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Ana Bispo Ramires: o treinador enquanto atleta de alta performanceExclusivo 

Ana Bispo Ramires, psicóloga. Foto: Pedro Vilela

Por Ana Bispo Ramires* (Psicóloga clínica)

Treinadores de excelência, para além de terem um profundo conhecimento acerca dos seus próprios indicadores de performance, dominam, também, em termos do que poderíamos chamar de “engenharia ambiental”, ou seja, recriarem em processo de treino, os cenários que poderão surgir em contexto competitivo. Em simultâneo, gerem de forma eficaz os processos motivacionais do indivíduo e do grupo, numa missão comum.

O contexto desportivo tem sido, ao longo dos últimos anos, um verdadeiro “berçário” de líderes de alto nível.

O contexto de futebol, pela sua enorme mediatização, tem evidenciado de sobremaneira este tipo de fenómeno: Mourinho, Klopp, Guardiola, Simeone, Kathryn Smith, entre tantos outros, têm feito as delícias de todos os interessados nos processos de liderança. Becky Hammon, Dawn Staley e Pat Summitt (basquetebol), Jesper Jansen, Thorir Hergeirsson, Nikolaj Jacobsen ou Didier Dinart (andebol) poderiam ser outros nomes a destacar.

Ana Bispo Ramires, psicóloga. Foto: Pedro Vilela

A curiosidade sobre este tipo de temática tem levado para as montras das livrarias obras biográficas que resultam do nível de êxito que atingem, acabando por suscitar o interesse de todo o cidadão comum que pretenda aceder aos segredos subjacentes ao processo de liderança que exercem.

Diego Simeone chegou mesmo a tornar-se num “case-study” na Universidade de Harvard, sendo a sua metodologia fortemente recomendada a pequenas e médias empresas que pretendam afirmar-se no mercado das empresas de um segmento superior.

Mas o que distingue estes homens/mulheres dos demais?

Para além da sua elevadíssima expertise em processos de jogo, o que, possivelmente, não os diferenciaria de muitos outros que, com este mesmo domínio, acabam por não ter sucesso a níveis tão elevados, são, de facto, exímios quer no que respeita a processos de auto-regulação energética (psico-emocional), quer no que refere a processos de regulação dos níveis de ativação do grupo que comandam.

Conhecedores, genuinamente, do funcionamento humano em contextos de performance (logo, conscientes do que potencia ou dificulta o seu próprio desempenho no exercício da sua função de liderança), diagnosticam como ninguém as necessidades que a sua equipa tem, no que respeita a manterem, de forma consistente, os níveis de desafio e intensidade necessários a um desempenho de excelência ao longo de todo o período competitivo.

“Faro” e critério

Curiosamente, há uns anos, um treinador de alto rendimento solicitou ajuda no que respeita à identificação dos critérios que ele próprio ia atuando quando recrutava um atleta para a sua equipa…sabia que o fazia bem, mas por trás do que considerava “faro”, sabia que estariam alguns critérios que não conseguia identificar racionalmente – isto poderíamos chamar “conhecimento inconsciente”.

Por outras palavras, ao longo dos anos este profissional aprendeu a identificar os indicadores certos…sem saber que ia criando uma ferramenta exímia de avaliação de competências.

As características diferenciadoras deste “Top Level” de Treinadores são, muito frequentemente, a sua capacidade de impacto no grupo (não só atletas, mas no seu próprio staff) mostrando-se continuamente “envolvidos e envolventes”. Por outras palavras, através do seu próprio compromisso com a missão do grupo, acabam por contaminar a generalidade dos atletas, staff e, por vezes, até adeptos, que se dedicam a seguir o que estes líderes determinam. São, genericamente, sujeitos com níveis elevados de inteligência emocional.

Neste enquadramento, aquilo que os estudos nos têm apontado, é que estas pessoas, para além de um domínio elevado no que respeita a conhecimento técnico-tático (que transportam para a criação de processos de jogo muito eficientes), e de naturais competências de comunicação, acabam por treinar de forma involuntária e inconsciente (partilhando com os atletas) um conjunto de competências essenciais à manifestação de uma performance, consistentemente, de alto nível.

Falamos de competências como, gestão de stress e ansiedade, resistência à frustração, elevada motivação intrínseca, capacidade de manter a atenção de forma sustentada a todos os aspetos do jogo (concentração), entre muitas outras.

