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Opinião

Contributos para um novo Regime Jurídico do Treinador de Desporto em Portugal

José Miguel Sampaio e Nora e Miguel Fernandes são advogados. Foto: DR

Por José Miguel Sampaio e Nora*
Miguel Fernandes**

No âmbito do 9.º Congresso de Treinadores, realizado nos dias 25 e 26 do passado mês de junho, em Leiria, fomos convidados a participar no Painel intitulado Propostas Legislativas – Treinadores. Constituindo, sem dúvida, um campo e matéria de grande interesse, foram amplamente debatidas questões como, entre outras, a atividade do Treinador (em especial o enquadramento jurídico-legal, tendo em vista a especificidade da profissão), e a eventual criação de um Regime Jurídico do Treinador de Desporto, assim como o novo Código Deontológico do Treinador.

Assim, e como ali tivemos ocasião de preconizar:

1. Quanto à atividade do Treinador, o seu enquadramento jurídico-legal, tendo em vista a especificidade da profissão, e a eventual criação de um Regime Jurídico do Treinador de Desporto:

a) a primeira questão abordada relaciona-se com o facto de se verificar que existe um grande debate entre a atividade (profissional, ou não) do treinador de desporto, o seu enquadramento jurídico, comportamento, formação, título profissional, e a sua remuneração, entre outras; tendo em conta a especificidade da profissão – treinos e competições durante o dia e noite, fins-de-semana, eventual acumulação com outras funções, etc. – se não seria benéfico haver uma legislação própria e específica para o treinador, ou se existe enquadramento legal na lei geral em vigor que seja mais benéfica;

b) no essencial, existem duas grandes correntes:

i) de um lado, aqueles que defendem que deve haver maior abertura para a sujeição do contrato de trabalho celebrado pelo treinador à legislação geral laboral – e não à especial (DL 305/95, de 18 de Novembro, Lei 28/98, de 26 de Junho e Lei 54/2017, de 14 de Julho); esta corrente assenta no facto de o legislador, alteração após alteração ao Regime jurídico do Contrato de trabalho desportivo (CTD), ter optado por manter sempre o âmbito de aplicação aos praticantes, formandos e empresários; todas as demais atividades ligadas ao desporto (médicos, massagistas e demais elementos de uma equipa técnica), devem ser sujeitas à disciplina do Código do Trabalho; para esta corrente temos dois tipos de regime jurídico de contratação: a dos que estão enquadrados na legislação especial (praticantes, formandos e empresários) e a dos que estão enquadrados na legislação geral do trabalho (treinadores, médicos e massagistas e demais membros habituais de equipas técnicas;

ii) de outro lado e em sentido contrário, a tese dominante, os que consideram aplicável (com as necessárias adaptações) ao contrato do treinador desportivo o regime jurídico do praticante desportivo – a jurisprudência e a doutrina portuguesa parece ser pacífica e unânime no sentido de considerar aplicável ao contrato do treinador desportivo o regime jurídico do praticante desportivo (veja-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.01.2020, assim como o Acórdão do STJ de 20.05.2009, assim como o Acórdão também do STJ de 25.06.2015);

c) na esteira da tese dominante – a que aderimos, embora devamos ir mais longe – importa realçar alguns princípios e valores que se assumem como relevantes, nomeadamente:

i) que a relação (em especial, a laboral) que é estabelecida entre um treinador e um clube, pelas suas especificidades, reclama soluções diversas das impostas pelo regime geral comum, e que portanto se deve afastar este regime (pelo menos em regra);

ii) a especificidade da profissão, onde se encontram uma multiplicidade de funções que caracterizam a atividade dos treinadores – o que só pode ter acolhimento e proteção legal em situação de enquadramento em regime especial de contrato de trabalho desportivo;

iii) a atividade desportiva tem uma natureza efémera, passageira, intimamente dependente dos resultados desportivos;

iv) que estamos perante uma lacuna de previsão, sendo necessário socorrermo-nos das regras gerais em matéria de integração – deve ser aplicável por, analogia, nos termos admitidos pelo art.º 10.º do C.C., o regime do contrato de trabalho do praticante desportivo ao Treinador Desportivo, designadamente, no que respeita à celebração do contratos por determinado tempo – tendo como referência as épocas desportivas, bem como à sua caducidade, procedendo pois as razões justificativas da regulamentação prevista na LCTD; inexistência do direito à reintegração em caso de despedimento sem justa causa (como defende Albino Baptista), e ainda, a questões de eventuais direitos de indemnização;

d) para esta tese, e em suma, apontamos que:

i) o treinador não deve ser qualificado como praticante desportivo, à luz e para os efeitos da Lei n.º 28/98, de 26 de junho;

ii) contudo, por se tratar de uma relação (laboral) que, pelas suas especificidades, reclama um regime adequado, existe uma evidente lacuna (legislativa) de previsão, devendo aplicar-se, por analogia, o regime jurídico ali previsto, com soluções diversas das impostas pelo regime laboral comum, designadamente no que respeita à celebração de contratos por tempo determinado (reportado às épocas desportivas), bem como à sua caducidade;

iii) a Lei n.º 28/98, de 26 de junho, não constitui um regime jurídico excecional, mas antes um regime especial de contrato de trabalho subordinado, nada impedindo, pois, a sua aplicação analógica a contratos de trabalho a termo certo, celebrados entre um clube e um treinador, válidos e perfeitamente autónomos entre si, cujo termo, uma vez alcançado, fez operar, sem mais, (isto é, sem necessidade de qualquer comunicação das partes), a sua caducidade;

