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Filosofia do treinador – Como a formulam e pensam levar à prática: um estudo com treinadores jovens

Foto: Carlos Saraiva/SM

Por Rui Resende*

*Universidade da Maia – ISMAI

*CIEQV – Centro de Investigação em Qualidade de Vida

Introdução

A filosofia do treinador tem sido apontada como fomentadora de uma maior eficácia na sua ação enquanto líder de um projeto desportivo e tem sido reconhecida como fundamental na literatura (Jenkins, 2010). Esta liderança é tanto mais eficaz quanto o treinador consegue passar a sua ideia de uma forma clara para os atletas e para todos aqueles que estão no seu arco de atuação. Para isso, o treinador não só deve ter uma ideia clara do que pretende da sua equipa, como também necessita de ter procedimentos consentâneos com essa ideia (Gomes et al., 2018). Ou seja, não será suficiente ter boas ideias se a prática não for correspondente. Neste sentido, afigurasse-nos decisivo para ser eficaz que o treinador ganhe consciência da sua filosofia de treino e da forma como pretende levá-la à prática.

Mas então o que se entende por filosofia do treino e quais poderão ser as estratégias para a construir e operacionalizar?

Uma vez que a resposta não pode ser dada em forma de receita, pois a variabilidade de atuação é incomensurável, terá de ser cada um dos treinadores per si a desenvolver a sua própria filosofia, assim como encontrar os melhores caminhos para a colocar em prática.

A filosofia do treinador poderá ser considerada como a atitude que o treinador tem perante a sua equipa e que, por ser pessoal, está alicerçada naquilo que o treinador é como pessoa, quais são os seus valores e princípios de atuação. Assim, criar uma filosofia de treino solicita ao treinador tomar consciência daquilo que ele pensa em relação ao fenómeno desportivo, o que pensa e deseja para os seus atletas na envolvência desportiva e qual a repercussão da sua atuação em relação aos seus atletas que lidera.

Concordando com Hardman and Jones (2013), que reportam que a filosofia do treinador deve ser construída sobre quatro princípios: (1) o que o treinador valoriza (axiologia); (2) o que o treinador ajuíza sobre o que é moral e imoral (ética); (3) o sentido que atribui ao processo de treino (ontologia) e; (4) reflexões sobre a experiência de ser treinador (fenomenologia).

Neste sentido, e numa tentativa de ajudar a encontrar um procedimento que ajude a clarificar este processo (a construção de uma filosofia pessoal de treino), identificamos um conjunto de questões às quais os treinadores de forma reflexiva devem responder. Portanto, este artigo pretende ilustrar o que treinadores em início de carreira pensam sobre qual deve ser o seu papel na condução de atletas.

Método

Participantes

Participaram neste estudo 70 alunos do mestrado em Treino Desportivo de duas instituições do norte de Portugal com uma idade média de 23.2 anos e com uma experiência como atletas federados de 10.5 anos. Revelam, ainda, uma escassa experiência como treinadores (M=2.3) sendo que na sua globalidade estão a treinar escalões de formação. O seu nível de treinador é o Grau 1, obtido ou em fase de obtenção. A grande maioria dos participantes é do sexo masculino (N= 54) ligados à modalidade de futebol (N=60) e a outros desportos como o andebol, basquetebol, futsal, natação, golfe e halterofilia.

Instrumentos

O instrumento de recolha foi o questionário com perguntas abertas e que decorre de oito questões, a formulação de um frase que simbolize a sua atuação como treinador, elencar palavras-chave que se manifestem em ação concreta com os atletas propostas em Resende (2018) e que pretendem dar início à construção da filosofia do treinador e à sua operacionalização. As questões têm como objetivo promover uma reflexão individual sobre como se reconhece como treinador e como pessoa. A relação que se pretende estabelecer é que “a atividade a desenvolver como treinador depende de quem se é como pessoa do seu ideal de vida, das circunstâncias particulares em que se insere e da forma como o demonstra” (Resende, 2018, p. 52).

A recolha dos depoimentos foi obtida após a explicação detalhada dos propósitos da investigação assegurando a sua confidencialidade. Para todas as questões foram colocados exemplos no sentido de possibilitar alguma orientação na reflexão dos treinadores.