Este tem sido, de resto, um dos focos de interesse da Psicologia do Desporto/Performance, dedicando o seu tempo, entre outras áreas de estudo, a:

Estudar os casos de sucesso (top level performers), por forma a conseguir identificar denominadores comuns (competências psico-emocionais) associados a desempenhos de excelência (…) sistematizar o processo de treino dos mesmos para que possa ser implementado junto de treinadores e seus atletas, tornando a excelência mais frequente e previsível.

Case-Study: John Wooden

“Success is never final, failure is never fatal.” – John Wooden

John Wooden foi um caso paradigmático de sucesso no desporto de alta competição (basquetebol profissional, EUA), tendo conduzido as suas equipas à vitória em 10 campeonatos, em 12 anos possíveis, sete dos quais, de seguida.

Naturalmente, será praticamente impossível discriminar todos os fatores que se encontram associados ao sucesso repetido de uma equipa.

De uma forma exaustiva, deveriam ser evidenciados todos os agentes ou intervenientes que, de uma forma ou de outra, contribuem para o bem-estar e, consequentemente, foco na superação e performance de um conjunto de atletas.

Na realidade, por detrás do sucesso de uma grande equipa, encontra-se quase sempre um grande gestor – entenda-se, um grande treinador ou, por outras palavras, e de uma forma mais “técnica”, alguém que, compreendendo todas as variáveis que num dado contexto podem interferir no sucesso desportivo, opta por interferir sobre as mesmas (mesmo quando se trata “daqueles” elementos, aparentemente, “invísiveis”).

Treinadores de excelência, para além de terem um profundo conhecimento acerca dos seus próprios indicadores de performance (como devem atuar para otimizar o seu processo de influência no grupo – de atletas, do departamento médico, etc) – seja porque foram aprendendo por “tentativa e erro”, seja porque escolheram trabalhar com especialistas na otimização da performance humana (ex: da area da Psicologia da Performance) – dominam também, em termos do que poderiamos chamar de “engenharia ambiental”, ou seja, recriarem em processo de treino, os cenários que poderão surgir em contexto competitivo. Em simultaneo, e porque possuem um conhecimento específico acerca dos seus atletas, gerem de forma eficaz os processos motivacionais do indivíduo e do grupo, numa missão comum.

Não estamos a falar de super-homens ou super-mulheres… estamos sim, a falar de pessoas que acreditam na metodologia que desenvolveram para fundamentar o seu estilo de liderança.

Wooden defendia alguns principios básicos, como seja o facto de devermos centrar a nossa atenção sobre aquilo que controlamos sob pena de, não o fazendo, nos dispersarmos do nosso próprio propósito e, consequentemente, nem sequer naquilo que podemos controlar, conseguirmos evoluir.

De igual forma, era acérrimo defensor de “planear, preparar, praticar e… atuar (performance)”.

A sua filosofia acentou, indubitavelmente, num imenso foco no processo:

Por outras palavras, viveu o sucesso alcançado apenas como um degrau para o que desejava alcançar no futuro, e o erro como algo natural e passível aprendizagem.

O seu foco era desenvolver o potencial dos seus atletas ao máximo e, como ferramenta, desenvolver o seu próprio processo de liderança, para que o mesmo servisse de catapulta para o crescimento do outro.

O seu exemplo, intemporal é, acima de tudo, o de alguém que acredita na sua propria capacidade de metamorfose, que aposta em aproveitar cada dia como uma possibilidade de superação e, consequentemente, por compreender todo este processo “por dentro” (e em profundidade), alguém que acredita na capacidade de mudança do “outro” e no seu próprio “dom” de conduzi-lo nesse caminho de superação.

Treinadores de excelência, como Wooden, conduzem equipas de excelência.

Exigem de si e dos outros.

Assentam a sua ação numa estratégia concertada de crescimento e fundamentam a sua posição em dados objetivos, arrastando consigo o compromisso individual de cada atleta e de cada elemento da sua equipa técnica.

O problema?

Fruto, demasiadas vezes, de um processo de aquisição involuntário e inconsciente, se perguntarmos a um treinador (ou a um atleta) o que faz para se colocar no “ponto ótimo” para alcançar uma performance de elevado nível, à semelhança do treinador já enunciado, torna-se difícil conseguirem identificar todos os passos do processo, razão pela qual não só fica comprometida a possibilidade de treinar (otimizar) este tipo de “liderança” (tornando-a ainda mais consistente) como, em contextos de elevada pressão, poder exercê-la de forma voluntária e consciente – por este motivo, observamos muitas vezes treinadores de excelência obterem resultados abaixo das suas capacidades quando algumas variáveis do contexto mudam.

