Ana Catarina Monteiro tinha apenas 2 anos quando começou a dar as primeiras braçadas na piscina. A alegria infantil desses tempos foi-se transformando ao longo dos anos em determinação, superação, performance e realidade olímpica. Em entrevista à SportMagazine durante um estágio no Centro de Alto Rendimento Desportivo Sierra Nevada, em Granada (Espanha), a nadadora portuguesa fala da rotina de treinos, do desafio da superação, da frustração causada pela Covid-19, dos estudos e, obviamente, dos planos para Paris 2024.
SportMagazine (SM) – Como funciona a rotina de treinos de uma atleta de alto rendimento? Fale-nos um pouco do seu dia a dia como nadadora de elite e a conciliação com os estudos.
Catarina Monteiro (CM) – A minha rotina de treinos varia entre 10 e 12 treinos semanais, consoante o momento da época. São cerca de duas horas a duas horas e meia, a depender da época. Mas o tempo de treino nunca é inferior a duas horas e chega a duas horas e meia em momentos de maior volume. Temos ainda que acrescentar entre três e quatro treinos de ginásio, de uma hora por semana e, normalmente, antes de cada treino há uma pequena fase de mobilidade de 15 a 20 minutos. Ou seja, a conciliação com qualquer outra atividade é sempre complicada, porque são cerca de sete horas diárias. Ao longo dos anos, fui tentando da melhor forma conciliar com os estudos. Sempre estudei bastante, mais em casa do que presencialmente nas aulas. Neste momento já estou a fazer a tese [de mestrado], portanto, o trabalho é mais fácil de gerir nesse aspeto. Mas são precisas muitas horas. Daí o tempo dedicado ao curso ser sempre menor se o objetivo maior é a natação. A nível de nutrição e descanso, sem dúvida que é fundamental. Existem algumas épocas em que há mais restrições, em outras até temos que comer mais, mas tento sempre manter uma alimentação saudável durante a semana e no fim de semana fico mais à vontade, o que é fundamental para a minha saúde mental. É mais ou menos assim que vou gerindo a minha vida nos últimos anos como atleta de alto rendimento.
Aos 28 anos, a nadadora de Vila do Conde alcançou, o ano passado, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, o melhor resultado olímpico de sempre da natação feminina, ao chegar à meia-final e terminar no 11.º lugar nos 200 metros mariposa. No sector masculino, apenas Alexandre Yokochi conseguira melhor em Jogos Olímpicos (7.º lugar nos 200 metros bruços, em Los Angeles 1984). Nada que Catarina não tenha vontade de superar.
SM – Treina desde criança. Neste percurso, seguramente existiram alguns fatores que foram essenciais para si: a estrutura física do seu clube, o apoio técnico, o apoio familiar e a sua própria força de buscar o melhor. Algum destes pontos foi mais do que outro ou acredita que o conjunto formou a receita do seu sucesso?
CM – Acho que o ponto fundamental no meio disto tudo foram os meus pais. Os meus pais, todos os meus amigos e familiares e todo o apoio que fui sempre sentindo desde cedo. O próprio clube, o facto de estar no mesmo clube desde sempre. Entrei na natação aos dois anos e aos sete entrei no Clube Fluvial Vilacondense, que é o clube onde me mantenho. São 20 anos de ligação. Sempre me foi disponibilizado o máximo de apoio possível. Durante muito tempo trabalhei com o professor Tonas [António Vasconcelos] e agora trabalho com o Fábio Pereira desde 2017. Ambos são pilares fundamentais. Mas também a Mafalda Oliveira, a minha fisioterapeuta, que está comigo desde 2006, o meu médico, o doutor Rui Escaleira, que está comigo desde 2014. Fui trabalhando com o Pedro Maio, entre 2016 e este ano, na parte da preparação física, e com o doutor Jorge Silveira na parte da psicologia. Todas essas pessoas são muito importantes para atingir o resultado final. Mas eu diria logo à partida que o papel dos meus pais foi fundamental porque sempre me apoiaram, me permitiram fazer as coisas ao meu tempo, nunca me exigiram nada e apoiaram-me sempre quando decidi que queria ser profissional. Apoiaram-me na decisão de tornar os estudos parciais porque a natação tem um período mais limitado no tempo e a minha carreira académica posso continuar ao longo da minha vida. Portanto, os meus pais são meus maiores pilares. O apoio que tive do clube, da família, dos amigos, dos treinadores, sem dúvida… fisioterapeuta, médico, psicólogo, tudo ajudou a chegar onde cheguei.
