Antigo futebolista e treinador há cerca de 25 anos, Luís Castro tem como cartão de visitas uma carreira eticamente irretocável. Conhecido pelo comportamento tranquilo à beira do relvado, pela educação no tratamento aos atletas, aos árbitros, à comunicação social e aos adeptos, o profissional de 60 anos, atualmente treinador do Botafogo, no Brasil, falou para a edição n. 3 da Revista SportMagazine (com foco no dossier “Ética e Valores no Desporto”) sobre os fundamentos e os valores que carrega consigo para entregar ao desporto ensinamentos que facilmente podem também ser levados para a vida quotidiana.
SportMagazine (SM) – Se a sociedade é violenta, é evidente que o desporto vai refletir também violência. Se é preconceituosa, o desporto também vai trazer alguns problemas neste sentido. Mas no sentido inverso, o desporto tem a força necessária para passar uma mensagem que influencia a sociedade. Como o desporto pode colaborar, a partir de bons exemplos, a tornar a sociedade melhor?
Luís Castro (LC) – Aqui há alguns fatores que temos que integrar. Há regras no desporto e essas regras não têm que ser influenciadas por ninguém, embora sejamos seres humanos inseridos nesta sociedade apontada. Mas muitas vezes essas regras são únicas e não têm nada a ver com aquilo que é a sociedade. Ou aquilo que está neste momento mais ativo na sociedade, podendo estar num mundo muito agressivo, ou um país com uma sociedade muito agressiva. Há regras no desporto que defendem, de forma inteira, e não toleram qualquer agressividade. Isso é uma forma de dizer que, por vezes, a regra criada é uma forma de suster aquilo que é o contexto social. Essa agressividade que se fala e que levam a algumas tensões sociais e por vezes em determinados espaços onde se praticam o desporto, talvez nós vamos, depois, normalmente, buscar essas razões em nós mesmos. Somos produtos desta sociedade. E como produtos temos manifestações existentes naquilo que é o nosso percurso de vida. Agora, realmente, se nós deixarmos que as modalidades do desporto sejam o retrato fiel daquilo que é a sociedade, quando essa sociedade carece de alguns valores fundamentais: de respeito, de Direito, de cuidado, de solidariedade, então o desporto também carece desses valores. Portanto, temos que criar regras no desporto em que mesmo estando num contexto social parco em valores, o desporto possa ser um exemplo na sociedade e não a sociedade um exemplo para esse desporto.
SM – O filósofo português Manuel Sérgio considera que o mundo do desporto inspira uma reflexão sobre a transcendência. Ele afirma que “não há desporto sem ética”. Quais valores o Luís Castro considera essenciais para fazer de desportista um profissional íntegro?
LC – A ética no desporto. Há aqueles jogadores que chegaram muito cedo às modalidades e que desde cedo lhes são ensinados os valores fundamentais do desporto e levam-no a algum avanço. Por isso, digo que é importante que os jogadores cheguem cedo à prática do desporto. E os valores: do respeito pelo árbitro, pelo adversário, pelo resultado; a solidariedade, que é a ajuda permanente ao colega, a intenção permanente de dar apoio a um colega que não está tão bem no jogo; a solidariedade de prestar atenção àqueles que estão mais necessitados e precisam de outras formas de ajuda; a ambição é um valor fundamental nos desportos individuais e coletivos; a coragem é outro dos valores para se ultrapassar nos momentos difíceis; o compromisso, estarmos todos comprometidos com algo que achamos que é fundamental, darmos tudo de nós em cada ação e momentos do jogo. Portanto, há valores que são decisivos para o desempenho. E esses valores, quanto mais cedo são aprendidos, mais cedo se tornam sólidos dentro de todos. O desporto tem essa ação. Todos sabemos que os pais cada vez menos têm tempo para os filhos. Hoje vivemos numa sociedade cada vez mais virtual do que real. Vivemos no mundo da virtualidade e não da realidade. Então, o desporto tem essa função também, de complementar a educação dos nossos pais, que às vezes não têm o tempo necessário para se dedicarem aos filhos.
SM – O Luís já trabalhou por muitos anos com a formação de atletas. Quais os valores que os treinadores precisam priorizar nesta etapa da carreira de construção de um atleta para que, no futuro, o jogador demonstre bons hábitos e dê bons exemplos como profissional?
LC – Há três valores fundamentais: o respeito, a coragem e o compromisso. O respeito pelos colegas, pelo árbitro, pela massa associativa, pelos adeptos, pela administração e por todos aqueles que os veem não só nos estádios e espaços de treino, mas pelas televisões, rádios e jornais. O respeito por tudo e por todos. O compromisso, porque é o compromisso com o jogo, com a família, com os colegas, com a estratégia. Não existe “meio” comprometido, ou está ou não está. E depois a coragem, que é estar a jogar para dez pessoas ou para 70 mil e os milhões a ver pela televisão. Para nós, é colocarmos em campo aquilo que treinámos, a coragem de defrontar todo e qualquer adversário do mundo, seja onde for. Esses valores são decisivos e precisam ser explorado pelos treinadores na formação.
