A ausência do surfista brasileiro Gabriel Medina nas duas primeiras etapas do circuito mundial para tratar da saúde mental despertou um alerta no mundo do surf. Afinal, um atleta que vive o auge da carreira, foi tricampeão mundial no ano passado, exala saúde física e aparece na mídia quase sempre à beira ou dentro do mar, supostamente estaria isento de sofrer com problemas psicológicos. Especialistas, entretanto, explicam o que muitas vezes está nas entrelinhas dos desportistas de alto rendimento: aquilo que é, nem sempre é o que aparenta ser.
Foi o caso de Gabriel Medina. Aos 28 anos, o brasileiro está a surfar na “crista da onda” dos resultados pessoais. Mas os problemas alheios ao desporto, essencialmente os familiares, sufocaram-no a ponto de clamar por uma pausa na carreira. Assim, decidiu ficar de fora das provas de Pipeline e a de Sunset, também no Havaí, com a justificativa de que precisava de tempo para cuidar da saúde mental. Um sinal de atenção aceso ao universo do surf que serve também para os atletas portugueses.
Miguel Moreira, consultor técnico da Federação Portuguesa de Surf (FPS) (Formação/Alto Rendimento/programa Olímpico), recorda que o caso de Medina não é propriamente uma novidade nesta modalidade. “Já houve outros exemplos de interrupção da carreira. Vários atletas, cada um por sua razão, mas desde o Kelly Slater, o Mick Fanning e o Andy Irons, que é um caso se calhar mais midiático e mais conhecido porque era um problema de droga e ele acabou por falecer por causa disso. Mas isso acaba por não ser novo. Neste caso [do Medina], eventualmente foi mais surpreendente porque ele foi tricampeão do mundo na época anterior e aparentemente estava tudo bem, essa é a questão”, recorda.
Especialista em Psicologia do Desporto e da Performance, Ana Bispo Ramires explica que a fantasia de um corpo de alta performance muitas vezes consegue esconder uma mente frágil. A profissional, que desde 2017 integra a direção de medicina do Comité Olímpico de Portugal, tendo integrado a Missão Olímpica Tóquio 2020, observa que a grande surpresa em casos como o de Medina acontecem quando as pessoas vinculam à performance física à saúde mental, quando as duas podem ser distintas.
“Um dos grandes problemas que temos com os atletas de alta competição, e também porque eles têm visibilidade pública, os cidadãos comuns acabam por olhar para eles como modelos. E tendem a vincular as questões de uma ótima saúde mental à uma ótima performance física, porque veem um corpo que dá resposta que ganha, que compete, que se supera, que bate recordes, que ganha provas e campeonatos mundiais. Portanto, é como se do ponto de vista do imaginário das pessoas, que não são da área científica das ciências comportamentais, que um corpo bem trabalhado teria uma mente saudável. Não é verdade e a investigação tem nos dito isso mesmo. Temos inúmeras histórias de atletas de alto rendimento cujos indicadores de saúde mental e bem estar são reduzidos, inclusive com questões clínicas marcadas, como é o caso da depressão. Este é um primeiro tabu que tem que se cortar”, destaca Bispo.
Miguel Moreira, que também é o coordenador da Pós-graduação em Surf na Faculdade de Motricidade Humana (FMH), concorda com Ana Bispo Ramires. “É como eu costumo dizer: as aparências iludem. Quando vemos de fora, enquanto espectadores, não sabemos o que está a acontecer na vida dos atletas e isso não é exclusivo no mundo do surf, tem a ver com o desporto de alto rendimento. Mas o que acontece com esses atletas é que eles sofrem de pressões. No fundo, eles têm constrangimentos à volta deles, que estão relacionados com eles próprios, com o envolvimento, com patrocinadores, e com o próprio desporto que eles têm que realizar”, acrescenta.
A ausência do lar, “com oito, nove meses em viagem para competir”, também é apontada por Moreira como outro fator que pode agravar a estabilidade do surfista. O facto é que esse contexto é comum a todos os surfistas, apesar de cada um ter as suas particularidades. Com o objetivo de trabalhar multisciplinarmente os desportivas portugueses, foi criado um protocolo de apoio entre a FMH e a FPS. As equipas técnicas, monitoradas e com o suporte académico, e os atletas têm trabalhado com psicólogos desportivos e em outras frentes igualmente importantes para tratar a saúde do corpo e da mente com conjunto.
Miguel Moreira, primeiro doutor em surf do mundo, desenvolveu na FMH um projeto no início do ano 2000, o Surftec. “Foi precisamente um projeto de treino onde a preocupação era precisamente fazer um plano de desenvolvimento a longo prazo e criar condições para que o atleta chegasse ao alto rendimento com a melhor base possível. Um dos atletas que acabou por chegar neste caso é o Vasco Ribeiro (atual campeão nacional)”, observa.
