A foto de um abraço fraternal de Alfredo Quintana impresso numa t-shirt branca, que usa qual segunda pele sempre que entra em campo para ocupar a baliza, foi a forma encontrada por Gustavo Capdeville para suportar a dolorosa morte do amigo a 26 de fevereiro de 2021, após quatro dias a batalhar pela vida na sequência de paragem cardiorrespiratória num treino. Inesperada e chocante a partida do guardião do FC Porto e da Seleção, aos 32 anos, uniu clubes rivais, gerou uma bolha de amor. O guarda-redes do Benfica, de 25 anos, continua a mantê-la cheia. Com o nome de Quintana em vez do seu na camisola das águias, Capdeville mitiga a dor e perpetua, à sua maneira, a continuidade do amigo nos pavilhões. A reportagem abaixo fez parte do dossier publicado na edição n. 3 da Revista SportMagazine (com foco no dossier “Ética e Valores no Desporto”).
O sorriso de menino de Gustavo Capdeville até parecia ganhar mais brilho à medida que se aproximava do local da entrevista, em frente ao complexo do Benfica, onde chegou aos infantis em 2009/2010. A renovação do contrato até 2026 oficializada naquele dia aguçara a confiança do guarda-redes, que completou 25 anos a 31 de agosto, e ali estava para falar da carreira, mas sobretudo do simbolismo das duas peças de vestuário que trazia na mão: a amizade com Alfredo Quintana, guardião do FC Porto e da Seleção Nacional faleceu inesperadamente a 26 de fevereiro de 2021. Uma perda irreparável para a família, que uniu, no momento, clubes como rivais, e se tornou numa dolorosa perda mitigada por Gustavo Capdeville através de uma t-shirt branca com a foto estampada de um abraço fraternal com o amigo e da sua camisola com o seu 41 – número até escolhido por simpatia ao esloveno do futebol Jan Oblak –, mas com o nome de Quintana escrito nas costas.
“Quando aconteceu, foi muito chocante porque não esperava, ninguém esperava. Já perdi entes queridos, a morte do meu avô foi inesperada também, porque faleceu do dia para a noite, mas a da minha avó já era de prever, porque estava a sofrer e fui-me habituando à ideia. O que aconteceu ao Alfredo foi um choque. Tinha esperança de que as coisas se resolvessem, que recuperasse, mesmo que ficasse com sequelas. Aqueles dias de espera foram muito dolorosos. Ouvia-se muita coisa, havia esperança depois do choque, foram dias muito maus. Acordava à noite, nunca me tinha acontecido não dormir, nem aquando do falecimento do meu avô, facto que interiorizei como sendo a lei natural da vida, apesar da tristeza que sentia. Com o Alfredo passou-se algo que nunca me acontecera. Perdi uma pessoa que não era meu familiar, era meu amigo de coração. Adormecia, sonhava com ele, tinha pesadelos, acordava. A partir do momento em que faleceu, tive de me habituar à ideia e compreender que não ia voltar. Ali a esperança morreu”, verbalizou Gustavo, por vezes com o sorriso da lembrança a tentar esconder da saudade o embargo da voz.
Mensagens portistas de louvor Alfredo Quintana continua a ser elemento de união a cada visita dos encarnados à Dragão Arena. E se as redes sociais servem para propósitos menos honrosos, também têm sido veículo de apreço por Capdeville.
“Apesar de haver muitos adeptos a gritarem e a chamarem-me nomes, sinto-me acarinhado. Sou aplaudido quando entro em campo e, nas minhas redes sociais, recebo muitas mensagens de adeptos portistas a acarinharem-me e a mostrarem respeito, agradecendo tudo o que faço pelo Alfredo. Acho que isto é bonito, isto é desporto. Este é o lado que vale a pena, o dos aplausos, das homenagens, ter gente a reconhecer que um atleta da equipa contrária fez um grande jogo e congratulá-lo por isso. Os insultos e as rivalidades são de somenos importância. Foco-me no bom. Já aconteceu jogarmos aqui com o FC Porto, vencermos e ter milhares de mensagens de portistas dando-me os parabéns”, recordou, “grato” pelo que fazem por si.