A solução?

Tal como o estudo aprofundado dos fatores de sucesso de atletas de top elite acabou por resultar numa enorme evolução no que respeita à capacidade de intervenção da Psicologia (que, através do conhecimento adquirido acerca das competências diferenciadoras, desenvolveu processos de treino e métodos eficazes para, de forma sistematizada, poder replicar e potenciar a existência destas mesmas competências em grupos de atletas mais alargados), acredito que este também será o caminho, no que respeita ao estudo e otimização de comportamentos de sucesso em treinadores top elite (ou que o pretendam ser).

Tal como no domínio dos Atletas, o desenvolvimento aprofundado e sistematizado das competências de performance de um treinador, elevarão, de forma inequívoca, a sua performance.

Naturalmente que, abraçará este tipo de desafio e “empowerment” aquela “classe” de treinadores que, à semelhança de muitos atletas, são ávidos pelo seu próprio processo de evolução e que, em boa verdade, olham para si próprios como o derradeiro “atleta de top performance” – como poderiam, de outra forma, pretender gerir equipas e/ou atletas que cada vez mais se socorrem deste tipo de conhecimento sem colocar em risco o seu próprio processo de liderança?

É que, encontrando-se no topo da pirâmide, um treinador, de facto, não deve exigir dos seus atletas qualquer tipo de competência que ele próprio possa não possuir (ex: como exigir concentração se me perco com o comportamento do árbitro? Como exigir autorregulação e foco se o meu comportamento não verbal, involuntariamente, evidencia ansiedade e irritação?), sob pena de comprometer a sua posição enquanto líder.

Por onde começar?

Boa pergunta.

O processo inicia-se, inevitavelmente, pela ativação da curiosidade (e responsabilidade individual) dos treinadores que, não obtendo informação suficiente nos cursos que frequentam (onde recebem pouquíssimas horas no que respeita a Ciências do Comportamento Humano – Psicologia), devem procurar outras fontes de formação/informação.

A literatura científica abunda nesta área e as obras biográficas também (por vezes, transportam conhecimento relevante). Existem já cursos de aprofundamento e, em alguns casos, acompanhamento individualizado (que deverá ser efetuado por um especialista – e não por um “curioso”).

O primeiro passo poderá passar por planear a sua carreira, as etapas que quer cumprir e as experiências que pretende viver e, em função disto, que recursos deve adquirir para estar à altura dos desafios que possam ir surgindo – inevitavelmente, a capacidade para mobilizar vontades (suas e de outros), para gerir frustrações, sucessos e insucessos (sempre: seus e dos outros), para se auto-regular e mobilizar os diferentes elementos da entourage onde atua (equipa técnica, atletas, equipas medicas, dirigentes e outro staff) serão sempre uma parte determinante da “toolbox” a adquirir.

Aqui, enquadra-se naturalmente, a vontade de se predispor a si próprio(a) a um processo sistematizado de evolução e mudança, que possa otimizar não só a sua forma de “estar em liderança” como os impactos que a mesma possa ter no meio onde se insere – neste contexto, a melhor ajuda será sempre recorrer a profissionais especializados (acreditados) para o efeito e com a devida experiência no contexto, que orientarão um processo que se pretende sólido e cientifico.

Até porque, chegar ao “alto rendimento” nem sempre é assim tão difícil…permanecer lá é, garantidamente, o maior desafio de todos.

*ANA BISPO RAMIRES, Psicóloga Clínica, Mestre em Psicologia Desportiva pela Universidade do Minho, foi assistente universitária no ISPA durante 13 anos, lecionando matérias curriculares relacionadas com competências emocionais, psicologia do desporto e da performance, no âmbito de mestrados integrados e pós-graduações.

Docente convidada no ISPA, na Universidade Católica de Lisboa e na Faculdade de Motricidade Humana, é consultora e autora de variados artigos publicados em livros nacionais e internacionais na área do Psicologia do Desporto e da Performance.

Trabalhou no Benfica, na área do futebol e foi colaboradora do antigo selecionador nacional, Luiz Felipe Scolari.

Desde 2017 integra a direção de medicina do Comité Olímpico de Portugal, na especialidade de Psicologia Clínica e Desporto.

 

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