Em sequência, solicitou-se aos treinadores que elaborassem uma frase que pudesse nortear a sua ação enquanto treinadores e que fosse acessível e compreensível para os atletas.

Como o objetivo do exercício tem como foco passar do plano das ideias à ação, a operacionalização das ideias do treinador (filosofia de ação), levou a que pedisse-mos que destacassem entre quatro e cinco palavras-chaves que estivessem de alguma forma refletidas na frase formulada anteriormente. Estas palavras-chave deveriam ter como consequência prática a sua relação e atuação com os seus atletas, ou seja, como levar à prática a sua ideia de atuação como treinador.

Procedimentos

Os dados foram recolhidos e coletados na sua globalidade numa folha de cálculo (Mirosoft Exel) que foi posteriormente importada para o programa NVivo. Aqui, procedeu-se à análise dos dados com recurso às ferramentas disponíveis, como são o estudo de frequências de palavras e autocodificação automática por questões colocadas e fazendo uso dos sentimentos que este programa gera. São quatro os sentimentos: (a) muito negativos; (b) moderadamente negativos; (c) moderadamente positivos e; (d) positivos. Esta distinção permite encontrar padrões e sensibilidades das respostas dos participantes e ajudar à interpretação dos dados.

Resultados

Os resultados são descritos por questão colocada e reúne uma interpretação do autor.

Razão para ser treinador?

Os participantes do estudo evocam essencialmente como razão para ser treinador a grande paixão pelo desporto, pelo treino e pela modalidade desportiva em concreto. Também parece ser muito importante nas razões expostas o gosto por ensinar e ser parte ativa na evolução dos atletas não só na vertente mais específica do desporto, mas também no seu desenvolvimento pessoal.

Quais são os meus valores enquanto pessoa?

Os valores citados maioritariamente relacionam-se com uma forte atitude de respeito perante si próprio e os outros. A honestidade e a responsabilidade são princípios muito importantes declarados pelos treinadores constituindo-se como essenciais para uma relação eficiente e profícua com os atletas para além de todos os outros que estão envolvidos no processo desportivo. Valores como o compromisso e humildade também se destacam revelando um propósito de responsabilidade com a profissão e uma intenção de encarar o processo com mente aberta, conscientes de que o processo de treino é complexo e exige disponibilidade para aprender de forma contínua.

Que tipo de experiências pretendo que os meus atletas vivenciem?

Na sua generalidade e considerando que na sua maioria se reportam aos anos de formação desportiva, os treinadores observam que o desporto pode e deve possibilitar boas experiências aos atletas, que estas se constituam como aprendizagens significativas para a vida, sejam elas no desporto sejam nas relações do dia a dia. Realçam o papel que a competição pode favorecer neste processo pois, o seu resultado, derrota ou vitória, promove a capacidade de resiliência. Enaltecem a importância do prazer na prática desportiva e o quanto importante isso se pode manifestar numa vida ativa e saudável no futuro. Valorizam muito as interações sociais que resultam da prática desportiva através do conhecimento de pessoas diferentes. Registam o seu papel de liderança enquanto proporcionadores de diferentes atividades que levam aos resultados expressos anteriormente.

Como defino sucesso atlético?

Envolvidos no desporto que tem a componente competitiva como core da sua atividade é relevante considerar o que os treinadores identificam e promovem como sucesso atlético. Regista-se que evidenciam a evolução do atleta no processo de treino nas suas diferentes facetas, físicas, técnicas, táticas, psicológicas como a resiliência, sociais, entre outras. Não colocando de parte a vitória como integrante do processo desportivo não a valorizam como primordial para qualificar sucesso atlético. Mencionam como muito mais determinante que na competição os atletas se esforcem o máximo para se superarem.

Qual é minha opinião sobre qual é o propósito do desporto?

Os treinadores entendem o propósito do desporto alicerçado nos valores que este deve promover. Nomeiam a importância do ensino e da aprendizagem de valores através da prática desportiva e salientam como fundamental a obtenção de um estilo de vida ativo. A aquisição de diferentes competências é igualmente importante para os treinadores, não deixando de referir que este processo deve ser liderado por profissionais qualificados que estejam conscientes destes desígnios.