“A partir daí, os jogos começaram a ser mais difíceis. Ainda ele estava internado fui jogar ao Póvoa, foi mesmo muito difícil. Falei com o Humberto [Gomes, outro dos guarda-redes da Seleção], foi uma tristeza tão grande entrar em campo… O Alfredo alegrava onde ia. Quando voltámos à Seleção pela primeira vez depois da morte dele, faltava algo. Porque eramos um grande grupo, e ainda somos, mas ele era carismático, era alegria. Ria, falava alto, punha música, estava sempre a cantar e sempre a dançar. Essa era a imagem dele e da nossa Seleção. Era uma pessoa muito marcante, quando ele partiu ficou um vazio. Voltar a pôr música foi um choque, voltar a rir, dançar e cantar em conjunto foi difícil. Tivemos o nosso tempo de luto. Era a imagem dele, parecia que ninguém tinha coragem de tomar a iniciativa. Não porque quisesse tomar o seu lugar, mas porque eram comportamentos muito do Alfredo. Ele era um arraial completo. As suas músicas, canções, danças faziam parte da nossa união. Foi muito, muito difícil. Ver o FC Porto jogar sem ele, era um vazio”, reforçou o lisboeta com ascendência francesa.

Gustavo Capdeville com Quintana ao peito. Foto: Pedro Fiúza/SM
“Estamos juntos no campo”
Nos dias que sucederam a partida de Quintana, no funeral reuniram-se dirigentes com divergências figadais, equipas de várias modalidades entraram em campo com o nome do luso-cubano, a Federação Europeia de Andebol [EHF] imortalizou em vídeo defesas que pensavam indefensáveis, Ricardo Costa, que fora colega e treinador do luso-cubano no dragão, bem como os filhos Martim e Francisco, ou Rui Silva, colega de equipa do FC Porto e nos Heróis do Mar, tatuaram-no. Capdeville precisou de ir mais além.
“Ele teria ainda mais dez anos de carreira. Cada um prestou homenagem à sua maneira, o FC Porto eternizou-o, mas senti que tinha de continuar a levá-lo aos pavilhões, para que continuassem a falar dele e a reproduzir a história do Alfredo. Fiz a minha t-shirt, jogava sempre com ela, e depois pedi ao Benfica para jogar com o nome dele. Muitas vezes, crianças e adultos perguntam-me porque tenho escrito Quintana na camisola, explico a história e, quando o faço, até em entrevistas, sinto que mantenho viva a memória do Alfredo, que foi muito importante para o andebol. Pelo jogador e pela pessoa que era, a história dele tem de ser contada, não quero que caia no esquecimento. Era uma pessoa extraordinária e um bom atleta, não quero que isso seja esquecido. E tanto que ele ainda tinha para dar… As pessoas adoravam-no e esperavam vê-lo jogar ainda muitos anos. Quero que continuem a vê-lo, que seja eternizado enquanto aqui estiver. Não sei se um dia vou voltar a usar o meu nome, mas neste momento sinto-me bem a usar o dele. As pessoas conhecem-me por ser o Gustavo, assim continuamos a estar juntos em campo”, contou o internacional.
“A t-shirt foi ideia minha, pelo facto de ter a foto de nós os dois abraçados. Essa é a imagem dele, aquele abracinho fraterno. A foto era uma coisa mais para mim, mas aconteceu tirar a camisola por estar com calor e as pessoas foram vendo e comentando. O nome dele na parte de trás da camisola não foi para ser tão intimista, era mesmo para que a história do Alfredo continue a ser contada. Muita gente imortalizou o Alfredo Quintana à sua maneira, esta é a minha!”, resumiu, antes de fazê-lo na sessão fotográfica, reconhecendo que a singeleza com que fala da perda faz parte de um processo no qual o Benfica foi imprescindível.