iv) as razões justificativas da referida aplicação analógica, in casu – por força da equiparação das especificidades funcionais de ambos os profissionais – não colidem com o direito, liberdade e garantia de segurança e estabilidade no emprego e de proibição de despedimentos sem justa causa, previstos nos artigos 13.º, 18.º e 53.º, da Constituição da República Portuguesa; v) constituindo as regras do regime laboral comum direito subsidiário relativamente às relações emergentes do contrato de trabalho desportivo, é aplicável, no caso – porque compatível com a natureza da relação contratual sujeita –, a norma referente à formação contínua do trabalhador, prevista no artigo 131.º, n.º 2, do Código do Trabalho;

e) sem prejuízo do que antecede, e mais do que aderir aos princípios subjacentes à tese dominante, importa ir mais longe e referir que:

i) por um lado, será necessário agrupar todas as matérias de interesse e relevância para o exercício da atividade de Treinador de Desporto num só e único diploma – um verdadeiro Regime Jurídico de Treinador de Desporto, que abranja todas as matérias da atividade (profissional, ou não) do treinador de desporto, o seu enquadramento jurídico, o comportamento, a formação, o título profissional, a sua remuneração, assim como e entre outros, a relação contratual a estabelecer com o Clube, ou sociedade desportiva;

ii) e neste âmbito da relação contratual, olhar para a caracterização do Desporto em Portugal, a natureza das diversas competições desportivas organizadas pelas Federações Desportivas e a situação real e concreta dos Clubes e Sociedades Desportivas; assim, mais do que estabelecer um regime jurídico balizado na premissa de uma relação contratual laboral (que se dirige a uma pequena percentagem dos Treinadores de Desporto que exercem funções nos Clubes e Sociedades Desportivas participantes nas competições de natureza profissional, aí existindo Sindicatos e convenções coletivas que podem assegurar alguma proteção a esses Treinadores) importará avançar e definir um modelo contratual simplificado (no seio e âmbito do preconizado Regime Jurídico do Treinador de Desporto) que convoque e abranja a esmagadora maioria dos Treinadores de Desporto que exercem funções nos Clubes de base, nas diversas competições de natureza não profissional e nos diversos patamares e escalões de formação. Estes constituem a regra e a base e é para estes, em especial, que se deve dirigir a especial proteção e segurança jurídica do estado. As soluções – até do ponto de vista fiscal – já existem, bastando pensar na eventual aplicação de um regime simplificado em sede de IRS que permitiria incluir a maioria dos Treinadores de Desporto, e assim conferir-lhes maior estabilidade e segurança jurídica nas relações com os Clubes ondem exercem a sua atividade;

f) pelo que antecede, a existência e criação de um Regime Jurídico do Treinador de Desporto poderia trazer mais clareza ao sistema, consubstanciando a adoção de mais um regime especial de contrato de trabalho subordinado, ou de um modelo contratual simplificado, consagrando-se em diploma próprio as especificidades que são próprias da atividade do treinador de desporto, aí se incluindo de igual modo, as normas e matérias relativas ao Regime de Acesso e exercício da atividade de Treinador de Desporto (Lei n.º 106/2019, de 6 de setembro) integrando-as pois num futuro Regime Jurídico do Treinador de Desporto, que assim englobaria todos os pilares essenciais da atividade do Treinador, desde o regime de acesso, os objetivos, as habilitações, o regime da relação contratual com os clubes, a duração de contratos, a forma dos mesmos, a obrigatoriedade de registo nas federações desportivas etc.;

g) no fundo, a introdução de um Regime Jurídico do Treinador de Desporto traria mais segurança jurídica quer à atividade do treinador, quer à relação contratual a estabelecer entre Treinador e Clube;

2. Já quanto à matéria do Código Deontológico do Treinador, que foi aprovado recentemente (12 de março de 2022), foi preconizado:

i) que o desporto tem uma linguagem universal que se expressa através de um conjunto de regras que orientam o comportamento de todos os agentes desportivos, num quadro de princípios comuns. Um dos mais relevantes princípios, que confere um valor educativo e cívico de suma importância, prende-se com a INTEGRIDADE das competições, seja de quem as organiza, regula ou ativamente nelas participa;

ii) que a existência de códigos deontológicos (como o Código Deontológico do Treinador) tem junto da sociedade um papel de destaque, uma vez que a capacidade de o fazer cumprir e respeitar, por parte dos associados (Associações de Treinadores e Treinadores) representa uma garantia institucional perante a própria sociedade;

iii) que a existência de códigos deontológicos são um fator de credibilidade e de prestígio social, quer da Confederação, quer dos Treinadores;

iv) que significa que os Treinadores de Desporto estão alinhados com os princípios e valores internacionais em Integridade no Desporto, que estão integrados no âmbito do Comité Olímpico Internacional (COI), com realce para os 3 pilares – Luta contra o Doping; Prevenção da Manipulação das Competições (match-fixing); e Prevenção de abusos e assédio no Desporto – conforme as disposições do COI e da Convenção do Conselho da Europa (Convenção de Macolin, de 18.09.2014);

v) que o Código Deontológico do Treinador constitui, em suma, uma ferramenta e um instrumento adicional que é colocado à disposição das Federações desportivas onde o Treinador se encontre inscrito, em casos de eventual prática de ilícitos disciplinares, não obstante a maior parte das Federações desportivas disporem já de regulamentação que prevê casos de violação de princípios desta natureza.

*JOSÉ MIGUEL SAMPAIO E NORA, Advogado/Consultor, Árbitro da Comissão Arbitral Paritária da LPFP/SJPF, Presidente da Direção da Ass. Port. de Direito Desportivo, Membro do Conselho Nacional do Desporto, colunista Jornal Record, comentador SportTv.

**MIGUEL FERNANDES, Advogado, Diretor Executivo/CEO da Federação Andebol de Portugal, Membro da Comissão Arbitral da IHF (International Handball Federation), ex-atleta internacional de andebol.

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