SM – Existe uma linha muito tênue entre as críticas construtivas da comunicação social e as críticas que faltam com respeito aos treinadores; assim como há as críticas dos treinadores aos árbitros ou mesmo à falta de estrutura dos clubes, como já aconteceu no Botafogo consigo. Neste sentido, qual a postura que o Luís Castro julga ideal para saber lidar com as críticas e fazê-las num tom ético?
LC – Há uma coisa que as pessoas não podem confundir: as críticas respeitosas e as críticas que ferem e que não têm qualquer respeito por quem nós estamos criticando. E quem as faz sabe disso. A crítica positiva é um elogio, enquanto a negativa pode ser uma forma de dizer que o trabalho não está ser bem executado. E não tem problema nenhum. Todas as pessoas têm o direito e são livres para criticar pela forma positiva ou negativa, o que não têm o direito é de faltar o respeito para fazer uma crítica negativa. Para eu dizer a qualquer pessoa que ela fez uma crónica que eu não gostei, não é preciso chamar de burra a essa pessoa. Eu posso pura e simplesmente dizer que ela “não foi feliz”. E segue em frente. Não posso dizer “olha este burro o que ele escreveu”, isso é ofensivo. É um pequeno exemplo daquilo que todos os dias se passa. Eu acho que se nós queremos ética, se queremos respeito, devemos respeitar e devemos ser éticos. Porque há pessoas que se sentem muito ofendidas só de lhes dizermos que não estamos de acordo com o que eles estão a dizer. Imagine se somos ofensivos para dizer-lhes que não estamos a gostar do que estão a dizer ou do que lemos. Portanto, acho que temos que ser razoáveis, honestos intelectualmente para percebermos que simpatia gera simpatia, ódio gera ódio, agressividade gera agressividade, tolerância gera tolerância.
SM – Num episódio recente no Brasil, o Jorge Jesus colocou-se à disposição para um cargo que na altura tinha dono e era do Paulo Sousa no Flamengo. O caso causou muita repercussão e acusações de falta de ética por parte de Jesus. No futebol, ser bom treinador suplanta à ausência de certas atitudes consideradas antiéticas ou não há espaço para condutas como estas no desporto?
LC – Eu não vou, claro que não vou falar do caso porque não sou dominador do assunto, nem tenho interesse em pesquisar o que aconteceu. Não me interessa. Acho que o Jesus e o Paulo têm suficiente experiência para os dois se entenderem. A única coisa que eu digo é que o respeito é fundamental. No desporto e nas relações humanas.
SM – Na sua coluna na última edição, o senhor mencionou que não vendia ilusões aos adeptos. A até que ponto ser sincero num meio tão conturbado como o futebol é possível e pode ser benéfico ou maléfico para quem o faz?
LC – Eu sei que ao longo da minha vida sempre me disseram para eu ter cuidado com as palavras e para eu falar o mínimo ou não falar sobre determinados assuntos. Mas eu não sou capaz de não expressar as minhas convicções. Quero sempre ser verdadeiro e nunca escondo aquilo que se passa em cada momento da minha vida e a cada momento que eu vivo nos clubes. Portanto, volto a dizer o mesmo: não vendo ilusões, digo sempre aquilo que o meu coração manda, que a minha consciência manda sempre, sem arrependimentos. Porque a única coisa que pode causar arrependimentos é não trabalharmos. Como eu trabalho, não me arrependo.
SM – Também mencionou na sua coluna na última edição da nossa revista que havia diferentes abordagens para diferentes temas e situações a depender da cultura onde está inserido, mas que o respeito da sua parte era transversal a todos os lugares. Para concluir: quais os principais desafios para um treinador que se propõe a trabalhar fora do seu país e como é possível superá-los precisar tentar modificar a cultura de onde está?
LC – A cultura onde nós estamos inseridos nunca vamos conseguir mudar. Culturalmente, os países demoram décadas e décadas para mudar. E isso é feito através da educação nas escolas, com investimentos muito fortes dos governos para alterar alguns comportamentos culturais. Portanto, eu não tenho minimamente essa pretensão, nunca tive. Acho que quem tiver essa pretensão está errado, porque nós devemos respeitar a cultura existente do país quando lá chegamos. Agora, não podemos perder a nossa identidade, respeitando essa cultura. Se a minha identidade é dizer a verdade, e dizer exatamente o que se passa em cada momento, não é porque aqui ou ali onde eu possa trabalhar dizer isto ou aquilo pode me custar o lugar. Me custando o lugar, eu não perco a identidade que me acompanha há anos. Portanto, é relativa a interferência da cultura na identidade daquilo que é o treinador. Temos que arranjar um equilíbrio entre a cultura do país e a nossa identidade.
Luís Manuel Ribeiro de Castro, 60 anos, é natural de Vila Real. O treinador UEFA PRO tem uma década de serviços prestados ao Futebol Clube do Porto e atualmente à frente da equipa do Botafogo, no Brasil. Ele acumula, na carreira, passagens vitoriosas no Shakhtar Donetsk (conquistou um campeonato ucraniano) e no Al Duhail (vitória na Taça do Emir do Qatar). Em Portugal, o treinador já passou por Águeda, Mealhada, Estarreja, Sanjoanense e Penafiel, depois o FC Porto (onde chegou a assumir a equipa principal em 2013/14), acabando mais tarde por comandar o Rio Ave, o Desportivo de Chaves e o Vitória de Guimarães.