“As pessoas têm de falar. O que aconteceu ao Alfredo é muito triste, mas é real. Não podemos fazer tabu das coisas, sempre falei abertamente sobre tudo e o Alfredo, na sua breve passagem por cá, acabou por demonstrar o porquê de o andebol ser diferente. Toda a gente sabe que o Alfredo era uma figura carismática do andebol, era mesmo o melhor guarda-redes que já vi, independentemente do Sérgio Morgado e todos os outros que vi jogar. Era o melhor e acredito que, nos próximos anos, não haverá nenhum como ele. O que aconteceu depois foi bonito, pois toda a gente se uniu, não houve rivalidades, todos os clubes se solidarizaram porque sabiam quem era o Alfredo Quintana. O Benfica sabia que fora uma situação que me deixou triste e transtornado. Pedi dias, pedi a camisola, pedi o nome dele, sempre disseram que sim, nunca se opuseram, sabiam o quanto o Alfredo era importante para mim e deixaram as rivalidades de parte. Terão pedido autorização ao FC Porto para isso, mas nunca se opuseram. Falei com a psicóloga do clube, tinha de aprender a gerir aquela perda”, assumiu, cabisbaixo, como quem toca numa ferida.
“Não caminho sozinho. Passado um ano e meio continuo sempre acompanhado. Quero levar a história do Alfredo, o nome dele onde for. Tinha muito para dar, não pode fazê-lo fisicamente, sinto que o levo comigo, com o nome dele nas costas e a abraçar-me na foto impressa na t-shirt, fazemos o caminho a dois nas vitórias, nas derrotas, no bom e no mau, vou levá-lo sempre comigo. E tanto que ele me ensinou…”

Foto: Pedro Fiúza/SM
“Quero ser imagem de marca do Benfica”
Sem esconder ter recebido propostas “para situações financeiras melhores”, o guardião reconhece que a gratidão por tudo o que o Benfica lhe deu tudo, o manteve na Luz. Um pouco à semelhança do que Quintana fez pelo FC Porto, ao qual chegou como primeiro cubano.
“Gostava de fazer um pouco à imagem do que o Alfredo fez no FC Porto. É uma imagem icónica no clube, toda a gente que segue andebol sabe quem é o Quintana. Gostaria de ser imagem icónica no Benfica, que toda a gente que fala no andebol soubesse quem sou. Quero conquistar títulos, principalmente o do Campeonato Nacional, que não é ganho há muito tempo. Quero ser uma imagem de marca no Benfica, contrariar essa superioridade que o FC Porto tem granjeado ao longo dos anos e foi um pouco de tudo isto que me fez ficar aqui. No futuro, não escondo que gostaria de sair para o estrangeiro, mas sou novo e por renovei quatro anos, tenho tempo para poder fazer muito pelo clube”, admitiu.
Fair-play é deixar para trás o que se passou no campo
A Capdeville não faltam amigos no desporto, mesmo quando estes se tornam adversários. Por isso, fair-play tem um significado bem definido na mente do homem que protege as redes encarnadas como as de Portugal. “Para mim, fair-play é eu fazer tudo para ganhar dentro de campo, ali não tenho amigos. Respeito-os, como guarda-redes sei que se tiverem de bater mais forte fazem-no, amizades à parte. Cada um faz o que tem de fazer pela equipa, no final voltamos a ser amigos, independentemente do que se passou dentro do campo. Isso fica para trás, vamos embora e continuamos a ser amigos”, reflete o andebolista.
“A idade e a experiência ajudam a que consigamos separar essas coisas e a atingir essa maturidade emocional. Sou guarda-redes, mas os jogadores de campo passam por situações levadas mais ao extremo e ao contacto físico e insultos. Por vezes, o contato é mais exagerado, a intensidade do jogo, a envolvência da bancada, dos adeptos podem criar um ambiente propício a haver problemas. Temos que estar cientes de que é apenas um jogo e que, no fim dos 60 minutos, independentemente do que aconteça, temos ali amigos. E isso é o mais importante, com os meus amigos temos esse nível de entendimento. Umas vezes ganho eu, outras eles, para mim isso é o fair-play”, define o guarda-redes com 31 internacionalizações A.