SM – Qual é o papel do treinador no processo de evolução na natação?
CM – A relação atleta-treinador é fundamental. A confiança no treinador e no processo é algo fundamental e sempre foi nisso que me baseei durante os cerca de dez anos que trabalhei com o professor Tonas [António Vasconcelos]. Era uma idade diferente do que estou agora. O Fábio [Pereira] foi durante muitos anos atleta comigo, temos uma relação muito próxima e acho que isso é bom porque permite-nos partilhar os momentos bons e maus. Conhecemo-nos bem, então sabemos os pontos mais fortes e mais frágeis um do outro. Essa relação é fundamental para chegar ao topo. No fundo, o nadador é quem nada, quem toca na parede, mas a vitória e a derrota, os objetivos alcançados, as conquistas, tudo é a dois. O treinador tem um papel tão fundamental quanto o atleta.
SM – De que forma a tecnologia auxilia o desenvolvimento do atleta no dia a dia?
CM – Além de ser atleta, sou muito fã da natação como desporto. Sou muito curiosa por tempos, rankings, classificações. Gosto de conhecer a forma como as minhas adversárias nadam e também aproveito a Internet para perceber um bocadinho isso. As estratégias de prova… Acho que tudo isso tem vantagens e desvantagens. No meu caso, acho que o facto de ser fã do desporto permite que use um pouco essas tecnologias para estar mais dentro do que vou fazer e do ambiente que vou encontrar. Nas competições uso basicamente os mesmos fatos [de banho] desde 2009, quando houve uma alteração nos fatos de competição. Sou fiel à marca e pronto. Já experimentei várias coisas, mas aquele modelo é aquele com o qual me dou bem. Acho que, acima de tudo, temos que nos sentir confortáveis com o que usamos. Varia de pessoa para pessoa e há que se escolher o que melhor se adapta.
Nadadora no Ginásio Clube Vilacondense desde os 7 anos, Ana Catarina Monteiro é desde 2018 a recordista nacional absoluta (2.08,03 minutos) nos 200 metros mariposa em piscina curta. Em Portugal, é imbatível na disciplina.
SM – Um dos maiores desafios da atualidade para os atletas tem sido a convivência forçada com a Covid-19. A Catarina, por exemplo, já foi infetada no ano passado. Como é que a pandemia teve impacto na sua rotina de treinos?
CM – Confesso que, no início de 2020, quando tudo isso começou, tentei manter-me muito optimista, achar que o impacto não seria assim tão grande. Consegui manter-me a treinar, treinei em casa, mas a ausência de competições e de grupo de treino fez com que tudo fosse mais difícil. Mentalmente, esses dois anos foram bastante complicados. Depois, num momento em que já estaria quase a preparar-me para as principais competições da época, fui infetada sem ter nenhum sintoma, na verdade. Só soube porque ia para estágio e foi um balde de água fria pois dez dias fora da água para nós pode equivaler a um mês ou dois que se perde do trabalho que está para trás. Também pode ser facilmente recuperado, embora no meu caso não tenha acontecido. Depois, há toda essa pressão a que estamos sujeitos, o receio de a qualquer momento voltarmos a ser infetados, de termos algum familiar infetado e voltar a ficar em isolamento, além do medo que existe da própria doença, embora a vacinação tenha trazido maior tranquilidade. Mas o isolamento ao longo desses dois anos foi sempre uma preocupação grande. Além disso, este ano, praticamente, não tinha tido férias, no entanto, quando regressei tive uma apendicite e todo o trabalho que tive para trás senti que ficou perdido. Acontece o mesmo com a Covid-19. Estamos sempre sujeitos a perder uma grande base de trabalho que construímos. Para mim tem sido muito mais mais difícil lidar com a pandemia do que achei inicialmente.
SM – O Comité Organizador do Euro Meet do Luxemburgo decidiu cancelar a competição prevista para o fim de semana de 28-30 de janeiro, devido à atual variante Ómicron (variante da Covid-19). Esse tipo de situação desmotiva o atleta e deixa alguma incerteza para o futuro ou é preciso manter a concentração para alcançar os objetivos?
