão a morrer quando têm alguma coisa, se alguma vez podiam ter bebés? A nível de entrega, as mulheres são melhores, mas são mais emocionais. Os homens discutem, mas no fim do jogo ou do treino já está tudo esquecido. E isso faz com que sejam completamente diferentes. Esteve cá, uma vez, um treinador alemão do feminino e disse que, muitas vezes, tinha de provocar e colocar as atletas contra ele próprio para que, dentro do campo, estivessem unidas. Os homens são mais unidos”, afiança.
Desporto escolar e os meninos do Casal Ventoso
Na sua longa carreira como formadora, dinamizadora e terapeuta no âmbito do Plano Integrado de Compensação Sócio Educativa sob a responsabilidade do Gabinete de Reconversão do Casal Ventoso, entre 1997 e 2002, Monge da Silva foi a “mãe Fá” de muitos meninos que ajudou a fugir de um caminho desviado que lhes parecia destinado. À família do andebol juntou muitos destas crianças que marcou através do desporto.
“Convidaram-me para coordenar aqueles meninos do primeiro ciclo quando estivessem sem aulas. Nos jogos dos ateliers, à mínima coisa, partiam para a pancada, mas através de jogos incutia-lhes regras. A primeira, por exemplo, era não dar chutos na bola porque partiam os vidros das janelas que nos rodeavam. Uma das meninas agarrou na bola e, ao primeiro exercício, pontapeou-a contra a janela, a testar-me. Disse-lhe ‘Anabela, vai descansar teu sangue’. Disse-lhe que estaria dois minutos de castigo por não cumprir. Passados 30 segundos, já estava a perguntar se podia entrar, perguntei se já estava mais descansada e voltou. Ainda simulou nova tentativa de chutar a bola e riu-se, mas já não o fez. Percebi que era a líder do grupo, a partir daí qualquer exercício dizia-lhes para fazerem como a Anabela. Desde essa altura, ai de alguém que se portasse mal comigo. Ela era a primeira a chamar a atenção dos outros. Ao fim de semana até já ia para minha casa. Infelizmente, depois vim a saber que a mãe a levou para a prostituição e saiu da escola”, contou com lamento no olhar, mas ao mesmo tempo convicta de ter sido bem sucedida noutros aspetos como o absentismo.
“Tínhamos atividades de basquetebol e andebol, dizia-lhes que só podiam continuar a praticá-las se não faltassem e, apesar de me terem dito que ia terminar o ano sem miúdos, cinco ou seis terminaram. Aguentei-os ali até ao quarto ano”, relatou, orgulhosa.
A singeleza dos pequenos gestos revelou-se gigante para muitos desses meninos. A história de um colete que não mais esqueceu. “Um dos miúdos, o Rui, tinha um irmão mais novo que ainda não tinha idade para participar, então ficava à porta. Um dia, por altura do Natal, tinha uma carta dele que dizia, ‘gostava muito que me desse um colete’… Como não podia jogar ou ter a bola queria o colete. Comprei um e, antes e terminarem as aulas, ofereci-lho com uma bola velha. Nos restantes períodos escolares, por cima da roupa tinha sempre o colete vestido”, lembrou.
Vai descansar o teu sangue
A expressão ‘vai descansar o teu sangue’ passou a fazer parte do léxico dos treinos “exigentes” de Fá. “Tínhamos 1.30 horas de treino. Se há objetivos há que cumpri-los, sempre disse isso aos meus atletas. ‘Vocês têm de treinar, não é estar no treino’. Quando via que queriam trabalhar, dizia ‘vai descansar teu sangue’”, salientou entre risos quem “procura sempre ir atrás, fazer alguma coisa”, nem que seja ir três vezes por semana” ao ginásio como ainda faz, entre o apoio que dá na Câmara Municipal de Lisboa na logística dos programas de natação ou educação física para escolas.
Sempre que lhe é permitido já regressa ao pavilhão para assistir a um bom jogo de andebol, mas os melhores guarda-os no coração.
Daí não ser fácil eleger um momento alto da carreira para alguém cujo currículo destila pioneirismo. “Foi especial a vitória no torneio da Sicília e quando fui vice-campeã mundial do desporto escolar com a equipa de juvenis feminina do Camões, na Alemanha. Depois pagámos caro”, rematou, com quem liga a outra história, esta menos feliz, mas de grande aprendizagem. “Em 1994, essa equipa jogava nas seniores em Portugal, mas muitas eram juvenis. Eram federadas pela escola e o último jogo das seniores, que não contava para nada, coincidia com o Mundial. Acordámos em falhar esse jogo, falei por alto com a federação para ver se nos adiava o jogo do campeonato, porque não tínhamos jogadoras suficientes para ir a dois jogos. A FAP disse que sim. Fomos segundas e deu-me muito gozo. Só que, quando cheguei a Lisboa, foi terrível. Depois de homenagens da freguesia, do desporto escolar, soube que tivemos falta de comparência no campeonato das seniores, além de uma multa de dois mil e tal euros e a despromoção à II divisão. Depois de muito escrever, consegui que me perdoassem a multa, não tínhamos mesmo dinheiro para nada, mas da descida à II Divisão não escapámos. No ano seguinte, lá estávamos a treinar quatro vezes por semana e a ser promovidas de novo”, vincou, como quem diz que o que importa “é superação de si próprio”. E essa é uma frase descreve Fátima Monge da Silva melhor do que ninguém…