E é precisamente por Portugal que eventuais divergências de campeonato são postas de lado. “Sou jogador da Seleção e conheço as grandes referências, quando jogamos uns contra os outros parece uma batalha campal, porque todos defendemos os respetivos clubes e queremos ser campeões. Às vezes sabemos que as envolvências das rivalidades e a agressividade do jogo são normais num dérbi ou num clássico, mas há que esquecer o que aconteceu e dar os parabéns a quem vence. Já pedi desculpas por coisas que fiz e das quais não me orgulho, há que saber pedir desculpa e dar os parabéns. Todos erramos, o importante é reconhecê-lo. Se não for no final do jogo, que seja quando a cabeça estiver mais fria. O que importa é nunca deixar de fazer o pedido de desculpas”, vincou, uma vez mais, chamando o amigo Quintana para a conversa.
“Toda a gente sabe que o Alfredo era uma pessoa muito impulsiva, reativa nos jogos, implacável. Depois, sempre o vi a cumprimentar toda a gente. Na Seleção, falávamos sobre isso. Sempre me disse que o ficavam eram as amizades. Os títulos ficam nos clubes, o dinheiro vai e vem e o que fica nas nossas vidas são os amigos”, recordou como quem conta uma lição aprendida.

Gustavo Capdeville com Quintana ao peito. Foto: Pedro Fiúza/SM
Mensagens portistas de louvor
Alfredo Quintana continua a ser elemento de união a cada visita dos encarnados à Dragão Arena. E se as redes sociais servem para propósitos menos honrosos, também têm sido veículo de apreço por Capdeville.
“Apesar de haver muitos adeptos a gritarem e a chamarem-me nomes, sinto-me acarinhado. Sou aplaudido quando entro em campo e, nas minhas redes sociais, recebo muitas mensagens de adeptos portistas a acarinharem-me e a mostrarem respeito, agradecendo tudo o que faço pelo Alfredo. Acho que isto é bonito, isto é desporto. Este é o lado que vale a pena, o dos aplausos, das homenagens, ter gente a reconhecer que um atleta da equipa contrária fez um grande jogo e congratulá-lo por isso. Os insultos e as rivalidades são de somenos importância. Foco-me no bom. Já aconteceu jogarmos aqui com o FC Porto, vencermos e ter milhares de mensagens de portistas dando-me os parabéns”, recordou, “grato” pelo que fazem por si.
Meu irmão Sergey!
Quando o Benfica conquistou o histórico título na Liga Europeia, Gustavo Capdeville estava lesionado e a baliza encarnada ficou nas mãos de Sergey Hernandez, internacional espanhol que, logo no momento após brilhante exibição, disse que o português era como irmão. O guardião luso aplicou com o hispano-russo a mesma máxima da amizade aprimorada com Quintana.
“Dava-me muito bem com o Alfredo porque ele era muito brincalhão, tal como eu e o Sergey, por isso acabámos por criar laços. A amizade foi crescendo aos poucos, agora já conhecemos a família um do outro e ele é visita habitual da minha casa. Vai à Ericeira ter com os meus pais, preocupa-se muito comigo e vice-versa. Queremos a felicidade um do outro, jogarmos na mesma equipa e na mesma posição é bom, porque puxamos cada vez mais um pelo outro. Houve alturas da época em que eu jogava mais, ele ficava feliz por mim e trabalhava mais, noutras altura, fui a ter de crescer quando ele jogava mais. Fazemos questão de dizer muitas vezes ‘Irmão gosto muito de ti, fico feliz por tudo o que alcançaste’. Envio-lhe mensagens a dizer que tenho saudades dele, a perguntar se a família dele está bem, até pela cadela pergunto e ele pelo meu cão. Exteriorizamos sentimentos, algo que as pessoas tendem a ter medo de fazer. Onde ele estiver feliz, eu também estarei e passa-se o mesmo do lado dele”, asseverou sem pejo. “Entre mim e o Sergey não é cada um por si. Somos a mesma equipa, somos guarda-redes, a tal equipa à parte. Nunca houve individualismos, ele puxou-me para cima e cimentou esta amizade de irmãos. Passámos pelo bom e pelo mau. Está cá sozinho, é sempre bem-vindo à minha família”, rematou.