CM – Sim, sem dúvida que desmotiva. Neste momento sinto muita necessidade de nadar os 200m mariposa com as melhores atletas do mundo. É nesse nível que quero estar. E o cancelamento de uma competição internacional é sempre desmotivador. Porém, neste momento já acreditamos que não será como foi há um ano e há dois atrás, com cancelamentos sucessivos. Estamos numa fase em que, acredito, podemos vislumbrar o final desta pandemia na forma como a conhecemos. Claro que vai ter consequências para sempre, ou, pelo menos, para os próximos anos das nossas vidas. Vamos ter que viver de forma diferente, mas essa mudança, de alguma forma conjugada com os resultados positivos da vacinação e com a imunidade que tem vindo a ser criada, pode ser amenizada.
Estou num estágio em altitude neste momento [no Centro de Alto Rendimento Desportivo Sierra Nevada, em Granada, Espanha], ia fazer três competições seguidas. A primeira seria no Luxemburgo, mas vou ter a oportunidade de competir nas duas seguintes [os meetings de Póvoa de Varzim e de Lisboa]. Portanto, o cancelamento é desmotivador, mas não com o mesmo impacto que tinha há um ano atrás ou dois, quando não havia competições pois todas tinham sido canceladas.
SM – Então, a pandemia prejudicou-a bastante em termos desportivos…
CM – Eu acho que o foco está sempre no objetivo final. E foi assim que eu tentei gerir ao longo desses dois anos. O foco estava sempre nos Jogos Olímpicos. Mas o processo em si fica complicado, porque pensamos no objetivo final e sempre trabalhei muito com metas a curto prazo, pequenos objetivos. E esses pequenos objetivos deixaram de existir. Quando havia competição, era uma competição isolada. Acho que esse foi o grande impacto que a pandemia teve na minha vida desportiva. Ou seja, a ausência de competições, de momentos de avaliação, para poder chegar ao momento final. O grande objetivo é sempre o final, mas esses cancelamentos e adiamentos têm um forte impacto, sem dúvida.
SM – Já agora, em Tóquio 2020, no ano passado, conseguiu o melhor resultado de sempre na natação feminina de Portugal numa Olimpíada. Além disso, detém o recorde nacional na sua especialidade, os 200m mariposa. Qual o principal objetivo da carreira da Catarina hoje? Seria uma final em Paris 2024?
CM – Foi importante para mim conseguir chegar a Tóquio e fazer uma meia-final. Fiquei sensivelmente a um segundo e meio do meu melhor tempo, o que mostra que ainda tenho alguma margem. A pandemia teve um impacto que não consegui controlar e também a própria infeção por Covid-19, cerca de dois meses e meio antes da participação dos Jogos Olímpicos. Apesar de parecer muito tempo é pouco quando se trata de uma preparação a este nível. Neste momento estou a trabalhar ao máximo para alcançar os mínimos para Paris 2024. Ainda não saíram, ainda não sei quais são. Talvez no início do próximo ano, ou durante este ano. Mas o foco, primeiro, é chegar a Paris 2024, sem dúvida. E, claro, conseguir chegar a uma final. Acho que é um sonho, mas trabalhando e mantendo o foco pode ser mesmo uma realidade.
SM – Por fim, já fez a licenciatura em Bioengenharia, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). Quando encerrar a carreira de nadadora pensa mesmo em dedicar-se a esta profissão ou tornar-se treinadora não está descartado?
CM – Tornar-me treinadora não é algo que eu me veja a fazer no futuro. Gostava muito de estar envolvida no desporto de alto rendimento, associada à melhoria da performance, talvez ao Comité Olímpico, à melhoria de condições para os atletas… Não sei bem. Estou a direcionar a minha tese para a área da suplementação, mais uma vez para a melhoria da performance, neste caso através da suplementação. A medicina desportiva sempre me fascinou muito, sobretudo a área da investigação na medicina desportiva. Se eu pudesse enveredar por essa área seria fantástico, mas ainda não tenho um plano completamente definido. De qualquer forma, penso que não passará mesmo pelo cais da piscina.
Fernando Marques Marinho
Janeiro 22, 2022 at 12:13 pm
Entrevista de uma pessoa madura, com os pés bem assentes e ideias bem estruturadas…a determinação e resiliência são as principais características para o sucesso embora nos nadadores portugueses seja necessário maior competição internacional como bem se nota na entrevista e há muito sentido e manifestado pela Catarina. Beijinhos para ela