Quais são as minhas responsabilidades para com os meus atletas?

Quando os treinadores se sentem responsáveis pelos atletas constata-se um assumir do seu papel de uma forma integral, ou seja, veem a pessoa para além do atleta. Neste sentido, apontam o fator exemplo como fundamental para os conquistar além de uma pedagogia que os leve a transportar os valores do desporto para os outros setores da sua vida em sociedade. Acrescentam ainda a importância da confiança interpessoal na relação que estabelecem com os atletas.

Como vou orientar os meus atletas?

Esta questão solicita uma reflexão de atuação e envolve um plano de ação que os treinadores já têm consciente quando a reportam. Os valores estão muito presentes no discurso dos treinadores na perspetiva que são determinantes para alcançar o sucesso individual e da equipa na sua globalidade. Para isso, afirmam o propósito de instalar um clima de confiança e cumplicidade, evidenciando justiça no relacionamento e nas decisões a tomar. A intenção de criar desafios para os atletas superarem também aparece com frequência no discurso dos treinadores sugerindo a importância atribuída ao ensino prospetivo de procura de soluções.

Quais são os padrões éticos pelos quais me oriento?

A palavra respeito é que aparece com maior frequência no discurso dos treinadores quando se evocam os padrões éticos de atuação. Outra situação que emerge da sua exposição é a preocupação com o que vai para além do desporto propriamente dito como são os treinos e as competições.

Formulação da frase que simboliza a filosofia do treinador

A elaboração da frase por parte dos treinadores foi muito heterogénea refletindo a individualidade e a personalidade dos treinadores. Contudo, regista-se que esta formulação foi essencialmente protagonizada de forma positiva e que reflete as ideias enunciadas nas questões prévias. Existe uma forte convicção de que o seu papel será desempenhado no sentido de proporcionar experiências positivas aos atletas dentro de dimensões éticas muito presentes.

Palavras que simbolizam a operacionalização das ideias do treinador

Solicitou-se aos treinadores que designassem uma palavra que simbolizasse aquilo que consideram primordial para nortear a sua atuação.

O compromisso e o respeito foram as palavras mais citadas pelos treinadores. Todas as palavras foram seguidas de uma explanação sobre o seu significado e da forma como se pretende passar a mensagem aos atletas. Ou seja, como no terreno, no treino, os treinadores vão levar as suas ideias à prática. Todavia, nesta ação verificou-se uma maior dificuldade dos treinadores em ter consciência de que as palavras deveriam refletir-se em ações concretas pois só assim é que são determinantes para o seu plano de ação e a respetiva adequação à formulação da ideia (filosofia).

Conclusões/Reflexões finais

Procurou-se com este estudo evidenciar a importância de o treinador formular a sua filosofia pessoal e que tomasse consciência de que esta formulação levaria a um plano de ação concreto.

Para isso, elencamos um conjunto de questões que solicitava a reflexão por parte dos treinadores sobre o que pensavam acerca do desporto, como viam o desporto na sua vida e como pensavam atuar com os seus atletas. Esta reflexão levou à formulação de uma frase que pretendia ser a súmula do daquilo que é a sua ideia de atuação no processo de treino e enquanto treinadores. Em sequência procurou-se ir um pouco mais adiante e dar significado prático às palavras. Neste sentido, pediu-se aos treinadores que dessem expressão prática e sentido às palavras formuladas.

Constata-se que os treinadores têm uma consciência ética muito presente do seu papel como treinadores, estão conscientes da influência que podem ter nos seus atletas e pretendem usá-la para os melhorar como atletas, mas igualmente como pessoas válidas para a sociedade. Este discurso é relevante e, provavelmente decorre da formação académica que já alcançaram.

1 Comentário

1 Comentário

  1. Francisco Fidalgo

    Dezembro 6, 2021 at 2:15 pm

    Excelente estudo Rui Resende!
    Parabéns e um forte abraço,
    Francisco Fidalgo

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