“O que eu tenho defendido desde sempre é essa ideia de um plano de desenvolvimento a longo prazo. Nele, ao longo do crescimento da criança quando ela começa a praticar o desporto devem ser dadas diferentes bases, nas diferentes áreas, para quando chegarem ao alto rendimento estarem preparadas para lá estar. E durante este percurso, cada caso é um caso e vai se tentando trabalhar de forma que consiga lidar da melhor forma com o alto rendimento. Ter uma equipa multidisciplinar é fundamental, mas se os atletas não aprenderem a tirar partido disso, não saberem a quem buscar e não perceberem a importância podem não conseguir resolver o problema”, explica Miguel Moreira.
No ano passado, grandes atletas como a tenista Naomi Osaka e a ginasta Simone Biles, durante os Jogos Olímpicos, revelaram ter problemas de saúde mental. O tema ganhou grande destaque e passou a figurar mais intensamente no debate público. Com muitos anos de experiência na área em que é uma das principais especialistas no país, Ana Bispo Ramires explica o que os gestores do desporto português podem fazer para evitar que problema igual ou parecido acometa os nossos desportistas.
“Não é um tema do atleta, do treinador, do clube, não é da federação, é um tema de todos nós, da sociedade e também das estruturas que eu referi. Isto para dizer que Portugal precisa muito rapidamente, e o desporto está incluído, entender que o principal pilar das performances de excelências são as questões relacionadas com a saúde mental. Nós não temos que treinar sprinters, sejam eles gestores, médicos, engenheiros, atrizes, atletas, não devemos querer criar sprinters, mas devemos querer criar ultramaratonistas. Para isso temos que manter a nossa cultura e começar a educar as pessoas para as questões da saúde mental. Se um atleta conseguir reconhecer mais precocemente as pequenas coisas que começam a minar a sua saúde mental, mais precocemente podemos começar a trabalhar a promoção da saúde mental. Este é um dos problemas que temos em Portugal”, faz o diagnóstico Bispo.
“Não sei como é em outros países, mas há essa urgência em falar da saúde mental pela ausência de saúde mental. Percebo que é uma preocupação, mas temos que perceber o que temos que fazer com os 3.500 Medinas que têm agora 10 anos de idade para que eles tenham uma menor prevalência de problemas com a saúde mental quando tiverem a idade do Gabriel Medina. Como podemos trabalhar desde a base na promoção da saúde mental como o principal ator do sucesso? Isso implica treinar as competências. Outra das estratégias que implica necessariamente é a integração de profissionais especializados em ciências comportamentais, psicológicos que sejam reconhecidamente especializados em psicologia do desporto, por exemplo, para começar a trabalhar desde cedo na promoção de competências dos jovens”, afirma Ana Bispo Ramires.
Problemas pessoais
Gabriel Medina viveu em 2021 “uma montanha russa de emoções”, conforme ele mesmo descreveu. Rompeu com o padrasto e técnico, Charles Rodrigues. Também no ano passado envolveu-se numa polémica com o Comitê Olímpico do Brasil (COB), antes da viagem para as Olimpíadas de Tóquio. Gabriel Medina fez o pedido à entidade para levar a esposa, Yasmin Brunet, para os Jogos, mas teve o pedido negado. O caso gerou muita repercussão no Brasil.
Na Olimpíada, era a grande esperança de medalha para o Brasil, mas não alcançou o pódio. Ainda nas meias-finais acabou por se envolver em mais uma polémica com o japonês Kanoa Igarashi. O brasileiro contestou as notas recebidas que o impediram de ir à final.
Outra polémica veio quando Medina chegou a perder uma etapa da WSL, em Teahupoo, no Taiti, por não ter se vacinado a tempo. Ele admitiu o erro e foi imunizado em seguida. Ao fim da época, numa reviravolta do que parecia ser uma no perdido, pôde comemorar o terceiro mundial.
“Temos aqui duas questões em particular: aspetos da vida pessoal dos atletas que competem com os aspetos da vida desportiva, retirando-lhe recursos psicoemocionais e energia que por isso muito frequentemente contribuem para esse tipo de circunstância”, observa Ana Bispo.
“Neste caso deste atleta em particular, ouviu-se falar de uma disputa familiar qualquer nos últimos meses do final do ano e provavelmente ele está a se referir também a este tipo de estresse na vida. Estamos a falar de uma exaustão emocional que de facto pode comprometer não só a qualidade de performance. Então, parar preventivamente é inteligente da parte deste atleta”, acrescenta.
“Não quer dizer que seja um problema de saúde mental, que ele esteja com uma depressão. Sei que é muito mais midiático e fica muito melhor nos títulos das notícias, mas não há indicação nenhuma que esteja com uma depressão. Agora que ele está com um problema grande para resolver está. E que não consegue competir no alto nível isso também é verdade”, observa Miguel Moreira.
“Questionei-me muito nos últimos tempos se deveria tornar isso público ou manter de forma privada, mas é justo que todos que me apoiam saibam do momento que estou a enfrentar. A saúde mental é muito importante. Preciso estar 100% mentalmente para voltar a competir. Voltarei mais forte”, escreveu Medina no último dia 25 de janeiro. Abaixo, o depoimento do surfista.